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Edição 85 - Outubro/Novembro/Dezembro de 2018

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Crônica

Eu poderia chorar?

Por Nicole Inforsato*

Em meio a um plantão, perguntei-me em que momento aprendemos a dar noticias ruins. Ninguém havia me ensinado.

Era residente do segundo ano de Cirurgia Geral quando me dei conta da real responsabilidade de minhas palavras na memória de alguém. Nenhuma especialidade nos exime disso. Entregamos más notícias desde a nossa formação acadêmica. Mas, naquele dia, de alguma forma, parei para refletir. Fiz paralelos, me comparei. Não me lembro do dia da semana ou do mês. Afinal, era apenas mais um plantão noturno da residência.

O resgate trouxe um homem, idade do meu irmão. Homem? Nada. Trouxe um menino. Era jovem demais.

Acidente de moto na estrada entre o litoral e a capital. Entre suas pernas, sobre a prancha suja de manchas de sangue, um capacete branco arranhado. Não terminamos o atendimento inicial. Logo ele perdeu o pulso e instalou-se o caos controlado de uma ressuscitação cardiopulmonar em uma sala de trauma no avançar da madrugada.
Sua vida, ali, virara muitas coisas. Ao hospital, papéis. Ao sistema, estatística. A mim, aprendizado. À família, saudades...

Voltei aos que, vivos, resistiam. Não muito emocionada, confesso. A rotina tira, com certa sorte, o choque da morte. E o plantão se arrastou entre as macas, exames, prescrições e demais afazeres antes da visita da manhã. Foi então que vi o capacete branco arranhado novamente. Estava nas mãos de um rapaz ansioso, na porta da sala do trauma. Sozinho.

A morte não mais me assustava. O problema era falar sobre ela aos vivos.Levei-o para uma sala de atendimento. Sozinhos. Sentei e pedi que fizesse o mesmo. Não fez.

Meu coração acelerado provocava dificuldades na constância da minha voz. Era o irmão mais novo. Tinha minha idade.

Informei todo o acontecido: o acidente, o transporte, o atendimento, a gravidade, as tentativas — o fracasso.

Deixei claro que seu irmão não estava mais entre nós mas sem dizer as palavras definidoras. É difícil dizer.

Ele continuou me olhando, imóvel. Havia nele a esperança de um milagre que eu estava prestes a retirar. E senti laivos de raiva por aquela esperança me obrigar a ser dura e definitiva.

“Sinto muito, seu irmão morreu...”Nunca é fácil dizer. Nem a um pai. Nem a um filho. Na verdade, não há Espírito Santo que alivie a dor dessas palavras.
Seu corpo bateu contra a parede da sala e ele foi deixando os joelhos dobrarem até sentar ao chão, abraçado ao capacete branco. Não falou comigo. Falou com seu irmão.

“Cara, como você pode fazer isso com o papai e com a mamãe? Ela disse para você não vir de moto! Você é teimoso! O que eu vou falar para eles agora?”. Finalmente começou a chorar, copiosamente. Eu escondia minhas lágrimas entre meus dedos antes de escorrerem. Eu poderia chorar? Não sabia.

Suas costas apoiavam-se contra a porta do consultório. Estávamos presos ali com sua dor, mudos e de cabeça baixa, ouvindo apenas o seu lamentar. Estava assustado. Eu também.

Não lembro qual era o dia da semana ou do mês. Ele lembraria, eu sabia. Do dia, dos segundos, do meu rosto. Eu agora fazia parte daquela cicatriz. E ele, sem nunca ter sido meu paciente, ensinou-me mais sobre medicina do que o irmão que eu havia atendido. Da mesma forma que a profissão tinha me posto como responsável em entregar a ele aquelas más notícias, sabia que tinha posto nele o fardo de fazer o mesmo com seus pais.

E ele tinha minha idade, mas não era médico.

E ninguém havia ensinado a ele.

E nunca é fácil.

* Nicole Inforsato é cirurgiã vascular formada pela FMUSP e médica assistente do pronto-socorro de Cirurgia Vascular do Hospital das Clínicas (HC) da mesma universidade.
Marina Ravagnani Congali (ilustração) é oftalmologista formada pela FMUSP e preceptora de Oftalmologia do HC
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