CAPA
PÁGINA 1
Ponto de partida
PÁGINA 4 a 9
Entrevista
PÁGINA 10 e 11
Crônica
PÁGINA 12 a 15
Conjuntura
PÁGINA 16 a 19
Vanguarda
PÁGINA 20 a 26
Debate
PÁGINA 27 A 29
Em foco
PÁGINA 30 E 31
Giramundo
PÁGINA 32 E 33
Ponto com
PÁGINA 34 E 35
Hobby
PÁGINA 38 a 40
Cultura
PÁGINA 42 A 46
Turismo
PÁGINA 47
Médicos que escrevem
PÁGINA 48
Fotopoesia
GALERIA DE FOTOS
PÁGINA 4 a 9
Entrevista
Sérgio Ibiapina
Eutanásia ativa e suicídio assistido
Para o bioeticista, o que dificulta a reflexão desses temas é a formação médica e a objeção de consciência sustentada por convicção religiosa
Concília Ortona*
"Não há dignidade na morte - nem na vida - sem a liberdade de decidir"
Por que é tão complexo e doloroso aos médicos refletirem sobre “disponibilidade da vida” do paciente, que conduz a possibilidades como o suicídio assistido – quando alguém que não consegue concretizar por si a intenção de morrer, pede ajuda a quem lhe assiste –, ou mesmo, a eutanásia, que demanda ação e decisão do profissional?
No Brasil, o tema continua tabu. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal, além de crime, é infração à ética, conforme estabelece o Código de Ética Médica em seu Art. 41. Tanto que são raríssimos os médicos dispostos a falar abertamente sobre o assunto, como fez em várias ocasiões o professor de Bioética, Sérgio Ibiapina Ferreira da Costa. A última delas foi no mais recente Congresso Brasileiro de Bioética, em Recife – no qual abordou a Finitude da Vida Humana, em especial o direito de o paciente tomar decisões autônomas nessa fase delicada –, e, agora, em entrevista à Ser Médico.
Com a autoridade de quem foi presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), onde também editou, por anos, a revista Bioética; fundou a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB); e é autor de vários livros e artigos sobre este universo, Ibiapina é taxativo ao afirmar que “uma morte digna é muito mais do que uma morte sem sofrimento”. Para muitos, acrescenta, “não é a dor ou a incapacidade o que torna a morte indigna, mas a negação do próprio controle do processo de morrer, porque não há dignidade na morte – nem na vida – sem a liberdade de decidir”.
Nesse aspecto, “convém separar o que é justo do que é bom. O que é justo compete ao Estado decidir. Por outro lado, o que se considera uma ‘boa morte’ ou ‘morte digna’ é algo de âmbito privado, pertencente ao cidadão”, argumenta.
Ser Médico – Existem limites éticos à autonomia do paciente, ao fazer escolhas relativas à própria morte?
Sérgio Ibiapina – Ao abordar o tema da disponibilidade da vida, torna-se imperativo defender tanto o princípio da autonomia como o da liberdade. Assim, a disponibilidade da vida deverá fazer-se presente em todas as etapas da existência de uma pessoa consciente, até o momento em que julga ter concluído sua biografia e nada mais lhe resta a esperar, salvo uma “boa morte” ou uma “morte digna”. No pleno exercício do princípio da autonomia, qualquer indivíduo poderá optar por receber cuidados paliativos, caso esteja em fase final de vida, ou escolher por antecipar a morte, voluntariamente e de forma reiterada, mediante a utilização de condutas eutanásicas, nos países onde tais práticas sejam permitidas.
Ser – Além dos compreensíveis temores de natureza legal por parte dos médicos quanto à finitude da vida de seus pacientes, por que os profissionais continuam com tanta resistência em abordar ou mesmo refletir sobre o tema?
Ibiapina – Com o advento da Bioética, em 1970, a finitude da vida foi uma das áreas temáticas mais debatidas e, em face disso, pode-se vaticinar que continuará sendo, por décadas a fio. O que tem acentuado as dificuldades sobre a reflexão desse tema, especialmente quando se trata de eutanásia ativa, voluntária, e suicídio assistido, é a formação na área médica, que se compromete em salvar vidas em detrimento de defender a morte, pois esta é considerada um fracasso. Outro fator é a objeção de consciência, sustentada por motivos de convicção religiosa e por cumprimento dos dispositivos éticos previstos nos códigos deontológicos. Os que se opõem à adoção de qualquer conduta eutanásica restringem-se, primeiramente, a grupos pertencentes à dogmática religiosa, especialmente aqueles ligados às religiões confessionais monoteístas, contrários a que seres humanos possam dispor de um bem que não lhes pertence, e sim a Deus (seu criador), o que, na visão de John Stuart Mill, não retira esse direito do homem, ao propor que “sobre si mesmo, sobre seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano”; em segundo lugar, aos membros dos poderes públicos (Executivo, Legislativo ou Judiciário), identificados como guardiões da proteção à vida, que, em muitas circunstâncias, dificultam ou negam a atualização consentânea do ordenamento jurídico do país.
