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Entrevista


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Crônica


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Dossiê: Psiquiatria/ História


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Dossiê: Psiquiatria/ Estatísticas


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Dossiê: Psiquiatria/ Transtornos do Humor


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Dossiê: Psiquiatria/ Suicídio


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Dossiê: Psiquiatria/ Vanguarda


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Tecnologia - Telemedicina


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Medicina no mundo


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Gourmet


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Resenha


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Fotopoesia


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Edição 86 - Janeiro/Fevereiro/Março de 2019

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Entrevista

A vitória especial do dr. Enã

Se para todos os formandos de Medicina, a diplomação – depois de tanto esforço e
anos de estudo – é a celebração de uma grande vitória, para Enã Rezende, 26 anos, esse momento foi particularmente especial, importante e comemorado. Afinal, quando
criança, uma professora chegou a dizer que ele não poderia sequer se alfabetizar. Portador de Transtorno do Espectro Autista (TEA) leve, Enã, com o apoio de sua mãe e de toda a família, não apenas se alfabetizou como nunca teve uma reprovação escolar, conseguindo realizar o sonho de ser médico que o acompanhava desde a morte do pai, quando tinha sete anos.

Enã formou-se em 15 de janeiro deste ano, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Cuiabá (Unic), no Mato Grosso. De Rondonópolis, no mesmo Estado, onde vivia com a família, ele se mudou para a capital matogrossense para poder cursar a faculdade, morando sozinho e adquirindo mais independência e autonomia. Além da paixão pela Medicina, sempre foi um leitor ávido, escreve artigos, crônicas e poesias, e gosta de desenhar e jogar xadrez.

O bullying e as incompreensões que sofreu desde a infância nunca o fizeram pensar em desistir do sonho de ser médico. Com a certeza de quem está atingindo seus objetivos, ele diz aos que enfrentam dificuldades na busca de seus ideais: "não desistam, levantem a cabeça, lutem, corram atrás de seus sonhos. Haverá dificuldades, mas elas não os tornam incapazes". E cita Fernando Pessoa: "Pedras no caminho, guardo todas, um dia vou construir um castelo".

"Espero ser um médico preocupado com o lado humano e nunca me permitir ser dominado pela arrogância"

Ser — Quando surgiu seu interesse pela Medicina?

Enã — Meu pai faleceu quando eu tinha sete anos e isso me levou a questionar, principalmente, o fato de outras crianças terem pai ou não. A partir daí comecei a me interessar por medicina. Com dez anos de idade, um manual de primeiros socorros que li no carro reforçou meu interesse de querer fazer o bem e ajudar o próximo. O manual
daquela época estava cheio de condutas que não utilizamos mais nos primeiros socorros, porém, vi nele os meios de poder salvar a vida de pessoas.

Ser — O que o encanta na medicina? Que tipo de médico você quer ser?

Enã — Acredito muito em Deus e vejo o homem como sendo criação Dele, com suas complexidades. O fato de estar lidando diretamente com a criação de Deus é algo que
por si só já me fascina. Espero ser um médico preocupado com o lado humano e nunca me permitir ser dominado pela arrogância. Tenho uma coletânea de profissionais que
admiro, entre eles Ambroise Paré, cirurgião francês do século 14, que se caracterizou tanto por suas proezas quanto por sua humildade. Quando alcançava o sucesso em
um tratamento e o parabenizavam ele costumava dizer a seguinte frase: “Eu o tratei, Deus o curou.”

Ser — Quais são suas expectativas para o futuro?

Enã — Tenho o sonho de ser neurocirurgião e poder trabalhar com estudos e pesquisas relacionadas a essa área. Quero ajudar as pessoas por meio da neurocirurgia. Acredito
que a morte do meu pai foi também o embrião para hoje eu querer essa especialidade, uma vez que ele sofreu traumatismo cranioencefálico e eu ficava curioso sobre o assunto. A vida do meu pai não pôde ser salva, mas quero evitar que outras crianças fiquem sem pai. A neurocirurgia me fascina pela complexidade do cérebro humano. Fui
monitor de neuroanatomia, passei em primeiro lugar na prova da Liga Acadêmica de Neurologia e Neurocirurgia e isso reforçou minha percepção de que era esse caminho
que eu deveria seguir.Além disso, sonho em prestar alguma contribuição relevante para a humanidade. Ajudar o próximo. Na vida, em geral, meus objetivos consistem em trabalhar e continuar estudando para a Residência. Aliás, não só para a Residência. Enquanto viver não pretendo parar de estudar. Os demais objetivos da vida são casar
e construir uma família.

Ser — Teve algo no curso de Medicina que, momentaneamente, fez você repensar sobre a carreira médica?

Enã — Sim, de um modo geral, quando lidava com alguma matériaem relação à qual tinha um pouco mais de dificuldade, às vezes repensava, porém já estava decidido que iria até o final e nada me atrapalharia. Desistir mesmo, nunca pensei. No início, tive um pouco de dificuldade na “relação médicopaciente”. Consegui desenvolvê-la bem somente com a prática. Outro empecilho para mim foi o número exorbitante de matérias que tinham muito conteúdo para pouco tempo de estudo, como a pediatria. Mas, o que importa é que no fim tudo deu certo.

Ser — Você sofreu bullying nas escolas pelas quais passou?

Enã — Sim, sofri. As pessoas me achavam esquisito, me chamavam de louco, retardado, e me isolavam, não me deixando brincar com elas. Geralmente eu não reagia, não fazia nada. No início, ficava com a autoestima muito baixa, sentindo-me inferior, mas depois percebi que precisava me superar e vencer na vida. Então fui me desafiando cada vez mais.

Ser — E no curso de Medicina, como era sua relação com os professores e colegas?

Enã — Aconteceu de ter algumas pessoas que diziam não ter paciência e, por isso, não queriam formar grupo comigo. Algumas delas, depois, aprenderam a conviver comigo e se tornaram bons amigos. Outros colegas foram super compreensivos desde o início e me ajudaram bastante. Quanto aos professores, sempre tive uma relação muito boa com todos eles, sempre foram super compreensivos.

Ser — O apoio de sua família foi fundamental?

Eña — Extremamente. A família me ajudou e me incentivou muito a continuar firme em meu propósito.O apoio se deu, principalmente, em forma de incentivo, tanto emocional quanto financeiro. Essas atitudes foram decisivas para me ajudar a continuar seguindo
em frente, sabendo que não estava sozinho. Não tenho do que reclamar. Minha relação com minha mãe, meu padrasto, meu irmão e irmã é ótima. A Isabelle, minha irmã, que também é autista, traz muitas alegrias para a casa; é um anjo para nós.

Ser — A Medicina pode ser vista como um agente transformador para você?

Eña — Sim, é um agente transformador e quando bem praticada faz toda a diferença tanto no âmbito fisico, quanto mental e social. É um universo à parte, e grande parte dele ainda não foi explorado. A medicina me ajudou a compreender melhor a complexidade do ser humano e como cada indivíduo, neurotípico ou não, é único. Dessa forma, me ajudou a superar meu preconceito e a aceitar minhas próprias diferenças.

Ser — Qual julga ser sua maior dificuldade?

Enã — Ser aceito pela sociedade como capaz de exercer minha profissão, uma vez que sou totalmente capaz, tendo passado pelas mesmas etapas que meus colegas passaram e superando todas elas.

Ser — Você acha que o TEA pode ser um empecilho na sua profissão? Acredita que sofrerá algum tipo de preconceito por parte de pacientes?

Enã — Acredito que não, uma vez que ao longo da faculdade aprendi a desenvolver as habilidades sociais para uma boa relação médicopaciente. Porém, penso que se alguns
pacientes souberem que sou portador de TEA e desconhecerem o assunto, talvez venham a agir de forma preconceituosa, mas estou preparado para o que der e vier.

Ser — Qual sua opinião sobre o modo como a sociedade e a própria comunidade médica encara o TEA?

Enã — Infelizmente, tanto a sociedade em geral, quanto o meio médico, ainda têm pouco conhecimento sobre o assunto. O autismo é pouco abordado, ou, simplesmente, nem é tratado nas universidades. Assim, muitos médicos acabam não sabendo como lidar com um paciente com TEA. É preciso debater e falar mais sobre o assunto. Dificuldades todos temos, é natural do ser humano, tanto neurotípicos quanto autistas.
Todos têm dificuldades, porém não são incapacidades. Autistas são capazes de fazer muita coisa e de desenvolver muitas habilidades. Segregar um autista e impedir que
ele expresse suas habilidades é um ato de sabotagem para com a sociedade, uma vez que ele tem muito a contribuir.

Ser — Há alguém em que você se inspire?

Enã — Sim, em Cristo, principalmente, e em Martin Luther King Jr., que lutou contra o racismo nos Estados Unidos, mostrando que ninguém podia dizer a ele e aos afro-americanos o que devem fazer e onde devem ficar, que eles são livres e devem lutar pelos seus direitos. E, também, Mahatma Gandhi. É difícil gostar de Luther King e não gostar de Gandhi, pois ambos tinham a mesma filosofia da não violência, da qual sou defensor.

Ser — Você gosta de escrever... Que tipo de texto prefere?

Enã — Sempre gostei muito de ler. Tenho a leitura como hábito e sempre gostei muito, também, de ensinar e transmitir os conhecimentos que aprendi, pois vejo o conhecimento como uma dádiva da humanidade que deve ser compartilhado. Por isso, sempre gostei de escrever, até como uma forma de relaxar. Gosto de escrever um pouco de tudo, poesias, crônicas, artigos, pensamentos, contos. Sou muito eclético com a escrita. Antigamente, escrevia no site Recanto das Letras. A plataforma acabou
me ajudando muito a melhorar minha escrita, mas já há algum tempo não escrevo mais lá.

Ser — Também gosta de desenhar...

Enã — No curso de desenho, rosto era o que eu tinha mais dificuldade em fazer, por isso acabei procurando me aprofundar e me aperfeiçoar nessa técnica. O desenho me levou a ter ainda mais interesse pela leitura, pois eu gostava de desenhar os personagens históricos de livros de história e sabia que poderiam me perguntar quem era aquela pessoa que eu tinha desenhado. Para não passar por alguém que não sabia, passei a pesquisar sobre a vida dos personagens que eu desenhava, hábito que tenho até hoje. Por isso, as primeiras leituras pelas quais me interessei foram as biografias.

Ser — Que conselho você daria paraqueles que, por algum motivo, são julgados como "incapazes" de alcançar suas metas?

Enã — Não desistam de seus objetivos, levantem a cabeça, lutem, corram atrás de seus sonhos. Haverá dificuldades, mas elas não os tornam incapazes. "Pedras no caminho, guardo todas, um dia vou construir um castelo." (Fernando Pessoa).

Família unida na luta contra a discriminação do TEA

A difícil experiência de ter visto dois dos três filhos sofrerem bullying por serem autistas motivou a mãe de Enã, Érica Rezende, a criar, em 2017, um programa de inclusão
social denominado Autismo na escola, com a colaboração de seu marido, Célio Luciano Barbieri, e toda a família. Segundo ela, a exclusão de pessoas autistas na sociedade está relacionada à falta de informação.

"O autismo é um assunto complexo para a maioria das pessoas, por isso é preciso informá-las. É importante que as crianças e jovens entendam o comportamento de uma
pessoa autista e aprendam a respeitá-la”, afirma a psicóloga.

O programa já passou por mais de 50 escolas em Cuiabá, Rondonópolis, Primavera do Leste, no estado do Mato Grosso; e Itiquira, Goiânia; e Mineiros, em Goiás, além de
empresas e hospitais mato-grossenses, com resultados muito positivos, segundo Érica. Cartilhas, vídeos e slides sobre o autismo estão disponíveis no site do programa
www.projetoautismonaescola.com.br.

Depoimento de Érica, mãe de enã e criadora do projeto de inclusão social autismo a escola

"Quando Enã nasceu, eu já cursava Psicologia e, desde cedo, percebi algo que
considerei "diferente" no desenvolvimento dele; aprendia rapidamente tudo que era
ensinado, coisas bem complexas para a idade dele e eu ficava encantada. Ainda
quando criança, apresentou interesse pelo desenho.

Desde cedo, ele tinha hiperfoco. Em relação à aquisição da linguagem, desenvolveu ecolalia, uma forma de afasia em que a pessoa repete mecanicamente palavras ou frases que ouve. Teve também dificuldade de articular determinadas palavras. Por isso, fez tratamento com fonoaudióloga por alguns anos. Som e luz em excesso sempre o incomodaram.

Aos dois anos e meio recebemos o primeiro diagnóstico, de psicose infantil. Porém, após o nascimento da irmã, que aos dois anos foi diagnosticada com autismo, retomamos a questão do diagnóstico em relação ao Enã. E, hoje, é de Transtorno do
Espectro Autista Leve (anteriormente denominado de Síndrome de Aspeger).

Durante o período de alfabetização, Enã não conseguia compreender de maneira alguma a metodologia que estava sendo aplicada, embora seja extremamente eficaz. Uma professora me disse que ele não seria alfabetizado. Fiquei intrigada com essa fala e mudei-o de escola. Observei que com a mudança de metodologia, passando para uma mais tradicional, mais centrada no professor, ele rapidamente evoluiu na leitura e na escrita, tornando-se um apaixonado por livros. E, assim, seguiu normalmente sem ser reprovado em nenhuma série.

Eña tinha poucos amigos, mais especificamente um por ano, embora tivesse um ótimo relacionamento com os demais colegas. Nunca esboçou agressividade com qualquer pessoa, mesmo quando a situação o incomodava bastante. Nesse caso, sofria internamente. Conversávamos muito sobre todos os assuntos e sempre digo que ele me estimulava.

Quando algo lhe interessava, ele falava sem parar e isso, muitas vezes, causou desconforto em outras pessoas. Situações como corrigir erros de professores em sala de aula nem sempre foram bem recebidas, embora ele o fizesse no intuito de  ajudar. Para entender piadas e palavras de duplo sentido foram anos de treinos. Essas coisas o deixavam muito desconfortável, mas atualmente ele mesmo ri desse período.

Ao vê-lo se formar como médico, fiquei muito emocionada. Passa um filme de toda história que vivemos e superamos em relação ao preconceito, mas confesso que veio junto a preocupação da inserção dele no mercado de trabalho e como será recebido. São etapas a serem superadas uma a uma. Nosso país tem muito que evoluir ainda no que tange à inclusão. Sonho com o dia em que seremos avaliados por nossas habilidades ao invés de "julgados" por nossas diferenças.

Colaborou: Júlia Remer


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