CAPA
PONTO DE PARTIDA (PÁG. 1)
Cremesp 60 anos: Medicina ética e decisões históricas
ENTREVISTA (PÁG. 4)
Nelson Guimarães Proença
CRÔNICA (PÁG. 12)
O mundo correu tanto que parou
HISTÓRIA (PÁG. 14)
Defesa da ética médica e vanguardismo
REPERCUSSÃO (PÁG. 34)
O que significa o Cremesp?
EM FOCO (PÁG. 36)
Perfil do médico paulista está em transformação
COMUNICAÇÃO (PÁG. 38)
Comunicação
CULTURA (PÁG. 41)
A Medicina nas obras de Tide Hellmeister,o mestre da colagem
FUTURO
Os próximos 60 anos
FOTOPOESIA (PÁG. 48)
Fotopoesia
GALERIA DE FOTOS
ENTREVISTA (PÁG. 4)
Nelson Guimarães Proença
Médico há 60 anos, sem querer parar
Exemplo de profissional ético, Nelson Guimarães Proença conta como era o exercício médico quando começou a clinicar, em 1957, e ao longo das últimas seis décadas, quando exerceu também o cargo de professor titular; defende a Medicina humanizada, relata histórias e faz uma lúcida proposta para a racionalização da gestão e dos recursos do sistema de saúde público, pelo qual sempre lutou.
O número de seu CRM é 832, que, aliado à sua trajetória impecável como médico ético e humano, o transformam em um ícone da Medicina paulista e brasileira, ativo em sua profissão aos 85 anos. Após 60 anos de formado, Nelson Guimarães Proença atende em seu consultório, em Campos do Jordão – para onde se mudou há alguns anos –, cerca de 25 pacientes em média, das 8h às 18 horas, três dias por semana. Nos outros dois dias úteis, estuda e escreve.
Começou a carreira como clínico geral e, posteriormente, dermatologista. Além de médico respeitado por colegas e pacientes, ocupou vários cargos como docente até chegar a professor titular de Dermatologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, com a qual colaborou até recentemente, como professor voluntário. Sua importante contribuição científica abrange, aproximadamente, 150 estudos publicados em revistas especializadas, nacionais e internacionais, incluindo trabalhos relativos à enfermidade “fogo selvagem”,
à qual se dedicou como médico da Secretaria de Saúde paulista.
Nelson Proença foi também vereador e presidente da Associação Paulista de Medicina (APM) e da Associação Médica Brasileira. Ocupou ainda o cargo de secretário de Assistência e Desenvolvimento Social do governo do Estado de São Paulo. Sua dedicação à profissão renderam-lhe inúmeras homenagens, como a de Patrono da Dermatologia Brasileira, em 2007, e a de professor emérito da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa.
Sua esposa Yvonne, companheira desde os tempos da Faculdade de Medicina, médica ginecologista-obstetra, faleceu há dez anos. Juntos formaram uma família com cinco filhos – Sônia, bióloga; Thaís, médica; Rui, engenheiro de minas, Maria Cristina, pedagoga; e Luis Roberto, promotor público –, nove netos e cinco bisnetos.
Nesta entrevista e em texto que fez especialmente para a Ser Médico, ele compartilha com os leitores sua história, ideias e experiências.
Ser Médico – O Cremesp está completando 60 anos e, o senhor, 60 como médico. O que une esses dois números?
Nelson Proença – Vou contar um episódio interessante. Formei-me em 1956 e em janeiro de 1957 houve a cerimônia de entrega dos diplomas. Fui, então, à Associação Paulista de Medicina (APM), já sediada no prédio da rua Brigadeiro Luís Antônio, fazer minha inscrição como sócio da entidade e vi uma fila enorme na sala ao lado. Fiquei curioso e a secretária que me atendeu indagou: “por que o senhor não aproveita e se inscreve no Conselho?”. E respondi: “o que é isso?”. Ela disse que estavam fazendo inscrição para o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Entrei na fila e era o mais novo de todos. Como resultado, recebi o número 832. Sou, provavelmente, um dos poucos médicos de inscrição abaixo do 1 mil ainda vivos e exercendo a profissão. Acompanhei, assim, a evolução do Cremesp e todas as suas atividades desde os primeiros momentos.
Ser – O senhor fez alguma especialização logo após a formatura?