Ser – Como o Brasil deveria conduzir uma discussão quanto ao suicídio assistido ou, mesmo, eutanásia?
Ibiapina – Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Suíça, Canadá, Colômbia e 10% dos Estados norte-americanos iniciaram o debate com a sociedade mediante o estímulo à participação em entrevistas, encontros, fóruns e formação de associações que defendem uma morte digna. Somente após o equacionamento de quase todas as questões sanitárias, submete-se o tema à realização de pesquisa de opinião pública acerca da adoção ou não da eutanásia ativa, voluntária, e do suicídio assistido, seja em relação à permissibilidade deste último, seja em relação a ambas as condutas. Após o amadurecimento do debate público, parlamentos e tribunais julgam oportuno ou não descriminalizar tais procedimentos. Em outras circunstâncias, registra-se a liberação
desses atos, após a população ser consultada mediante referendum.
O debate em nosso país ainda está em fase embrionária e as dezenas de iniciativas parlamentares, desde o final da década de 1980 até o presente, não conseguiram ultrapassar a avaliação preliminar da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) de ambas as casas legislativas, sinal de que ainda temos muito que avançar nos planos social e político.
O país carece de soluções para graves questões sanitárias, acrescidas da falta de adesão ideológico- partidária, o que prejudica a discussão com a sociedade de temas dessa natureza. No entanto, é impossível ignorar que uma população superior a 200 milhões de habitantes não possa desfrutar desse debate. Muitos advogam que somente seria possível iniciar discussões sobre condutas eutanásicas após dotar o país, na totalidade das médias e grandes cidades, de serviços de cuidados paliativos agregados ao SUS. Isso exigiria a estruturação de, pelo menos, um mil desses centros multiprofissionais.
Ser – No contexto brasileiro há ainda muita controvérsia e discordância em relação às Diretivas Antecipadas de Vontade. Como avalia a possibilidade e a necessidade de se deixar um documento voltado aos desejos relativos a tratamentos em fase final de vida?
Ibiapina – Controvérsias e discordâncias em relação às Diretivas Antecipadas de Vontade ou ao Testamento Vital não se encontram apenas em nosso país. Questiona-se, especialmente, a dificuldade de uma pessoa que não autorizou a realização de procedimentos em determinada fase da vida, ser representada por terceiros para
expressar a mesma opinião, caso o interessado tenha apresentado distúrbio cognitivo que lhe suprima a consciência. Além disso, como é possível uma pessoa antecipar situações de agravos a sua saúde que ela desconhece? Isso, talvez, justifique o pequeno número de testamentos vitais registrado em cartórios. Segundo a filósofa Victoria Camps, na região da Catalunha, Espanha, um dos grupos mais expressivos que dispõem de Testamento Vital corresponde aos adeptos da religião Testemunhas de Jeová, pois eles não deixam dúvida sobre o que não pretendem em todas as fases de vida: a utilização de sangue como modalidade de tratamento. Em relação à possibilidade de deixar um documento dessa natureza, sim, é possível, inclusive havendo previsão em Resolução do CFM. Quanto à necessidade, depende de cada indivíduo, que poderá transferir ou não o que deseja aos próprios familiares, que o representarão, sem ter, necessariamente, de fazê-lo por escrito.
Ser – Quando o senhor escreveu a abertura e o posfácio do livro Iniciação à Bioética, do CFM, juntamente com Volnei Garrafa e Gabriel Oselka, comentava a velocidade com que a Bioética estava se desenvolvendo, desde Van Rensselaer Potter (que cunhou o termo). De 1998 para cá, a área continua crescendo da mesma maneira?
Ibiapina – Quando a obra Iniciação à Bioética foi publicada, procurou-se retratar o vertiginoso crescimento da Bioética em quase três décadas de sua existência. Um dos acontecimentos mais preocupantes no campo da Justiça, que nos proporcionou essa visão, e creio que a outros autores brasileiros, foram os dilemas éticos por uma reforma sanitária justa para o Brasil. Acrescente-se, ainda, que, com o advento global de
infecções determinadas pelo HIV no início da década de 1980, inúmeras questões morais, no tocante à autonomia, privacidade, confidencialidade e alocação de recursos, proporcionaram um amplo debate envolvendo a sociedade, que se prolongou até o início deste século. Desde então, surgiram novas áreas temáticas com as quais teremos que nos preocupar, seja no contexto de nosso país, seja no espectro global.
Temas como corrupção nos setores públicos e privados, marginalização de imigrantes e refugiados giados, atos de terrorismo, doenças negligenciadas, papel da indústria farmacêutica e opressão de gênero são algumas áreas cujos dilemas morais, com seus respectivos enfoques, merecem a atenção dos bioeticistas na atualidade. O elenco
de novos temas citados atesta não só o contínuo crescimento da Bioética, mas também a velocidade com que a reflexão precisa avançar para abordar tantos e tão diversos aspectos.
Ser – Já naquela época, o senhor e os demais organizadores de Iniciação à Bioética apontavam para a “busca de uma Bioética mais global (...) do mundo e do contexto atuais”. O que se fala hoje sobre Bioética global coincide com o que vocês falavam em 1998?
Ibiapina – A perspectiva na busca de uma bioética global continua na mesma direção, sem prescindir dos instrumentos teóricos e práticos que contextualizam os acontecimentos atuais. Portanto, não identifico diferenças. Aliás, recorria- se, naquela oportunidade, a Alastair Campbell, que previa: “a ideia da abertura de uma nova visão do que possa significar o ser humano, ouvindo a surpreendente diversidade de vozes culturais que procuram fazer-se ouvir, à medida que a Bioética se expande do Ocidente
para outras culturas”. Essa afirmação ainda é aplicável e oferece resposta aos conflitos morais vigentes em nossa sociedade.
Ser – Em alguns meios, a impressão que se tem é que em vez de se tornar global, o discurso da bioética esteja se complicando demais, nas mãos de alguns membros da academia, tornando-se inatingível à maioria das pessoas. Como evitar que a linguagem bioética se elitize demais?
Ibiapina – O desejo de toda ciência é tornarse senso comum, ou seja, que o conhecimento por ela construído guie os atos da pessoa comum, no seu cotidiano. Com a Bioética não é diferente. Não devemos, no entanto, confundir a construção desse conhecimento, gradativamente, mais complexo e abstrato, com a sua divulgação para leigos. Logo, todo campo de conhecimento será compreensível, na sua construção – conceitos teóricos, ferramentas metodológicas –, aos iniciados. É assim com a Física,
a Sociologia e a Psicologia, por exemplo, e não seria diferente com a Bioética. Para que
o conhecimento produzido seja levado ao público leigo existem os recursos de divulgação, sejam verbais, como em entrevistas, em canais de ampla divulgação e palestras abertas ao público etc., ou escritos como textos informativos, artigos, livros etc.
Ser – Em um artigo, o senhor mencionou que “nem sempre a medicina oferecida às populações carentes tem a obrigatoriedade de ser dotada de maior riqueza tecnológica”. Por que, nesse contexto, considerou a informação e educação mais importantes do que “riqueza tecnológica”?
Ibiapina – A citação acima, publicada há uma década, na revista O Mundo da Saúde,
quando destacada do contexto, pode expressar que os mais pobres deste país não merecem utilizar procedimentos médicos de alta tecnologia, mas isso não é verdade. O que se quis enfatizar, naquela oportunidade, foi a importância de acesso à informação como antecedente de qualquer procedimento médico. De nada adiantará a prestação de serviços médicos a pessoas sem um mínimo conhecimento de como prevenir doenças e de promover a sua saúde. Tome-se como exemplos o tabagismo e o uso excessivo de bebida alcoólica e as consequentes implicações irreversíveis à saúde. Outro exemplo prático é manter a população informada sobre a importância do calendário vacinal em dia, com o propósito de evitar doenças.
Ser – A equidade e a correta alocação de recursos em saúde são objetivos factíveis em uma realidade como a brasileira?
Ibiapina – A sociedade brasileira, representada por sua classe política, deve ter a percepção de que, a exemplo dos serviços de saúde dos países desenvolvidos, “(...) a equidade constitui a base ética que deve guiar o processo decisório da alocação de recursos, sua distribuição e controle (...)”, na visão de Volnei Garrafa, Débora Diniz e Gabriel Oselka. Esses autores afirmam, ainda, que somente por meio da equidade, associada à ética da responsabilidade – individual e pública –, e ao princípio da justiça no seu amplo sentido, os povos conseguirão tornar realidade o direito à saúde. Se nos deparamos com adversidades nas quais estamos imersos, marcadas por corrupção sem precedente, de pessoas que exercem funções públicas, e por projetos de governo que privilegiam contingenciamentos de recursos em áreas fundamentais, como educação e saúde, em benefício de rentistas, cumpre à sociedade reverter esse quadro com a arma de que dispõe – o voto.
*Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp