S E R M É D I C O • 1 SER MÉD I CO CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO Nº 102 • ANO XXV • 2023 WWW. C R EME S P. O R G . B R ENTREVISTA Quirino Cordeiro Júnior, diretor do Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas TECNOLOGIA O desafio ético no compartilhamento de dados da Saúde GOURMET A gastronomia diversa da cidade de São Paulo HOBBY Médico retoma a pintura pelo prazer de pintar N E U R O C I Ê N C I A E PSIQUIATRIA Os avanços em Neurociência têm viabilizado a incorporação de novos procedimentos para o tratamento de doenças psiquiátricas; inovadoras técnicas em psicocirurgia foram desenvolvidas, apresentando resultados bastante promissores; e a abordagem e assistência às pessoas com transtornos mentais decorrentes do uso abusivo de substâncias também se aprimoraram.
Lei do Ato Médico. Saiba mais em www.cremesp.org.br Se algo der errado, você vai parar nas mãos de um médico. Não espere dar errado. 10 anos da Lei do Ato Médico. Em qualquer procedimento médico, exija a presença de um médico. É seu direito. É pra sua segurança. É a lei. AS MINHAS AMIGAS FIZERAM. Cuidando da medicina, cuidando de você. Cuidando da medicina, cuidando de você. Imagem ilustrativa. Baseado em depoimentos reais.
S E R M É D I C O • 1 N E S TA E D I Ç Ã O Neurociência tem feito avanços significativos no estudo do cérebro humano, revelando aspectos importantes sobre seu funcionamento, o que tem possibilitado à Psiquiatria ampliar seu leque de opções para o tratamento das doenças mentais. Por exemplo, as tecnologias de imagem, como a ressonância magnética funcional (fMRI), que permite mapear a atividade cerebral em tempo real e identificar áreas específicas associadas a funções mentais e comportamentais; o avanço nas intervenções cirúrgicas ou, ainda, o desenvolvimento da interface cérebro-máquina, possibilitando que sinais cerebrais sejam usados para controlar dispositivos externos. Mas, se por um lado a Neurociência tem contribuído significativamente para a compreensão e o desenvolvimento de intervenções terapêuticas mais eficazes — em doenças como o Alzheimer, Parkinson, esquizofrenia e depressão —, por outro, narrativas ideológicas e ações que violam o exercício do Ato Médico colocam em risco a melhoria dos serviços de atendimento a pacientes com doenças mentais. Esta edição da Ser Médico traz essa discussão, abordando temas polêmicos e sensíveis, como, por exemplo, os que envolvem a luta antimanicomial e a decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, por meio da Resolução n.º 487, determina o fechamenJá História apresenta uma interessante explanação desde os primórdios da Neurociência até a Psiquiatria Invasiva. Por sua vez, as técnicas intervencionistas para o tratamento de transtornos mentais, como a depressão resistente, são focalizadas em Panorama e Vanguarda. A revista destaca também, em Tecnologia, importantes reflexões sobre os desafios éticos relacionados ao compartilhamento de dados em Saúde, em face da nova Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e do uso de Inteligência Artificial. Em Medicina no Mundo, o colega encontrará alguns temas candentes da profissão, como a "névoa cerebral" em covid-19. A matéria de Gourmet faz uma saborosa viagem pelas diversas influências que ajudaram a moldar o reconhecimento da cidade de São Paulo como capital gastronômica. O leitor também vai conhecer um pouco da história de um médico que voltou a pintar quadros durante a pandemia, retomando o Hobby que havia abandonado há décadas. Boa leitura! Wagmar Barbosa de Souza Coordenador da Assessoria de Comunicação to dos hospitais de custódia até maio de 2024, na seção Em Foco. A medida motivou uma nota de repúdio do Cremesp, que — juntamente com outras entidades da Medicina — solicitou a sua suspensão. O fechamento desses locais especializados coloca em xeque o tratamento psiquiátrico de pessoas consideradas de alta periculosidade, que se encontram internadas por terem cometido crimes. A normativa, que foi editada sem a necessária discussão com a área médica, oferece sérios riscos à saúde e à segurança, tanto desses pacientes como da sociedade em geral. Para contribuir com o debate em torno do acolhimento e da assistência em saúde mental, entrevistamos o psiquiatra Quirino Cordeiro Júnior, diretor do novo Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas do Estado de São Paulo — serviço criado em substituição ao antigo Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod). Crítico do antigo modelo, ele fala sobre a nova estratégia de assistência e das diretrizes de atendimento aos usuários de drogas que frequentam a Cracolândia, um grave problema de Saúde e Segurança Pública, na cidade de São Paulo. Cordeiro Jr. acredita que a solução passa, necessariamente, pela construção de uma rede assistencial ampla, com serviços plurais, e articulada com outras, de cuidados, como a socioassistencial. A [1] FOTO: OSMAR BUSTOS [1] AVANÇOS CIENTÍFICOS E TECNOLÓGICOS A SERVIÇO DA SAÚDE MENTAL
2 • S E R M É D I C O Certificado no escopo: Serviços cartoriais relativos à Pessoa Física e Pessoa Jurídica; serviços judicantes realizados na sede do Cremesp, relativos às atividades administrativas para a tramitação de sindicâncias e de processos ético profissionais; manutenção dos dados cadastrais dos médicos; intermediação da isenção de rodízio municipal de veículos; atendimento telefônico e presencial na sede e delegacia da Vila Mariana, referente aos serviços cartoriais. EXPED I ENTE CONSELHEIROS Altino Pinto, Angelo Vattimo, Camila Cazerta de Paula Eduardo (licenciada), Chien Yin Lan, Christina Hajaj Gonzalez, Cynthia Dantas Kurati, Daniel Kishi, Edoardo Filippo de Queiroz Vattimo (licenciado), Eliane Aboud, Everaldo Porto Cunha, Fernando José Gatto Ribeiro de Oliveira, Flavia Amado Bassanezi, Flávia Bellentani Casseb, Francisco Carlos Quevedo, Henrique Liberato Salvador, Irene Abramovich, Joaquim Francisco Almeida Claro, José Gonzalez, Juliana Takiguti Toma, Julio César Zorzin, Lucio Tadeu Figueiredo, Lyane Gomes de Matos Teixeira Cardoso Alves, Marcello Scattolini (licenciado), Maria Alice Saccani Scardoelli, Maria Camila Lunardi, Mário Antonio Martinez Filho, Mario Cezar Pires, Mario Jorge Tsuchiya, Mario Mosca Neto, Mirna Yae Yassuda Tamura, Mônica Yasmin Pinto Corrado, Paula Yoshimura Coelho, Paulo Tadeu Falanghe, Pedro Sinkevicius Neto, Regina Maria Marquezini Chammes, Rodrigo Costa Aloe, Rodrigo Lancelote Alberto, Rodrigo Souto de Carvalho, Silvio Sozinho Pereira, Tatiana Regina Criscuolo, Wagmar Barbosa de Souza CONSELHO EDITORIAL Irene Abramovich, Angelo Vattimo, Wagmar Barbosa de Souza, Maria Camila Lunardi, Pedro Sinkevicius Neto e Rodrigo Souto SER MÉDICO Coordenador do Departamento de Comunicação: Wagmar Barbosa de Souza Chefe da Assessoria de Comunicação: Marcos Michelini Líder da Assessoria de Comunicação: Júlia Remer Editora: Aglaé Silvestre Subeditora: Ivolethe Duarte Colaboradores: Concília Ortona Reyes, Nara Damante, Fátima Barbosa e Vitor Bastos Fotografia: Osmar Bustos Design Gráfico: Jade Longo e Alexandre Paes Dias Administrativo: Bruna Carolina Wojtenko e Leonardo Costa Estagiária: Maria Eduarda Oliveira Lima Impressão: Plural Indústria Gráfica Tiragem: 180.000 exemplares. Periodicidade trimestral. Opinião e conceitos emitidos em matérias assinadas não refletem necessariamente a opinião da Ser Médico ISSN: 1677-2431 Imagem da capa: SciePro/Istock CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO CAT - Central de Atendimento Telefônico: (11) 4349 - 9900. Atendimento na sede: Rua Frei Caneca, 1.282 — Consolação (das 9h às 18h) E-mail: sermedico@cremesp.org.br DIRETORIA Presidente: Irene Abramovich Vice-Presidente: Maria Alice Saccani Scardoelli 1° secretário: Angelo Vattimo 2ª secretária: Maria Camila Lunardi Tesoureiro: Pedro Sinkevicius Neto Corregedor: Rodrigo Lancelote Alberto Vice-Corregedora: Maria Alice Saccani Scardoelli (interina) Departamento de Comunicação: Wagmar Barbosa de Souza Delegacias Metropolitanas: Flavia Amado Bassanezi Delegacias do Interior: Rodrigo Souto de Carvalho Departamento de Fiscalização: Daniel Kishi Departamento Jurídico: Joaquim Francisco Almeida Claro
Í ND I CE 6 ENTREVISTA / QUIRINO CORDEIRO JÚNIOR O diretor do novo Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas, antigo Cratod, revela as novas estratégias na abordagem e atendimento aos usuários de álcool e drogas 4 CARTAS & NOTAS 12 NEUROCIÊNCIA E PSIQUIATRIA / HISTÓRIA Os avanços científicos em Neurociência nas últimas décadas permitiram o desenvolvimento de novas técnicas para o atendimento à saúde mental 16 NEUROCIÊNCIA E PSIQUIATRIA / PANORAMA Modernas técnicas intervencionistas desenvolvidas na área da Psiquiatria oferecem diferentes opções de tratamento para transtornos mentais 24 NEUROCIÊNCIA E PSIQUIATRIA / VANGUARDA O progresso científico em Neurocirurgia e o aprimoramento das técnicas intervencionistas para uso clínico em Psiquiatria 28 32 34 TECNOLOGIA O desafio ético no compartilhamento de dados em Saúde GOURMET Influências de múltiplas imigrações transformaram a metrópole de São Paulo em capital gastronômica 40 AGENDA CULTURAL Mostra de Maria Leontina, um dos grandes nomes da arte popular brasileira, em exibição na Pinacoteca 44 RESENHA Ensaio de Orquestra, de Fellini 47 FOTOPOESIA Embrulho 48 37 HOBBY Médico retoma a pintura e faz da arte um "passatempo espetacular" em sua vida 2O NEUROCIÊNCIA E PSIQUIATRIA / EM FOCO Conselhos de Medicina pedem a suspensão da Resolução n.º 487, do Conselho Nacional de Justiça, que determina o fechamento dos hospitais de custódia 30 MEDICINA NO MUNDO Descobertas científicas em Saúde CRÔNICA A luz vem para mudar e melhorar OPINIÃO A importância de uma rede de atenção integral para o atendimento psiquiátrico
4 • S E R M É D I C O CARTAS & N O T A S CA RTAS Cartas para: sermedico@cremesp.org.br ou Rua Frei Caneca, 1.282, Consolação, São Paulo - SP — CEP 01307-002. A Ser Médico se reserva o direito de publicar trechos das mensagens. Informe o nome completo e número de CRM, se for médico/a. TODA GRATIDÃO AO TEMPO Li com prazer o excelente conteúdo da centésima edição da revista Ser Médico, que sempre propicia reflexões relevantes. O tempo é um senhor que rege as nossas vidas, belíssima crônica divulgada nessa publicação, rememorou-me a adolescência, quando o sonho [1] CREMESP COM MANIPULAÇÃO DA IMAGEM DE MILINDRI/ISTOCK [2 E 3] CREMESP [1] [2] [3] de exercer a Medicina fomentava horas intermináveis de estudo e já rendia poesias. Aos 15 anos, questionada sobre a escolha da profissão, escrevi Embrulho*. Monise Soares Ferrari — CRM 227385 *Embrulho está publicada na seção Fotopoesia, na pág. 48 desta edição TURISMO E HOBBY (...) Gostaria de parabenizar pelo conteúdo da revista, sempre de excelente qualidade. Gosto muito das sessões Turismo e Hobby. Carla Guedes — CRM 180267 Atestado de óbito O Cremesp lançou, em maio, o Manual de Preenchimento da Declaração de Óbito, um guia prático dirigido aos médicos, que explica em quais situações esse documento deve ser emitido e como os quesitos relativos à causa da morte devem ser preenchidos, entre outras orientações. CONHEÇA ALGUMAS DAS RECENTES PUBLICAÇÕES DO CREMESP Pessoas jurídicas na área médica O Manual de Pessoas Jurídicas na Área Médica também foi publicado em maio pelo Cremesp, com o objetivo de atender à demanda de médicos sobre a constituição de empresa para atuar na Medicina. O guia visa esclarecer, entre outros pontos, questões a serem observadas no processo de registro de empresa no Conselho e os principais tipos societários utilizados na área médica. Em versões impressas e digitais, novos lançamentos orientam a atividade médica.
S E R M É D I C O • 5 [4 A 10] CREMESP [6] [8] [9] [10] [5] [4] [7] JMRR A Journal of Medical Resident Research (JMRR), revista científica do Cremesp destinada, em especial, ao médico jovem, agora está em sua segunda edição, com artigos que vão do uso de radiofármaco na detecção do câncer de mama à atualização em Acupuntura para o controle da dor. A JMRR é uma revista bilíngue, que está prestes a ser indexada na plataforma Medline. Assédio a residentes Ao chegar à Residência, o jovem médico pode ser submetido a assédio moral por parte de preceptores e chefias que replicam – e perpetuam – hábitos destrutivos, que, até pouco tempo antes, abominavam. A segunda edição atualizada da publicação Assédio Moral na Formação Médica – conscientizar para combater, do Cremesp, destaca que medidas individuais e institucionais podem ser adotadas quando é reconhecido o abuso. Cuidados paliativos Lançado em abril pelo Cremesp, o livro Cuidados Paliativos: da Clínica à Bioética traz uma visão atualizada dos principais conceitos da assistência voltada ao alívio dos sintomas, à promoção do conforto e da qualidade de vida dos pacientes. Organizada em dois volumes, com a colaboração de mais de 60 autores, a obra também aborda modelos de assistência pautados em boas práticas de gestão em saúde. Mudanças na proteção de dados As exigências que os médicos devem conhecer sobre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) foram compiladas no Guia LGPD Cremesp – Comentado. A publicação foi elaborada para orientar esses profissionais quanto às obrigações estabelecidas na LGPD e incentivar a boa prática médica e a governança na proteção dos dados pessoais de pacientes, funcionários e fornecedores. Boas práticas em redes sociais Dúvidas sobre a participação dos profissionais nas mídias sociais podem ser esclarecidas pelo Guia das boas práticas nas redes sociais para médicos. A publicação traz orientações para utilização das redes, evitando comportamentos que possam gerar processos no Conselho e na Justiça, além de exemplos sobre como a exposição nesses meios pode ocasionar, involuntariamente, infrações éticas. Podcast Papo Medicina O Cremesp lançou, em abril, o Papo Medicina, podcast que traz um panorama sobre o cenário atual da profissão e debate questões relevantes da prática médica. O primeiro episódio abordou um projeto de lei que busca reunir dados sobre complicações relacionadas à realização de procedimentos estéticos. O segundo discutiu o que pode ou não ser publicado sobre procedimentos estéticos pelos médicos. O terceiro episódio, de maio, discorreu a respeito da importância da realização de cirurgias plásticas apenas por médicos especialistas. Os programas estão disponíveis no canal do Cremesp no YouTube e Spotify. Hotsite de fiscalizações O Cremesp lançou um hotsite com informações sobre suas atividades de fiscalização no Estado. O novo canal (https://fiscalizacao.cremesp.org.br/) traz coberturas de vistorias realizadas, com atualizações diárias, por municípios e Delegacias Regionais do Conselho. As publicações estão disponíveis, na íntegra, no Aplicativo Cremesp e no site www.cremesp.org.br, na área Ebooks e Publicações.
6 • S E R M É D I C O E N T R E V I S TA om extensa trajetória na elaboração de políticas públicas para o atendimento à saúde mental, o médico psiquiatra Quirino Cordeiro Júnior assumiu, em abril, a direção do novo Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas — que substitui o serviço do antigo Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod) no Estado de São Paulo (ver box na pág. 11). Nesta entrevista à Ser Médico, ele revela os principais desafios que o esperam nessa complexa tarefa. Fala também dos avanços que implementou durante sua atuação na área da saúde mental, quando pôde participar da construção de dois importantes marcos regulatórios para o enfrentamento dos problemas relacionados às drogas no Brasil: a nova Política Nacional sobre Drogas (Decreto no 9.761/2019) e também a nova Lei de Drogas (Lei n.o 13.840/2019). Doutor em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Cordeiro é referência em saúde mental, tendo ocupado diversos cargos na área, entre eles, o de secretário de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania (2019-2022) e coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde (2017-2018). Também é professor e chefe do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. “A oferta de tratamento adequado aos usuários de drogas é imperiosa” C | Q U I R I N O C O R D E I R O J Ú N I O R Aglaé Silvestre
S E R M É D I C O • 7 [1] FOTO: OSMAR BUSTOS [1] Ser Médico – O sr. assumiu recentemente a direção do novo Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas do Estado de São Paulo. Quais são os maiores desafios para sua gestão no atendimento e tratamento do uso abusivo de substâncias psicoativas? Quirino Cordeiro Júnior — O novo Hub faz parte de uma grande estratégia do Governo do Estado de São Paulo, que passou a atuar em diferentes áreas para o enfrentamento dos diversos problemas relacionados às cenas abertas de uso de drogas na região central da cidade de São Paulo. Os desafios do Hub são vários: organizar um serviço que possa dar conta das múltiplas e complexas necessidades relacionadas às doenças mentais e físicas dos pacientes, quando procuram ou são levados para tratamento; articular ações conjuntas com gestores públicos estaduais e municipais, para que os pacientes encaminhados pelo serviço possam acessar uma rede ampla e potente de tratamento em saúde e de desenvolvimento social; e desempenhar papel relevante no enfrentamento aos graves, complexos e crônicos problemas advindos das cenas abertas de uso de drogas, que assolam o município de São Paulo há mais de três décadas. Ser — Quais as medidas mais urgentes e necessárias para o enfrentamento da questão da Cracolândia, que envolve tanto aspectos de saúde mental como de segurança pública, e que tem sido bastante desafiadora em diferentes gestões governamentais? Quirino — O manejo efetivo dos problemas relacionados ao uso de drogas envolve, necessariamente, ações integradas, executadas por múltiplos atores sociais em diferentes frentes de ação. Porém, o aspecto central, que precisa permear e sustentar todas essas iniciativas, é o combate à permissividade e leniência em relação ao uso de drogas em espaço público. Não há como conceber a ideia de uma sociedade que respeite de fato os direitos humanos (não apenas na retórica ideológica) e que conviva bem com a ideia de aceitar a existência de uma cena aberta de uso de drogas, onde pessoas vivem a miséria humana no seu grau máximo. Nas últimas décadas, parte do poder público e de alguns segmentos da sociedade passaram a encarar esse cenário com certa naturalidade. A indigência e a degradação humana, representadas em todas as suas cores e nuances nesses locais, têm sido quase que romantizadas, glamourizadas. Porém, não há glamour algum na violência diária a que são expostos os frequentadores da Cracolândia. Essas pessoas "Posturas ideológicas, no passado, suprimiam ofertas de cuidado aos dependentes químicos", diz o diretor do Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas
8 • S E R M É D I C O são escravas das drogas e dos traficantes, muitas vezes, com o beneplácito de grupos e de organizações que supostamente as defendem. Assim, o combate ao narcotráfico e ao crime organizado, comprisão de criminosos e apreensão de drogas, são de fundamental importância. Reduzir a oferta de drogas às pessoas em situação de rua é primordial. Os crimes correlatos ao narcotráfico também precisam ser enfrentados com rigor. É preciso que a Justiça e seus operadores cumpram o seu papel de proteção social. Por outro lado, a oferta de tratamento adequado aos usuários de drogas é imperiosa. Porém, é preciso frisar que há de se respeitar as reais necessidades das pessoas. Quando existe indicação para internação, ela deve ser ofertada. Quando o tratamento é de base comunitária, essa abordagem também precisa estar à disposição do usuário. Posturas ideológicas, que no passado suprimiam ofertas de cuidado aos dependentes químicos, não devem mais ser permitidas e toleradas. E todas essas ações de cuidado em saúde têm de estar alinhadas com as de ofertas de assistência e de desenvolvimento social, com capacitação para o trabalho e moradia. Ser — Com a publicação da nova Política Nacional sobre Drogas e da nova Lei de Drogas, em 2019, e a expansão do financiamento a Comunidades Terapêuticas e Grupos de Mútua Ajuda e Apoio Familiar, houve melhora no acolhimento e tratamento de pessoas com transtornos mentais decorrentes da dependência química? Quais as principais mudanças? Quirino — Em 2019, quando eu era secretário de Cuidados e Prevenção às Drogas, do Ministério da Cidadania, participei da construção desses dois importantes marcos regulatórios para o enfrentamento mais efetivo dos vários problemas relacionados às drogas no Brasil. A nova Política Nacional sobre Drogas e a nova Lei de Drogas deram novos norteamentos e ferramentas para o poder público lidar de maneira mais efetiva com os grandes desafios relacionados ao cenário das drogas no País, nas frentes de combate ao narcotráfico e ao crime organizado; de prevenção às drogas e de suas consequências danosas; e também de tratamento e recuperação de pessoas com dependência química. Tudo isso contribuiu para que o Brasil batesse recorde atrás de recorde na apreensão de drogas ilícitas, na erradicação de plantações de maconha no nosso vizinho Paraguai (droga essa que entraria em território brasileiro), na apreensão e venda/doação de bens do narcotráfico, reduzindo o poder financeiro do crime organizado e aplicando mais recursos no enfrentamento às drogas, como, por exemplo, no tratamento de pessoas com dependência química. Houve também uma drástica redução dos homicídios no Brasil. Na área do tratamento e recuperação de pessoas com dependência de drogas, a nova Lei de Drogas passou a permitir a internação involuntária no País, em situações de risco para o paciente ou para pessoas do seu convívio. Essa medida, um ato médico que salva vidas, é absolutamente necessária, e precisa estar à disposição para o manejo de pacientes com quadros clínicos graves e de risco. Além disso, e o mais importante foi que a nova Lei de Drogas ampliou E N T R E V I S TA | Q U I R I N O C O R D E I R O J Ú N I O R O serviço é a nova porta de entrada para o tratamento e recuperação de pessoas com transtornos decorrentes do uso abusivo de substâncias psicoativas [2] [2] FOTO: OSMAR BUSTOS
S E R M É D I C O • 9 os tipos de serviços e de tecnologias de cuidado que passaram a compor a rede assistencial às pessoas com dependência química no País, incluindo hospitais psiquiátricos especializados, hospitais-dia, ambulatórios de saúde mental, comunidades terapêuticas, grupos de mútua ajuda e apoio familiar, dentre outros. Antes, em decorrência de questões absolutamente ideológicas, os pacientes vinham sendo privados de assistência adequada. Então, a partir da publicação dessas duas novas normativas, oGoverno Federal começou a incentivar e financiar o cuidado efetivamente integral no contexto da dependência química, ofertando tratamento de acordo com as reais necessidades dos pacientes. Ser — O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) divulgou a Resolução n.º 3, em 2020, para regulamentar, no âmbito do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), o acolhimento de adolescentes com problemas decorrentes do uso, abuso ou dependência do álcool e outras drogas em comunidades terapêuticas. Esse tipo de acolhimento tem sido eficaz para o tratamento desses jovens? Quirino — Os problemas motivados pelas drogas têm alcançado cada vez mais pessoas na sociedade, porém com predileção maior pelos adolescentes. Infelizmente, essa população mais vulnerável tem enfrentado cada vez mais as chagas do uso abusivo de substâncias químicas. Em 2020, buscando ampliar o leque de serviços oferecidos para o tratamento de adolescentes que faziam uso abusivo de substâncias psicoativas, trabalhei junto ao Conad, para que houvesse a regulamentação e permissão para o tratamento desses jovens nas comunidades terapêuticas. Nesse campo, existia um hiato normativo, que foi preenchido pela publicação da Resolução do Conad n.º 3/2020, e esses locais passaram a fazer parte do arsenal terapêutico dos profissionais da área. Vale lembrar que a comunidade terapêutica é mais um serviço que passou a compor uma rede ampla de cuidados — composta por hospitais, psiquiátricos e gerais, hospitais-dia, ambulatórios de saúde mental, centros de atenção psicossocial, unidades básicas de saúde e prontos-socorros, dentre outros —, visando ao tratamento, cuidado e recuperação de adolescentes com transtornos decorrentes do uso abusivo de drogas. Todas essas estruturas são necessárias para o tratamento integral do paciente e nenhuma deve ser negligenciada. Ser — A legislação existente permite o atendimento e tratamento adequado de pessoas com transtornos decorrentes do uso abusivo de substâncias psicoativas ou faltam normativas? Quirino — As normativas existentes permitem que sejam disponibilizados todos os cuidados para o tratamento da dependência química, em suas diferentes necessidades. Desde o ano de 2017, novas normativas foram publicadas, com o objetivo de corrigir falhas e suprir carências na assistência psiquiátrica. Além das já citadas, em 2017, foi editada a nova Política Nacional de Saúde Mental e, em 2019, outras tantas normas complementares também foram publicadas — como a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio —, visando criar condições para que o poder público, e a sociedade como um todo pudessem conceder cuidado integral e de qualidade aos pacientes com “O aspecto central, que precisa permear e sustentar todas essas iniciativas, é o combate à permissividade e leniência em relação ao uso de drogas em espaço público”
1 0 • S E R M É D I C O [3] FOTO: OSMAR BUSTOS E N T R E V I S TA | Q U I R I N O C O R D E I R O J Ú N I O R transtornos mentais, decorrentes do uso abusivo de álcool e drogas. Agora, basta apenas seguir as normas já existentes. Ser — Em relação às diretrizes da nova Política Nacional de Saúde Mental, implantada pelo Governo Federal, após a pactuação na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) do Sistema Único de Saúde (SUS), em 2017, quais os principais avanços? O que mais precisa ser feito? Quirino — Quando fui coordenador-geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde, entre os anos de 2017 e 2018, trabalhei para que mudanças importantes fossem realizadas. Naquele momento, os indicadores dessa política pública eram muito ruins: crescimento sustentado das taxas de suicídio; aumento de indivíduos com transtornos mentais graves e dependência química em situação de rua; encarceramento e aumento da mortalidade desses pacientes; superlotação de serviços de emergência, com pacientes aguardando vaga para internação; aumento do uso abusivo de drogas e dependência química no País; crescimento e expansão das cenas abertas de uso de drogas; e aumento de pacientes afastados pela Previdência Social, principalmente por depressão e dependência química. Os serviços que já compunham a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) foram mantidos. A eles foram acrescentados outros tantos, tais como ambulatórios de saúde mental, hospitais psiquiátricos e hospitais-dia. Eles tinham sido retirados da RAPS, de maneira absolutamente irresponsável, o que havia levado ao fechamento de vários desses importantes serviços em todo o País, ocasionando desassistência aos pacientes e seus familiares. Além disso, criamos uma nova modalidade de Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), o CAPS AD-IV, voltado a regiões de cenas abertas de uso de drogas, com funcionamento 24 horas e presença obrigatória de equipe multiprofissional, incluindo médicos. E os leitos de Psiquiatria em hospitais gerais passaram a funcionar, obrigatoriamente, em enfermarias, com a presença de equipe especializada, incluindo psiquiatras. [3] Desde o ano de 2017, novas normativas foram publicadas, com o objetivo de corrigir falhas e suprir carências na assistência psiquiátrica “Os problemas motivados pelas drogas têm alcançado cada vez mais pessoas na sociedade, porém com predileção pelos adolescentes”
S E R M É D I C O • 1 1 [4] FOTO: OSMAR BUSTOS [4] Ser — O atendimento promovido pela RAPS — que inclui desde os CAPS, serviços residenciais terapêuticos e leitos em hospitais gerais, entre outros — está bem estruturado no Estado? Ele é suficiente para a atenção à saúde mental da população? Quirino — Para que o tratamento dos pacientes com transtornos mentais decorrente do uso de substâncias químicas seja cada vez mais efetivo e integral — dando conta de diferentes necessidades nas distintas fases de suas doenças —, é fundamental que haja sempre a construção de uma rede assistencial de saúde ampla, composta por serviços plurais e em quantidade suficiente. Além disso, é importante que exista grande articulação da RAPS com outras redes de cuidados, como a socioassistencial. Outra meta que precisa ser sempre perseguida é o incremento constante da qualidade do profissional de saúde, incluindo, obviamente, o médico psiquiatra, que trabalha no tratamento dos pacientes no SUS. Além disso, outros dois pontos são cruciais para a melhoria do tratamento dos pacientes, como o estabelecimento de diretrizes clínicas e de linhas de cuidado, embasadas em critérios técnico-científicos; e realização de acompanhamento e monitoramento da RAPS, com metas e indicadores qualitativos e quantitativos. Todos esses tópicos fazem parte da nova Política Nacional de Saúde Mental. Os frequentadores da Cracolândia são escravos da doença e dos traficantes, muitas vezes com o beneplácito de grupos e de organizações que supostamente os defendem, segundo Cordeiro Júnior NOVO HUB DE CUIDADOS EM CRACK E OUTRAS DROGAS EM SÃO PAULO O Hub* de Cuidados em Crack e Outras Drogas é a nova porta de entrada para o tratamento da dependência química, e serviço organizador da trajetória terapêutica dos pacientes, visando à sua plena recuperação. Inaugurado em abril deste ano, após reforma das antigas instalações do Cratod, sob a gestão da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), a unidade realiza atendimento gratuito a pessoas que apresentam quadros graves decorrentes do uso abusivo de álcool e drogas, com demandas complexas de cuidado e tratamento. O objetivo é acolher esses pacientes, estabilizar os quadros mais agudos (psiquiátricos e clínicos) e os encaminhar para que deem continuidade ao tratamento em outros serviços de saúde e, também, de desenvolvimento social. O serviço funciona em regime de plantão ininterrupto (porta aberta), contando com mais de 40 médicos, em seu corpo clínico, e um total de 41 leitos, distribuídos em duas enfermarias de observação para estabilização de pacientes. Conta também com equipes de profissionais que realizam abordagens a pessoas em situação de rua, para mobilizá-las e levá-las para atendimento no serviço. *Hub é um conceito que designa um lugar ou espaço que agrega vários serviços ou produtos ao mesmo tempo.
[1] KOOL99/ISTOCK [1] avanço das pesquisas científicas sobre o funcionamento cerebral apontam para uma nova realidade, mas o cérebro humano não é o único protagonista dessa história. É provável que muitos neurocientistas e psiquiatras estejam se debruçando sobre as mais recentes descobertas no campo da Inteligência Artificial (IA), intrigados com a possibilidade de que as máquinas sejam capazes de adquirir consciência, pensamento crítico ou, ainda, emitir ordens de comando. Diante desse cenário distópico, o Homo sapiens sente-se virtualmente ameaçado em sua hegemonia na cadeia evolutiva. A boa notícia é que todo esse avanço tecnológico e de sisteD O S S I Ê : N E U R O C I Ê N C I A E PS I QU I ATR I A | H I S T Ó R I A mas computacionais também tem incrementado as pesquisas e o avanço científico nos campos da Neurociência e da Psiquiatria, que evoluem a passos largos. Desde as primeiras descobertas, envolvendo a identificação de neurônios e a criação da angiografia, ao uso de equipamentos de neuroimagem funcional — que mostra o cérebro em funcionamento e auxilia na identificação de estruturas para o tratamento de doenças degenerativas, como o Alzheimer — e às complexas neurocirurgias funcionais, entre elas, as de implante de eletrodos para reativar funções motoras ou as voltadas ao tratamento de transtornos psíquicos graves, são muitas as conquistas. S E R M É D I C O • 1 2 Imagem de RM funcional O Dos primórdios da Neurociência à Psiquiatria Intervencionista “Na verdade, ambas as disciplinas começaram juntas. Até há poucas décadas, o título da especialidade de Psiquiatria, na Alemanha, berço da psicopatologia, era ‘médico especialista para Psiquiatria e doenças dos nervosʼ (Facharzt für Psychiatrie und Nervenkrankheiten)”, afirma o professor titular de Psiquiatria e vice-presidente do Conselho Diretor do Instituto de Psiquiatria doHospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), Wagner Farid Gattaz. Segundo ele, a descoberta de causas “cerebrais” para doenças mentais alicerçou esse entrosamento. Como exemplo, a sífilis no cérebro como causa da demência, e as psicoses, por déficit de vitaminas. A introdução demétodos biológicos Aglaé Silvestre
S E R M É D I C O • 1 3 no tratamento de doenças, como a depressão e a esquizofrenia (por exemplo, tratamentos com cardiasol, insulina ou eletroconvulsoterapia), reforçaram esse vínculo. Os progressos da psicofarmacoterapia e o desenvolvimento de medicamentos eficazes para o tratamento de psicoses, depressões e oscilações bipolares do humor ajudarama desvendar os mecanismos de neurotransmissão na função cerebral. De acordo com Gattaz, nos anos 1950, houve interesse em estudos in vivo da anatomia cerebral por métodos de neuroimagem, como a pneumoencefalografia (GerdHuber e estudos do cérebro de pacientes com psicoses). E, a partir dos anos 1970, progressos nos métodos de imagem cerebral, como a tomografia computadorizada, a ressonância magnética e a tomografia por emissão de pósitrons, permitiram um estudo mais detalhado da anatomia e do metabolismo cerebrais em pacientes psiquiátricos. Nas últimas décadas, o desenvolvimento de terapias, como a estimulação magnética transcraniana e a estimulação por corrente contínua, aliou-se aos métodos medicamentosos, constituindo a subespecialidade ora denominada de Psiquiatria Intervencionista. Desde sua introdução no Reino Unido, em 1985, por Anthony Baker, o método consolidou-se como uma ferramenta útil na pesquisa neurocientífica e no tratamento da depressão (ver matéria na pág. 16). PRIMÓRDIOS DA NEUROCIÊNCIA Historicamente, a trepanação, que consiste na abertura de um ou mais orifícios no crânio, é tida como o procedimento cirúrgico mais antigo para o tratamento de doenças mentais. Seu registro data de milênios, tendo sido retratada empinturas rupestres, sugerindo um aspecto comum a diversas culturas. Do Neolítico europeu ao período pré- -colombiano americano, foi utilizada na crença de que pudesse curar epilepsia, enxaquecas ou transtornos cerebrais causados por motivos espirituais. O método foi retratado no século 15 pelo pintor renascentista Hieronymus Bosch, na ocasião da extração da chamada “pedra da loucura” (ver figura na pág. 14). O cérebro já era descrito em papiros por volta de 1.700 a.C., mas, ao que parece, os egípcios não lhe atribuíam grande valor. Diferentemente de outros órgãos, ele era removido e descartado antes da mumificação, sugerindo a crença de que não seria útil nas encarnações seguintes. No entanto, por volta de 450 a.C., os gregos começam a dar importância ao cérebro e o reconhecem como centro das sensações humanas e dos processos mentais. Um pouco mais tarde, Hipócrates escreve um tratado sobre o cérebro, revelando mais detalhes sobre a trepanação. Já em Roma, por volta de 170 d.C., o médico de origem grega, Cláudio Galeno — considerado o pai da Anatomia — reforçou essas ideias, ao propor que o cérebro era o centro das sensações, da fala, do intelecto e da consciência. Influenciado pelas teorias de Hipócrates, ele considerava o temperamento humano como resultante da interação entre quatro humores, descritos como líquidos armazenados em partes do cérebro. FUNÇÕES CEREBRAIS Por volta de 1664, Thomas Willis, médico inglês da Universidade de Oxford, tentou aproximar a Anatomia, a Fisiologia e a Química dos achados clínicos de patologia nervosa. Ele descreveu o “Polígono de Willis”, um complexo vascular na base do cérebro, cuja principal função é permitir o fornecimento de um fluxo sanguíneo colateral entre os sistemas arteriais anterior e posterior do cérebro. O conhecimento científico sobre o funcionamento do sistema nervoso avança ainda mais no século 18, com a descoberta do médico Luigi Galvani, de que os neurônios funcionam a partir de impulsos elétricos. Dois cientistas foram premiados com o Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1906, por descobertas que impulsionaram fortemente a Neurociência. O médico italiano Camillo Golgi, por suas pesquisas envolvendo o modo de observar os nervos, tratando o tecido do cérebro com uma solução de nitrato de prata; e o médico espanhol, Santiago Ramón y Cajal, que, usando essa técnica de coloração histológica desenvolvida pelo seu contemporâneo, postulou que o A compreensão do funcionamento do sistema nervoso avança ainda mais no século 18, com a descoberta de que os neurônios funcionam a partir de impulsos elétricos
sistema nervoso é composto por bilhões de neurônios distintos e que essas células se encontram polarizadas. Ramón y Cajal sugeriu que os neurônios, em vez de formarem uma teia contínua, comunicam-se entre si através de ligações especializadas chamadas sinapses, indicando que a unidade individual do sistema nervoso é o neurônio. Por este trabalho, Ramón y Cajal e Golgi compartilharam a premiação do Nobel. GENÉTICA PSIQUIÁTRICA No início do século 20, Alois Alzheimer, psiquiatra e neuropatologista alemão, descreve uma doença degenerativa pré-senil observada na paciente Auguste D, de 51 anos, no AsiloMunicipal para Lunáticos e EpiD O S S I Ê : N E U R O C I Ê N C I A E PS I QU I ATR I A | H I S T Ó R I A 1 4 • S E R M É D I C O lépticos, em Frankfurt. Na época, a demência era considerada uma condição inerente ao envelhecimento. Por essaocasião, opsiquiatraalemão Emil Kraepelin — citado como criador da moderna Psiquiatria e Genética Psiquiátrica — trabalhou com Alois Alzheimer e publicou trabalhos reforçando a teoria de que a condição de Auguste era uma enfermidade. Em 1910, para a oitava edição de seu manual de psiquiatria, Kraepelin nomeou a patologia como Alzheimerische Krankheit, em homenagem ao colega. Kraepelin foi o primeiro a sugerir que as doenças psiquiátricas são principalmente causadas por desordens genéticas e orgânicas. Sua principal contribuição para a Psiquiatria moderna foi a distinção SÉCULO 16 Trepanação, primeiro tipo de cirurgia cerebral, retratada pelo pintor holandês Hieronymus Bosch na obra A Extração da Pedra da Loucura SÉCULO 17 O médico inglês, Thomas Willis, descreve o “Polígono de Willis” SÉCULOS 19 E 20 Emil Kraepelin explica clinicamente a psicose maníaco-depressiva e a esquizofrenia, em 1899 Alois Alzheimer descreve a doença que leva seu nome, em 1906 [2] [4] [5] [3] LINHA DO TEMPO entre esquizofrenia e psicose maníaco-depressiva. As teorias de Kraepelin sobre a etiologia e diagnóstico de perturbações psiquiátricas são a base dos maiores sistemas diagnósticos utilizados até hoje, especificamente o DSM 5, da Associação Americana de Psiquiatria, e o CID 10, da Organização Mundial da Saúde. LOBOTOMIA O neurocirurgião português António Egas Moniz foi responsável pela criação da angiografia cerebral, primeiro exame a captar imagens do cérebro, o que viabilizou o diagnóstico e tratamento de tumores cerebrais e outras doenças. Também desenvolveu o procedimento neurocirúrgico denominado leucoto- [2] HIERONYMUS BOSCH [3] BIBLIOTECA DE IMAGENS DE CIÊNCIA E SOCIEDADE [4] C. SCHULZ (STUDIO) [5] ALZHEIMER360
1949 António Egas Moniz recebe o Nobel de Fisiologia ou Medicina — partilhado com o fisiologista suíço Walter Rudolf Hess — pela invenção da leucotomia pré-frontal, conhecida como lobotomia, proscrita posteriormente devido a efeitos adversos e mau uso da técnica 1990 A Estimulação Magnética Transcraniana (EMT) começa a ser aplicada para tratamento da depressão SÉCULO 21 Primeiro tratamento utilizando terapia gênica no País é autorizado em 2020 para doença neurológica S E R M É D I C O • 1 5 mia pré-frontal, mais conhecido como lobotomia, possibilitando o surgimento das psicocirurgias. A lobotomia foi utilizada em pacientes de instituições asilares brasileiras até a década de 50. A intervenção consistia em desligar os lobos frontais direito e esquerdo de todo o encéfalo, visando modificar comportamentos ou curar doenças mentais. A leucotomia pré-frontal, no entanto, foi utilizada indiscriminadamente e se mostrou uma técnica inadequada e radical para tratar transtornos psiquiátricos, com maiores malefícios do que benefícios. Por isso, acabou sendo proscrita. Novas técnicas neurocirúrgicas para tratar transtornos psiquiátricos surgiram, agora evitando os erros cometidos com a lobotomia, como descrito em Vanguarda. Por esta descoberta, Moniz foi premiado com o Nobel de Fisiologia ou Medicina, em 1949, partilhado com o fisiologista suíço Walter Rudolf Hess. Mais tarde, os físicos Felix Bloch e Edward Mills Purcell, laureados com o Prêmio Nobel de Física de 1952, desenvolveram técnicas de medição de campos magnéticos nucleares. A partir da década de 1980, a Ressonância Magnética (RM) passou a ser incorporada à prática clínica como um dos métodos de imagem fundamentais para o diagnóstico de diversas doenças. A DÉCADA DO CÉREBRO Os anos 1990 foram considerados como a Década do Cérebro, quando tiveram impulso novos testes e procedimentos para investigação e tratamento de distúrbios do sistema nervoso, como, por exemplo, a Estimulação Magnética Transcraniana (EMT). Também estão em desenvolvimento pesquisas sobre tratamentos específicos para males degenerativos, como a doença de Huntington, Parkinson e Alzheimer, com medicações específicas e por meio da terapia gênica, tecnologia introduzida no Brasil em 2020, para o tratamento da atrofia espinhal muscular. Fonte Moraes, Alberto Parahyba Quartim de – O livro do cérebro. Vol. 1. São Paulo-SP, Editora Duetto [6] [7] [8] [9] [6] AUTOR DESCONHECIDO [7] FUNDAÇÃO NOBEL [8] MVZ PARA NEUROLOGIA E PSIQUIATRIA HENNEF GBR [9] METAMORWORKS/ISTOCK
[1] 1 6 • S E R M É D I C O D O S S I Ê : N E U R O C I Ê N C I A E PS I QU I ATR I A | PA N O R AM A [1] FOTO: OSMAR BUSTOS Equipamento de estimulação transcraniana portátil Técnicas intervencionistas são alternativas eficazes de tratamento para transtornos mentais Andre Russowsky Brunoni* Algumas técnicas ainda são experimentais ou estão associadas a efeitos colaterais, mas têm mostrado bons resultados Diferentes técnicas intervencionistas estão sendo desenvolvidas na área da Psiquiatria, com o avanço da tecnologia, oferecendo novas opções para o tratamento de transtornos mentais, especialmente em casos de depressão resistente. Somando-se à Eletroconvulsoterapia (ECT), também modernizada, podemos citar a Estimulação Magnética Transcraniana (EMT), Magnetoconvulsoterapia (MST), Estimulação Transcraniana por Corrente Contínua (ETCC) e Estimulação Cerebral Profunda (ECP). A ECT, que envolve a aplicação de corrente elétrica no cérebro
S E R M É D I C O • 1 7 [2] FOTO: OSMAR BUSTOS para induzir uma convulsão terapêutica, é uma técnica que tem mostrado ser eficaz no tratamento da depressão resistente e de outros transtornos mentais graves. No entanto, pode estar associada a efeitos colaterais, como perda de memória e confusão temporária. A EMT é uma técnica não invasiva que utiliza campos magnéticos para estimular áreas específicas do cérebro, com o objetivo de melhorar os sintomas da depressão e de outros transtornos mentais. Aprovada desde 2012 para uso clínico, pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), a EMT tem sido eficiente no tratamento da depressão resistente, apresentando poucos efeitos colaterais. Estudos recentes mostram uma remissão de até 90% com protocolos avançados. Dentre as técnicas experimentais e investigativas, a MST utiliza um campo magnético de alta intensidade para induzir convulsões terapêuticas, sem a necessidade de aplicar corrente elétrica no cérebro. A MST é promissora no tratamento da depressão resistente, com menos efeitos colaterais do que a ECT. Já a ETCC utiliza uma corrente elétrica de baixa intensidade para estimular áreas específicas do cérebro, visando melhorar os sintomas da depressão e de outros transtornos mentais. A técnica vem apresentando bons resultados no tratamento da depressão resistente, com poucos efeitos colaterais. No entanto, ainda está em fase de estudos e requer mais pesquisas para avaliar sua eficácia a longo prazo. Por fim, a ECP é uma técnica que consiste na implantação de um dispositivo no cérebro, que estimula áreas cerebrais específicas com corrente elétrica. A intervenção tem sido utilizada no tratamento de transtornos, como doença de Parkinson e epilepsia, e é estudada como opção terapêutica para a depressão resistente. No entanto, é uma técnica invasiva que apresenta riscos de efeitos colaterais, como infecções e sangramentos. TREINAMENTO Em resumo, existem várias técnicas intervencionistas disponíveis atualmente para o tratamento da depressão resistente e outros transtornos mentais, cada uma com suas vantagens e desvantagens. É importante que o psiquiatra seja treinado e avalie cada uma delas. Desde 2020, oferecemos o primeiro fellowship em Psiquiatria Intervencionista do Brasil, no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq/HC-FMUSP). Esse programa conta com duração de um ano e oferece treinamento prático aprofundado na área. Os participantes ainda circulam pelo Serviço de Cetamina, que também tem se revelado um tratamento altamente eficaz para depressão. *Professor doutor da FMUSP; coordenador do fellowship em Psiquiatria Intervencionista e diretor do Serviço Interdisciplinar de Neuromodulação do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP. Pesquisador, com artigos publicados nas revistas Lancet e New England Journal of Medicine [2] Brunoni junto ao equipamento de Estimulação Magnética Transcraniana do IPq/HCFMUSP
1 8 • S E R M É D I C O D O S S I Ê : N E U R O C I Ê N C I A E PS I QU I ATR I A | PA N O R AM A estimulação cerebral por meio de correntes elétricas foi aplicada para minimizar efeitos de doenças de diversas formas ao longo da história. Remonta ao século 1 d.C, o uso de descargas elétricas de peixes para aliviar dores de cabeça, dentre outros males, por exemplo. Entretanto, comparada às do passado, as práticas atuais contam com suportes avançados e melhores técnicas de analgesia e sedação, além de terem passado por importantes mudanças em relação ao controle da intensidade e modulação de correntes, ao tempo de aplicação e à duração dos efeitos, entre outras. Suas aplicabilidades também estão subordinadas aos avanços dos protocolos científicos, que regem tanto as práticas oficialmente aprovadas quanto as experimentais. Nesse contexto, alguns procedimentos atuais são consequência de um aprimoramento de técnicas ou condutas conhecidas. Para possibilitar a indução de uma crise convulsiva, a eletroconvulsoterapia (ECT) — que já era utilizada na década de 1930, sendo conhecida no meio leigo como “eletrochoque” — tem sua prática atual acompanhada por modernos recursos de sedação e analgesia, além de instrumentos essenciais de monitorização, que complementam esse procedimento, de acordo com protocolos de segurança do paciente bem estabelecidos. Já o desenvolvimento da Magnetoconvulsoterapia (MST) — prática ainda experimental — é consequência da tentativa de aliar algumas efetividades da ECT a uma técnica com menos efeitos adversos, que evoluiu significativamente ao longo das duas últimas décadas. A primeira convulsão induzida por MST em animal anestesiado foi realizada em 1998. Já o primeiro tratamento em humano foi iniciado no ano de 2000, na Suíça, em uma paciente de aproximadamente 20 anos de idade, com depressão refratária às medicações. A MST foi administrada com igual terapêutica anestésica e em recinto similar ao utilizado para ECT. A estimulação magnética de alta instensidade foi aplicada três vezes por semana e, após quatro aplicações, a paciente demonstrou uma queda de 50% nos escores de depressão. A Estimulação Magnética Transcraniana (EMT) e a Estimulação Transcraniana por Corrente Contínua (ETCC) são técnicas de neuromodulação que têm se destacado como alternativas terapêuticas. Descrita por Anthony Barker, em 1985, como um método não invasivo e indolor, a EMT é um procedimento mais simples, que dispensa sedação, anestesia ou ambiente especializado, como hospitais, podendo ser realizado em uma clínica, com resposta, geralmente, em quatro semanas. O Procedimentos foram aprimorados e dispõem de melhores recursos e suporte Algumas condutas e equipamentos em Psiquiatria Intervencionista dispensam analgesia e sedação, sendo considerados simples e de baixo custo Da Redação A
EMT é uma técnica não invasiva que estimula áreas específicas Ilustração de ECT, técnica que, embora eficaz, está associada a efeitos colaterais [4] [3] S E R M É D I C O • 1 9 [3] FOTO: OSMAR BUSTOS [4] ART4STOCK/ISTOCK paciente pode permanecer acordado durante a sessão, e o aparelho gerador de campo magnético é posicionado próximo à região do crânio correspondente à disfunção a ser tratada. Da mesma forma, a ETCC dispensa sedação e utiliza equipamentos com eletrodos simples e de baixo custo. Os eletrodos são posicionados sobre a área do córtex a ser estimulada, liberando uma corrente elétrica contínua por um período que varia de 3 a 20 minutos. Os efeitos alcançados são diferentes, dependendo da polaridade da corrente elétrica escolhida. Por exemplo, com o estímulo de corrente anódica, registra-se o aumento na excitabilidade cortical, enquanto o de corrente catódica promove efeito oposto. Já a Estimulação Cerebral Profunda (ECP) é um procedimento neurocirúrgico que utiliza eletrodo intracraniano e, também, um marca-passo implantado um pouco abaixo da clavícula do paciente — técnica esta já utilizada no tratamento da doença de Parkinson, entre outras. Na ECP, a colocação dos eletrodos intracranianos realiza-se por craniotomia, com anestesia local, de forma que permita a monitorização clínica para possibilitar a localização mais precisa dos alvos terapêuticos e a vigilância de complicações. De maneira geral, as atuais alternativas da Psiquiatria Intervencionista vêm se tornando cada vez mais acessíveis, embora cada um dos procedimentos requeiram técnicas específicas para garantir sua segurança e eficácia. Fontes e referências Scielo. Eletroconvulsoterapia na depressão maior: aspectos atuais - https://www.scielo.br Pubmed - Transcranial magnetic stimulation: applications in neuropsychiatry - M S George 1, S H Lisanby, H A Sackeim Revista da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia https://revistas.rcaap.pt/anestesiologia/article/ view/3380 As práticas atuais contam com suportes avançados e de melhores técnicas de analgesia e sedação
RkJQdWJsaXNoZXIy NjAzNTg=