Nelson Proença – Não. Inclusive, formei-me em uma condição excepcional naquela época. Eu e a Yvonne nos casamos em janeiro de 1953, quando eu estava no terceiro ano da faculdade e, ela, iniciando o segundo ano. Tínhamos um acordo de que só começaríamos a ter filhos a partir da formatura dela. Mas houve uma pequena alteração dos planos, pois quando chegamos em 1957 já estávamos com três filhos. Eu tinha uma responsabilidade familiar imensa, diferentemente dos outros médicos. Não podia nem pensar em fazer Residência. Eu já trabalhava desde 1952, como professor de Física do cursinho do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC). Dei aula durante cinco anos. Das 7h às 16 horas estudava na faculdade e, das 16h às 23 horas, dava aula no cursinho. Aos sábados e domingos também lecionava.
Ser – Havia Residência na época?
Nelson Proença – Havia Residência de Clínica, Cirurgia, Pediatria e Obstetrícia, as especialidades mais tradicionais. Eu comecei a trabalhar como clínico-geral e médico de família, e a Yvonne, como ginecologista-obstetra. Fomos morar na Água Fria, entre Santana e Tremembé. O bairro era ainda bem periférico, estava nascendo, as ruas eram de terra e não tinham iluminação. Muito precário. No início, o consultório era na própria casa onde morávamos e, depois, em uma casa ao lado. As consultas eram particulares, não havia ainda planos de saúde. Estávamos 24 horas por dia à disposição dos pacientes. Como não havia muitos hospitais nem pronto-socorros, não havia transportea partir das 22 horas, nem havia telefone ou táxis, transformamos nosso consultório em uma verdadeira Emergência. Se uma criança tinha crise asmática, tínhamos oxigênio e tratávamos. Se um paciente estava desidratado, nós hidratávamos.
Ser – Trabalhavam quantas horas por dia?
Nelson Proença – Tempo integral. Dia e noite. Vivíamos em função do nosso trabalho. Mas, começaram a aparecer muitos casos de Dermatologia e eu não sabia nada dessa área. Como eu precisava atender os pacientes com problemas dermatológicos, fiz um estágio na Dermatologia do Hospital das Clínicas, com o professor João Aguiar Pupo, durante quatro meses, em 1958. Frequentava o Hospital das Clínicas das 7h às 11h30 e, depois, ia para o consultório, trabalhava até 21h ou 22 horas; em seguida, estudava Dermatologia até à meia-noite. Li e fiz fichas do tratado de Dermatologia do professor Darier, por inteiro, aprendi e pratiquei bem durante esse período. Percebendo meu interesse e esforço, o professor Pupo me convidou para ser professor assistente. Aceitei e passei a ser professor em janeiro de 1959, com dois anos de formado e de prática médica. Foi assim que comecei na Dermatologia. Posteriormente, segui carreira na especialidade, mas não no HC. Continuei com a Clínica Geral por mais ou menos 10 anos, até 1969, quando eu e Yvonne resolvemos mudar para o centro de Santana. Passei, então, a fazer exclusivamente Dermatologia.
Ser – Quais as maiores diferenças no exercício profissional da Medicina desde quando senhor começou a clinicar e agora?
Nelson Proença – Do ponto de vista do avanço da fundamentação, do conhecimento científico sobre o por quê e o como, da razão dos processos e doenças, e de como abordá-los, foi uma viagem à lua. A quantidade de recursos, equipamentos e técnicas baseadas na utilização de tecnologia também foi uma coisa fantástica. Isso acabou mudando muito o caráter do exercício profissional. O médico de 60 anos atrás, quando me formei, podia desejar ser um clínico geral, que atendesse a todos os problemas, o médico de família. Na época, a Ginecologia e Obstetrícia, a Pediatria e a Cirurgia já estavam desenvolvidas. Mas quem fazia a Medicina Geral eram os clínicos. Isso mudou muito. O avanço do conhecimento inviabilizou, por assim dizer, o generalista, pois ele não consegue dominar o conjunto de conhecimentos de todas as áreas. Daí a especialização. E dentro das especialidades começam a surgir as subespecialidades. O ortopedista de coluna, o de joelho, o de mão, é uma necessidade em decorrência do avanço da tecnologia. Isso é irreversível. O resultado é, de um lado, muito mais recursos à disposição, mas por outro, uma visão cada vez mais distante da Medicina humanizada, da relação entre o médico e o paciente, que faz parte da essência do exercício médico.
Ser – Como o senhor define a prática da medicina humanizada?
Nelson Proença – O lado humano é essencial. Insisti muito durante toda a minha vida de professor que isso tem de ser preservado. Na minha clínica em Campos de Jordão, a pessoa atendida não é recebida com “o que o senhor ou a senhora tem”, “tome isso” e, sim, vamos conversar, ver, dar atenção. Isso muda o estado de espírito do paciente. Quase sempre ele está angustiado, preocupado, deprimido, e então vai mudando, ficando mais otimista, mais alegre, mais expansivo, e enfrenta melhor o seu problema. Após algumas semanas, terminado o tratamento, é muito frequente o paciente vir e dar um abraço, chorar no seu ombro, agradecer. Essa Medicina na qual, além do conhecimento, o médico oferece também calor humano, não é praticada atualmente. Quem pratica essa Medicina sabe como isso faz bem para si mesmo e se sente cada vez mais apaixonado pela profissão, enquanto o que confia apenas no laboratório, no medicamento, não conhece esse lado. E isso, infelizmente, está se transformando na regra. Hoje, não se valoriza mais o exame clínico, tocar o paciente, examiná-lo. Isso está sendo cada vez mais substituído pela solicitação de uma quantidade imensa de exames para ver se algum deles indica alguma coisa a ser tratada. É uma ruptura.
Ser – Antes era mais difícil ou mais fácil exercer a Medicina?
Nelson Proença – Se você olhar os recursos limitados de diagnóstico e de tratamento de 60 anos atrás, para tratar um paciente, é difícil pensar que se conseguisse obter um bom resultado. Parece inacreditável, mas conseguíamos bons resultados. É aquele outro lado do exercício da Medicina: qual é o ser humano que você está tratando? Se o médico transfere todo o sucesso possível para a medicação que está receitando, já reduziu enormemente o potencial da solução do problema, porque não promoveu a cooperação do paciente, não conseguiu fazê-lo superar a sua angústia e ansiedade. Não havia medicações tão ativas como as que temos, mas dava-se um grande conteúdo humano à consulta, à relação com o paciente, à orientação geral que tem de ser transmitida pelo médico. Isso melhorava o estado emocional do paciente. O remédio era muito mais modesto, mas acabava agindo sobre um organismo muito mais preparado para reagir. Hoje é o contrário. O médico tem recursos, mas não dá atenção para esse lado e, por isso, não conta com a reação favorável do paciente.
Ser – Quais fatos o marcaram mais, como médico, nesses 60 anos?
Nelson Proença – Vou dar um exemplo. Estou na minha casa/consultório, na Água Fria, em uma madrugada, quando toca a campainha. É uma moça ansiosa, pedindo “pelo amor de Deus” para eu ir ver seu filhinho, e dizendo “não tenho a menor condição de lhe pagar, mas ele está muito mal”. Como já disse, não havia pronto-socorro, nada. Então lá fui eu, fiquei o restante da noite em sua casa, com hidratação, medicando e tal, até que a criança foi melhorando de sua febre e de seus vômitos. Quando saí da casa, quase 8 horas da manhã, ela já estava bem melhor. O garoto sobreviveu, e os pais ficaram muito agradecidos. Posteriormente, esse casal começou a trabalhar em uma indústria farmacêutica e acabou tendo um laboratório, ficou riquíssimo, e todos os anos me mandava presentes no Natal, em agradecimento por aquela noite. Eles tinham lágrimas nos olhos cada vez que iam me ver. São episódios assim que nos marcam. Tenho muitos deles, de reconhecimento, que valem muito mais do que o pagamento. Nunca me preocupei, em toda a minha vida, com quanto iria ganhar. Minha preocupação é em relação a como vou resolver o problema do paciente. Na minha clínica, em Campos de Jordão, ao atender um paciente, tudo o que posso resolver na hora, eu resolvo. Sem nenhum acréscimo para ele, o que está completamente fora das práticas atuais.
Ser – Desde quando o senhor está em Campos?
Nelson Proença – Apaixonei-me pela cidade em 1962. Mesmo quando ainda estava em São Paulo, tinha casa lá. Mas há dez anos decidi não continuar mais na capital paulista, porque na minha idade a cidade perdeu o atrativo. Então, abri o consultório e fui morar lá em Campos. Trabalhei lá e aqui, por mais seis anos, e agora estou no quarto ano morando e trabalhando apenas lá. Minha clínica de São Paulo ficou com a Thaís, minha segunda filha, que é professora de Dermatologia. Mas tem alguns pacientes que ficam com saudade e vão lá em Campos me visitar.
Ser – O senhor exerceu também várias outras atividades, além da Medicina...
Nelson Proença – Houve momentos em que estive em caminhos paralelos à Medicina. Fui, por exemplo, presidente da Associação Paulista de Medicina (APM), eleito em 1981. Quando assumi a entidade, estava havendo uma grande transformação na Medicina em todo o Brasil. A tradicional, feita em consultório, chamada Medicina liberal, estava desaparecendo e os planos de saúde começavam a ficar cada vez mais fortes. Os empregos públicos, que antes eram valorizados, também passavam por uma grande crise, com os salários cada vez menores. Por isso, os médicos passaram a se organizar mais e a prestigiar suas entidades. Quando assumi a presidência da APM, ela estava profundamente dividida. Assumi a tarefa de unir novamente os médicos e promovemos três grandes encontros para definirmos os problemas da Medicina, equacionarmos um caminho para a classe médica se unir e trabalhar. Deles resultaram propostas que foram amadurecendo e, quando presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), foram levadas à Assembleia Constituinte de 1987 e 1988, contribuindo para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso que fizemos em São Paulo levamos para todo o Brasil, e unimos os médicos brasileiros em torno de propostas que foram aprovadas por todas as entidades médicas.
Ser – O senhor também foi vereador... Como foi essa experiência?
Nelson Proença – Sim, depois dos anos 90. Agi sempre em torno da Saúde. Como vereador, minha preocupação era essencialmente a criação do sistema público na Capital. Por isso, coordenei, em 1995, na Câmara Municipal, o primeiro seminário realizado no Brasil sobre como organizar o SUS. Pena que tudo que propusemos não foi feito e a coisa está como está. É preciso fazer reformas no sistema, primeiramente definindo as atribuições. A Atenção Primária fica a cargo do município, a Secundária, que é regional, fica sob a responsabilidade do governo estadual, e a Terciária é federal. Essas atribuições não estão claras. Em segundo lugar, os orçamentos têm que ser separados porque o orçamento da Atenção Primária de Saúde é absolutamente previsível. Já a Atenção Secundária, que também tem despesas previsíveis, fica no orçamento do respectivo Estado. Já a Atenção Terciária, que é imprevisível e a cada dia é mais cara, fica com a União. E é preciso criar mecanismos de desempenho, para poder ter os mecanismos de controle. A União empurra para os governos estaduais, e esses empurram para os municipais. E os municípios inventaram a chamada Organização Social, para fazer o que o município deveria fazer. Aí a OS vai mal, troca a OS. No Brasil, hoje, o que se faz é descalçar a bota.
Ser – O que o senhor gostaria de dizer aos estudantes de Medicina que serão os médicos das próximas décadas?
Nelson Proença – Por mais que se desenvolvam os recursos tecnológicos e técnicas modernas e úteis, aplicados à Medicina, eles não mudam o seu caráter essencial, que é saber equilibrar tudo isso com uma relação humana entre o médico e seu paciente. Se você só se preocupa com o lado tecnológico, não vai praticar a boa Medicina. Será um bom técnico, mas não um bom médico. Pode até conseguir curar uma doença, mas deixou o paciente no estado de espírito em que estava, sem dar o apoio que ele precisava. Domínio dos recursos de um lado e comportamento humano de outro. Isso é Medicina.
Ser – Qual a receita para chegar aos 85 anos com tanta lucidez e essa capacidade de trabalho?
Nelson Proença – Acredito muito em uma frase, repetida pelos geriatras, que diz que há uma profunda diferença entre ser velho e ser idoso: “O velho é um idoso que deixou de ter um projeto de vida”. Tem dezenas de coisas que estou fazendo e que quero fazer. Então, enquanto puder, vou fazer pelo prazer de fazer. É preciso permanecer em atividade, qualquer que seja ela. E a Medicina sempre foi a essência da minha atividade. Na nossa profissão, se você não quiser, não se aposenta nunca. Claro que tenho que continuar estudando. Eu trabalho de segunda, quarta e sexta, mas, às terças e quintas eu estudo, escrevo. Não tem segredo, é só ficar de bem com a vida.
Medicina de ontem, de hoje, de amanhã
Nelson Guimarães Proença
Sessenta anos são passados desde a minha formatura, como médico.
Sentado no terraço de minha casa, estou refletindo sobre a Medicina de ontem e a de hoje, tento vislumbrar o que será a do amanhã. Perdido nessas reflexões custo um pouco para perceber que elas me fizeram retornar no tempo, recordando momentos vividos no ano de 1954.
Eu fazia parte da turma que cursava o quarto ano da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Estávamos no sexto andar do Hospital das Clínicas, anfiteatro da Segunda Clínica Médica, a aula era do professor Luiz Venère Décourt, catedrático de Cardiologia.
O professor iniciou destacando a importância da anamnese minuciosa e do exame clínico detalhado, essenciais para as hipóteses diagnósticas a serem feitas, em cada caso. Para completar esta indispensável abordagem inicial, recomendava que recorrêssemos ao Laboratório Central, porém solicitando de modo judicioso uns tantos exames, somente aqueles que efetivamente poderiam contribuir para o esclarecimento do caso. Insistia sempre, exames laboratoriais são complementares a nosso raciocínio, não substitutos de nosso raciocínio.
Nas enfermarias da Segunda Clínica Médica colocávamos em prática suas recomendações. A cada dia nos sentíamos mais seguros. Percebemos desde logo que tínhamos uma vantagem enorme sobre profissionais de outras áreas. Vantagem sim, pois o objeto de nossa atenção nos dizia o que sentia, onde sentia, como sentia, quando sentia. E mais, permitia ser apalpado, auscultado, mudado de posição. Uma vantagem enorme que nos dava segurança para avaliar cada caso, era preciso saber como bem a utilizar.
Éramos dois seres humanos unidos pelo mesmo propósito: um a procura de seu bem-estar, o outro contribuindo com seu conhecimento e com sua experiência para que ele fosse alcançado.
Sim, éramos dois seres com o mesmo propósito. A prática logo nos mostrou a importância de mais uma das recomendações do professor Décourt: “Não basta saber que doença tem o doente, é necessário conhecer e compreender o doente que está tendo a doença”.
Agora dou um salto, atravesso o tempo e volto aos dias de hoje, reingresso no mundo da tecnologia.
Passo a refletir sobre o conhecimento que se amplia a cada instante, de modo ilimitado. E que traz para a Medicina de hoje novas e novas técnicas, todas elas contribuindo para mais perfeitos diagnósticos e para o tratamento.
Vejo na televisão um documentário de origem japonesa que confirma essa fantástica contribuição da Informática para a Medicina. Na TV, um homem está diante do computador, a seu lado está o paciente. Um protocolo é preenchido pelo paciente, ali estão todas as informações sobre suas queixas, sobre seu caso clínico. São passadas para o computador, esse responde indicando quais os exames laboratoriais precisam ser realizados. São muitos, talvez, mas é melhor pecar por excesso do que por falta. Uma vez realizados e com resultados conhecidos, o computador indica o tratamento a ser iniciado.
Maravilha das maravilhas!
Está criada nova profissão: Técnico de Informática para Diagnóstico e Tratamento!
Já não é mais um sonho. É uma realidade que está em fase de implantação. Agora se tornou mais fácil saber que doença tem o doente.
Não quero ser impertinente, mas tenho uma pergunta a fazer. E a outra parte da relação médico-paciente, como fica?
Qual parte? Ora, a de saber melhor qual o ser humano que está sendo atendido com aquela doença. Qual a influência que ele próprio tem sobre seu quadro clínico. Quais são os problemas pessoais, quais as suas angústias, os seus temores, a sua ansiedade. Enfim, quais são os traços de sua personalidade?
O Técnico em Informática Diagnóstica e Terapêutica não hesitará em nos responder que isso é apenas uma questão de tempo. Não irá demorar muito para serem aperfeiçoados programas de computador que responderão a todas essas questões. E também indicarão os melhores medicamentos que devem ser empregados.
Talvez não esteja longe o dia em que humanos passem à categoria de robôs.
Da minha parte, entretanto, prefiro continuar a exercer a Medicina que aprendi, em correspondência às palavras do professor Décourt. Por sinal, as palavras não são suas, ele apenas as repetiu, como eu as repito, agora:
“Não basta saber que doença tem o doente, é preciso saber qual o doente que está tendo aquela doença”.
Prefiro, se for possível, continuar sendo um ser humano, não um robô.