CAPA
EDITORIAL
Ponto de Partida
ENTREVISTA
Pierre Lévy: Medicina & Internet
CRÔNICA
Luis Fernando Veríssimo
EM FOCO
Gêmeos
TELEMEDICINA
Raul Cutait
DEBATE
A Medicina e os Laboratórios
SINTONIA
Wilson Luiz Sanvito
COM A PALAVRA
Aureliano Biancarelli
LIVRO DE CABECEIRA
"A Linha de Sombra"
CULTURA
Arte Naif
HISTÓRIA DA MEDICINA
Cirurgias das Amígdalas
GOURMET
Penne ao contadino
CARTAS & NOTAS
Comentários e agradecimentos
POESIA
Gregório de Mattos
GALERIA DE FOTOS
SINTONIA
Wilson Luiz Sanvito
A má reputação do plágioWilson Luiz Sanvito*
Às vezes, o desempenho do plagiário é melhor que o do plagiado. É uma espécie de plágio necessário
O termo plagium era usado na antiga Roma e significava o furto de pessoas livres, que eram vendidas ou simplesmente utilizadas como escravas. Alguém que roubava um escravo era conhecido como plagiarius. Segundo o historiador inglês Peter Burke, o poeta Marcial aplicou o termo aos escritores que imitavam seu trabalho. Hoje plágio significa apropriação, total ou parcial, de obras alheias. Quando se fala em plágio, vem logo à mente a apropriação indébita de idéias e textos literários. É o furto literário. Mas o termo abrange todas as áreas da criatividade: música, teatro, literatura, ciências, cinema...
Na Antigüidade, antes da invenção da imprensa, o conhecimento era repassado pela tradição oral, de sorte que a propriedade das idéias era coletiva. Com a imprensa gutenberguiana passou-se a reproduzir centenas ou milhares de cópias idênticas de um texto e houve uma valorização do trabalho intelectual individual. Já na época de Gutenberg, alguns livros eram impressos com a imagem do autor para reforçar a autoria da obra.
Mas a preocupação com a propriedade das idéias só aparece com a criação da Lei dos Direitos Autorais, em 1710, na Inglaterra. Normatizar esta matéria faz parte da preocupação de todos os países civilizados do mundo contemporâneo. É uma proteção à criação artística, literária, científica, tecnológica etc. para evitar a pirataria e a violentação dos direitos autorais. Curiosamente, no mundo da informática, particularmente na Internet, começa a ser restaurada uma espécie de propriedade coletiva das idéias. É o desafio do legislador contemporâneo. Na opinião de Burke, os computadores tornam o furto intelectual mais fácil do que antes, pois basta copiar alguma coisa e “colá-la” ao seu próprio texto.
Às vezes, o desempenho do plagiário é melhor que o do plagiado. É uma espécie de plágio necessário. Para Nodier “o plágio de um bom escritor em detrimento de um mau escritor é uma espécie de crime que as leis da república literária autorizam, porque essa sociedade dele tira a vantagem de gozar algumas belezas que permaneceriam enterradas em um autor desconhecido, se um grande homem não tivesse se dignado a vesti-las.”
Michel Schneider, no livro Ladrões de Palavras (Editora da Unicamp, 1990), cita o crítico inglês Malone, apelidado Minutius, que contou minuciosamente os plágios de Shakespeare. Em 6.043 versos, 1.771 foram escritos por algum autor anterior, 2.373 foram refeitos e, do resto, 1.899 pertencem a Shakespeare. Figuram, entre os plagiados, autores como Robert Greene, Marlowe e Lodge, Peele. Mesmo a peça Hamlet teria sido inspirada em uma obra menor de autor desconhecido. A capacidade de plagiário valeu a Shakespeare o apelido de John Factotum.
Não se deve esquecer o fenômeno da criptomnésia – o esquecimento inconsciente ou a influência involuntária das fontes. No plágio incivilizado, o caráter do empréstimo é consciente e a omissão das fontes é voluntária. Existe dolo, porque o plagiário sabe que o que faz não se deve fazer. O gênio (caso de Shakespeare) se distingue do simples plagiário, porque neste os empréstimos são evidentes.
Há o plagiário mal-intencionado, que “psicografa” textos alheios, e o plagiário involuntário, cujas idéias coincidem com textos de outros. Fala-se até em intertextualidade. Na elaboração de um texto literário ou científico pode haver a absorção e transformação de uma multiplicidade de outros textos. Diz-se até, com alguma ironia, que quando se tira alguma coisa de um escritor é plágio, mas quando de tira de vários é pesquisa.
É possível a coincidência de idéias? É perfeitamente possível e talvez o caso mais eloqüente seja o da teoria da evolução. Charles Darwin estava trabalhando num livro de fôlego sobre o assunto quando, em 1858, recebeu um manuscrito de Alfred Russell Wallace, um naturalista britânico que na época estava trabalhando na Índias Ocidentais. O conteúdo era a essência de sua teoria. Nos pontos essenciais as idéias de Darwin e Wallace eram semelhantes. Trabalhando de modo independente, Wallace desenvolvera sua teoria e enviara um resumo para a avaliação do renomado cientista. Essa situação embaraçosa foi contornada por ambos com uma apresentação conjunta do manuscrito de Wallace e de um resumo do livro de Darwin perante uma comissão científica de alto nível. No terreno científico a apropriação de idéias é comum e já os discípulos de Newton acusaram Leibniz de ter plagiado trabalhos do mestre sobre a descoberta do cálculo. E até Newton foi acusado de plagiário.
Na literatura há uma verdadeira obsessão com a originalidade e muitos escritores sofrem de plagiofobia. Alguns têm horror à leitura, porque acreditam que uma mente livre de influências funciona melhor para o trabalho criativo. É uma regra bizarra: excesso de leitura mata a criatividade, enquanto uma mente vazia acaba encontrando inspiração. A preocupação é infundada porque algum tipo de influência é inevitável e mesmo desejável. Uma frase do escritor Jorge Luís Borges mostra que um texto literário pode representar uma malha intrincada de influências: “sou todos os autores que li, todas as pessoas que conheci, todas as aventuras que vivi...”
Já os puristas vêem plágio em cada canto da atividade cultural: “O plágio é a base de todas as literaturas, exceto da primeira, que é desconhecida” (Jean Giraudoux); “Adão tinha muita sorte: quando dizia alguma coisa interessante sabia que ninguém tinha dito antes” (Mark Twain). Já o artista Paul Cézanne era um radical: “Em arte, ou se é revolucionário ou plagiário.” O talentoso poeta Dalmo Florence queimou todos os exemplares de seu único romance, com o argumento de que ao ler o livro depois de impresso teve a nítida sensação de ter plagiado Guimarães Rosa. Gente do ramo que leu a obra discorda do poeta. É preciso que muitos escritores exorcizem esses demônios explicativos!
A tradição de nossa crítica literária é bajulatória e já foi dito que ela só é implacável com os best sellers estrangeiros. Mas, vez por outra, é aberta a temporada de caça às bruxas da literatura. Geralmente a vítima é sacrificada no altar da ideologia. São os patrulheiros, os intolerantes, os ressentidos, enfim os que não aceitam um modo alternativo de pensar. Em matéria de crítica literária, por sorte, temos desde críticos biliosos e iconoclastas até a república das letras que privilegia os modismos culturais, as afinidades ideológicas e mesmo o puro e simples compadrio.
O direito de crítica deve ser exercido sem limites. Não devem existir vacas sagradas na literatura ou em qualquer ramo da criação e, sempre que um importante escritor for flagrado jogando água fora da bacia, deve ser criticado. Parece ser o caso do poeta Vinicius de Moraes, que termina o último terceto do seu poema Soneto da Fidelidade com os seguintes versos: “Eu possa me dizer do amor (que tive)/ Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure.” Um poema de Henri Régnier (poeta inferior ao nosso Vinicius), publicado por volta de 1916, diz: “L’amour est éternel... oui, tant qu’il dure...” Simples coincidência?
Foi dito que O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz, é um plágio de La Faute de l’Abbé Mouret, de Zola. Tartarin de Tarascon seria a versão francesa de Dom Quixote. Alexandre Dumas, pai, transcreveu, como suas, páginas inteiras de Victor Hugo, de Goethe e de outros romancistas. Guy de Maupassant teria se inspirado em Gustave Flaubert para escrever Une Vie. Muitas denúncias de plágio praticado por grandes escritores podem ser infundadas. Prefiro acreditar que, em muitos casos, tratam-se de coincidência, criptomnésia, intertextualidade ou influência involuntária.
Outro problema comum são os equívocos de paternidade nas citações. Muita gente acredita que a frase navegar é preciso é do poeta português Fernando Pessoa ou do político Ulysses Guimarães. Nada disso. A frase é do general romano Pompeu e está em Plutarco. Havia necessidade de embarcar trigo para Roma, que estava sem pão, mas uma tempestade amedrontou os marinheiros, que se recusavam a embarcar. Então, Pompeu gritou que navegar era preciso, viver não era preciso. A propósito de citações há o fenômeno do contraplágio, quando alguém atribui a outrem as suas próprias idéias. Dizia-se que o embaixador Roberto de Oliveira Campos - uma verdadeira metralhadora de citações -inventava provérbios chineses!
Para resgatar um pouco a imagem de uma espécie que anda desgastada, pode-se afirmar que o ser humano nunca é plágio. É um estranho impar, no dizer do poeta Carlos Drummond de Andrade. O ser humano é editado num único exemplar e não tem segunda edição. Como todo argumento embute um contra-argumento, Millôr Fernandes é de opinião que o homem nasce original e morre plágio. Mas os brasileiros não vivem atormentados com o fantasma do plágio e, como o nosso produto original é o samba, já está consagrado o princípio: “samba é como passarinho: é de quem pegar primeiro.”
* Wilson Luiz Sanvito é professor titular de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa.