CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Mauro Gomes Aranha de Lima - Presidente do Cremesp
ENTREVISTA (pág. 4)
Paulo Saldiva
CRÔNICA (pág. 10)
Mario Prata
CONJUNTURA (pág. 12)
Aids: novos e velhos desafios
DEBATE (pág. 16)
O teto dos gastos públicos é realmente necessário?
HISTÓRIA DA MEDICINA (Pág. 23)
O outro lado das guerras
SINTONIA (pág. 26)
A sétima arte e humanização da Medicina
GIRAMUNDO (Pág. 30 e 31)
Avanços da ciência
PONTO COM (Pág. 32 e 33)
Mundo digital & tecnologia científica
HOBBY DE MÉDICO (págs. 34 a 37)
Adolfo Leirner
CULTURA (págs. 38 a 41)
Osesp
GOURMET (Pág. 42)
Edmund Baracat
CARTAS & NOTAS (pág. 46)
Espaço dos leitores
FOTOPOESIA (pág. 48)
Carlos Drummund de Andrade
GALERIA DE FOTOS
ENTREVISTA (pág. 4)
Paulo Saldiva
Saúde, meio ambiente e muito mais
Fátima Barbosa*
Conversar com o patologista Paulo Saldiva é enxergar o ser humano em todas as suas dimensões. A partir do nexo entre saúde e meio ambiente, ele aborda as múltiplas causas que impedem que os indivíduos atinjam sua completude. Em seguida, fala com entusiasmo sobre o projeto que coordena na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Fmusp), a Plataforma de Imagem na Sala de Autópsia (Pisa), pioneiro na América Latina ao utilizar um aparelho de ressonância magnética para corpo inteiro com campo de 7 tesla. O objetivo é desenvolver técnicas de diagnóstico por imagem para identificar a causa de morte de forma menos invasiva do que a autópsia tradicional, visando, entre outras questões, estudar a relação entre hábitos de vida, condições ambientais da cidade de São Paulo e suas consequências para o corpo humano.
Foi, de certa forma natural, que, depois de exercer o cargo de professor titular de Patologia na Fmusp desde 1996, Saldiva tenha sido nomeado, no ano passado, diretor do renomado Instituto de Estudos Avançados (IEA) da mesma universidade. É o primeiro médico a ocupar o cargo, depois de inúmeros filósofos, economistas, artistas e críticos literários. Ex-professor visitante da Universidade de Harvard – onde também foi membro, durante nove anos, do comitê científico da escola de Saúde Pública na área de poluição do ar –, participa atualmente do grupo Union Research Meteorological, da Sociedade Internacional de Meteorologia, que visa estudar as mudanças climáticas e propor medidas para enfrentá-las. É também autor de inúmeros artigos científicos.
Saldiva leva para sua vida pessoal a multiplicidade de interesses. Além da vida profissional intensa, é ciclista desde os 17 anos, toca gaita, fotografa e escreve; é casado e tem dois filhos.
Ser – O senhor disse, recentemente, que o meio ambiente tem se deteriorado e prejudicado diretamente, de modo assustador, a vida das pessoas...
Saldiva – A relação da saúde humana com o meio ambiente está estabelecida há muito tempo. Desde Hipócrates há observações descrevendo que vivemos de acordo com a qualidade do ambiente ao nosso redor. Sempre foi assim, as más condições do ambiente físico e sanitário tiveram relação com muitas doenças, como as pestes e a tuberculose. Tanto que o aumento da expectativa de vida não depende apenas de vacinas e antibióticos, mas, principalmente, da melhoria das condições de vida da população. As doenças infecciosas, por exemplo, são transmitidas por água contaminada ou por vetores. E ainda não resolvemos completamente isso. As doenças transmitidas por mosquitos estão voltando. Temos também, agora, muitos defensivos agrícolas, que geram novos problemas de contaminação. Diversos agentes químicos são jogados no ar, por meio dos praguicidas, dos plásticos, pela indústria química, pela poluição derivada dos escapamentos das indústrias, dos carros e termelétricas, entre outros. O sistema de trabalho também mudou, passando a ser menos dependente de atividade física. A produção de alimentos foi simplificada, por meio de processamentos. O mesmo progresso industrial que polui, produz alimentos que não são adequados, e induz as pessoas a um sedentarismo compulsório, gerando obesidade. Some-se a isso o aumento do ruído urbano, fazendo com que se durma menos e a qualidade de sono seja pior. Com isso, o relógio que controla a produção de hormônios importantes, tanto para o controle da pressão arterial, como do metabolismo e da saúde cerebral, começa a sofrer influências. Há, ainda, o estresse do dia a dia. Os robôs tomam as vagas de trabalho e aumentam o desemprego. Embora o mundo esteja mais seguro do que na Idade Média, a percepção do risco passa a ser mais evidente porque estamos a toda hora sendo bombardeados com informações sobre violência etc. Ou seja, não resolvemos os problemas clássicos provocados pelo ambiente físico, pelas doenças infecciosas, e acrescentamos outros muito importantes.
"A poluição começa a reproduzir o que o cigarro provoca"
Ser – Quais as consequências disso na saúde das pessoas?
Saldiva – A poluição do ar no mundo está matando 7 milhões de pessoas por ano, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o que é mais do que a malária e a diarreia, somadas. Cerca de 4,5 milhões dessas mortes ocorrem devido à poluição caseira, como a provocada pelo fogão de lenha. E temos, também, a falta de conforto térmico com as ilhas de calor urbano que as cidades criaram, além do aquecimento do planeta. No Brasil, por exemplo, com a onda de calor extremo que tivemos durante o fim do ano passado, em que a temperatura ficou quase que constantemente acima de 30 graus, a estimativa é que tenha aumentado em 50% a mortalidade por doenças cardiovasculares, infarto do miocárdio e derrame cerebral. Além disso, nosso país tem 90% de água tratada e 50% de coleta de esgoto, sendo que menos de 25% do esgoto é tratado. Ou seja, para 75% da população, o Brasil ainda está no tempo da Roma Antiga, que jogava esgoto in natura no Rio Tibre.
Ser – Muitos dos poluentes que o senhor citou estão aí há algumas décadas. Mas o senhor usou o termo “assustador”, como se essa situação tivesse piorado muito...
Saldiva – Quando se vê que Pequim tem os níveis de poluição iguais aos de Londres, em 1952, percebe-se que o mundo não está fazendo a lição de casa. Ou quando descobrimos mais evidências da relação do baixo peso dos bebês no nascimento com a poluição do ar. Isto quer dizer que a poluição começa a reproduzir o que o cigarro provoca. A diferença é que, por exemplo, em São Paulo, 20% da população fuma, enquanto que 100% de nós, independentemente da idade, estamos expostos à poluição e dependemos de políticas públicas. É assustador quando vemos, por exemplo, que alguns acordos globais importantes em relação ao meio ambiente estão ameaçados por políticas nacionalistas. Ou que não consigamos incorporar nos custos do processo produtivo ou no ciclo de vida de algumas alternativas energéticas, o custo da vida humana e da saúde. Ainda existe uma resistência grande e uma negação dessa realidade. Precisamos que as pessoas entendam isso, e as profissões da Saúde são as mais indicadas para ajudar nesse entendimento – por sua credibilidade e pela capilaridade do sistema de saúde – e para tentar mudar atitudes, não só em uma escala planetária, mas também em relação ao aqui e agora. Dizer para as pessoas deixarem o carro em casa, ficar no escuro à noite, tomar banho de caneca uma vez por semana e não comer carne vermelha porque, daqui a 80 anos, vai ter o efeito estufa, não é uma coisa que atraia multidões. É preciso conquistar as pessoas que querem viver a vida delas agora. É preciso mostrar que existem efeitos locais adversos provocados por poluentes que não são os do efeito estufa. É preciso mostrar que há práticas mais sustentáveis, como, por exemplo, comer menos proteína animal, que reduz também o risco de arteriosclerose e de câncer gastrointestinal; que usar transporte coletivo faz a pessoa caminhar, sem perceber, de 5 a 10 mil passos por dia, entre os deslocamentos. Ou seja, assim emitimos menos gás de efeito estufa e reduzimos os riscos de doença cardiovascular, diabetes, osteoporose, entre outros. Deveríamos antecipar as vantagens das práticas sustentáveis para o tempo e o espaço onde vive cada pessoa.
Ser – Quais iniciativas deveriam ser desenvolvidas nesse sentido?
Saldiva – Existem algumas iniciativas de hospitais saudáveis, mas, na maioria, ficam restritas a essas instituições. Os hospitais reproduzem o que os bancos fazem. É preciso olhar, também, para outras dimensões: um jovem de periferia de São Paulo gasta de três a quatro horas por dia entre a ida e a volta do trabalho. São horas a mais para ele engordar, estudar menos e ter um salário menor quando for adulto. Há estudos mostrando que o tempo perdido inutilmente em deslocamentos é um importante determinante de baixa renda na vida adulta. A saúde dessa pessoa está sendo prejudicada fisicamente, mas também em dimensões muito importantes da completude humana. Por isso, acho que a questão ambiental não está relacionada apenas com a saúde, mas também com direitos fundamentais da pessoa. Os médicos são como biólogos de um bicho só, que é o ser humano. Poderíamos fundar a Sociedade Protetora do Ser Humano. Quase 90% das pessoas moram em cidades, e questões como trânsito, violência, letalidade, obesidade etc. têm a ver com a Saúde. Não dá para discutir a velocidade máxima na Marginal Tietê ou opções de combustível de ônibus sem que a Saúde tenha um protagonismo.
"São Paulo é uma cidade feia, mas tem personalidade. A bicicleta sá uma amplitude visual."
Ser – Como os médicos podem ajudar nessas questões?
Saldiva – Por exemplo, não daria para o médico prescrever para o paciente descer do ônibus antes, usar a escada no local do trabalho, reduzir a dieta de proteínas, não só do ponto de vista calórico, mas até de emissões de carbono? Não daria para perguntar ao rapaz que não consegue dormir qual ruído tem em seu quarto ou se tem alguma fábrica perto? Ou aconselhá-lo a reduzir a luminosidade artificial de tal forma que ele prepare mais os sistemas naturais em função do sono? Há uma série de questões que podem ser feitas aos pacientes, como quanto tempo eles ficam presos no trânsito. Se o paciente tem conjuntivite, é preciso saber por quê; a poluição é um agravante da conjuntivite, não é somente a bactéria. Podemos recomendar a limpeza do ar condicionado ou um exame do filtro do mesmo para saber se tem fungos. Tem uma série de perguntas que nós, médicos, podemos fazer durante a anamnese convencional, mas não as fazemos. Não perguntamos se a calçada é boa, nem mesmo nos nossos hospitais. Como permitem calçadas que parecem uma cratera lunar? Como se deixa um orelhão em calçada tátil para deficientes visuais? Como não há calçadas acessíveis? Como não tem banheiros? Os médicos podem perguntar sobre questões e hábitos novos que não estão nos livros atuais, mas estarão rapidamente, no futuro. Podem, inclusive, não só aconselhar como atuar proativamente junto às secretarias regionais. Concordo que temos de ter uma cidade mais bonita, mas também tem de ser mais habitável, mais caminhável, mais verde, mais uma série de outras coisas. Isso envolve a elaboração de políticas públicas. É preciso resolver os temas atuais da urbanidade não somente com vacinas ou matando mosquito. Temos de trabalhar com conceitos que, teoricamente, seriam ligados ao urbanismo. A saúde humana e a qualidade de vida deveriam unificar todas as políticas públicas. As secretarias de Saúde e as de Educação deveriam ser o eixo unificador de todas as demais. Essas pastas, em níveis federal, estadual e municipal, conseguem vacinar milhões de pessoas em um fim de semana. Então existe uma organização e um perfil facilitadores para que a questão ambiental ganhe uma dimensão maior para preservar a espécie humana.
Ser – O senhor está coordenando o trabalho de biópsias menos invasivas com um novo aparelho de ressonância magnética. Quais as inovações desse projeto?
Saldiva – O projeto Plataforma de Imagem na Sala de Autópsia (Pisa) foi iniciado há três anos. Ele conta com o primeiro aparelho de ressonância magnética para corpo inteiro com campo de 7 tesla da América Latina, o Magnetom 7T MRI, que fica em um laboratório subterrâneo de 500 metros quadrados, ao lado da sede da Fmusp. Estamos usando-o, principalmente, para o estudo de cadáveres recebidos pelo Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC), onde realizamos cerca de 15 mil autópsias por ano de mortes naturais; as violentas são feitas pelo Instituto Médico Legal (IML). Estamos trabalhando para desenvolver técnicas de diagnóstico por imagem que ajudem a identificar a causa da morte de forma menos invasiva do que a autópsia tradicional. Complementamos esse trabalho com ultrassons e raios X. Para validar esse novo método, usamos, com o consentimento dos familiares do paciente morto, a ressonância magnética e a autópsia convencional, para comparar ambos os métodos. Além disso, utilizamos um questionário da Organização Mundial de Saúde (OMS) junto aos familiares, baseado em um programa de computador, que visa diagnosticar as causas da morte de uma pessoa. As respostas ao questionário são comparadas à imagem da ressonância magnética e à autópsia convencional para verificarmos se ajudam mesmo a estabelecer as causas da morte. O projeto envolve o aspecto médico, de patogenia de doença, e alvos terapêuticos, ou seja, uma parte hospitalar e outra de pesquisa. Algumas doenças se tornaram prevalentes depois que a autópsia tinha deixado de ser uma prática comum. Esse aparelho de ressonância permite termos um detalhamento anatômico, devido ao seu campo magnético muito forte. Portanto, conseguimos saber o que tem em tal lugar, fazer estudos de metabolismo de áreas específicas, com uma resolução muito grande. E a autópsia permite, ao mesmo tempo, que eu valide essas técnicas não invasivas por meio da obtenção do tecido normal.
Um dos objetivos do projeto que utiliza o potente aparelho de ressonância magnética Magnetom 7T MRI é estudar a relação entre hábitos de vida, condições ambientais e suas consequências para o corpo humano
Ser – Quais são os objetivos do projeto?
Saldiva – Estudar a relação entre hábitos de vida, condições ambientais da cidade de São Paulo e suas consequências para o corpo humano, entre outros. Para isso, é importante ter uma técnica minimamente invasiva, sem a necessidade de se abrir o corpo após a morte, para estudo, apenas retirando um fragmento. Não seria uma doação de órgão, mas uma doação de conhecimento. Poderíamos dar conforto à família explicando exatamente o que aconteceu e, ao mesmo tempo, saber se foi feita a patogenia daquela doença, se foi feito o possível, se havia alguma coisa a mais a ser feita, para o controle de qualidade hospitalar. Para isso, estamos usando, também, ultrassons e tomografia. Alguns ultrassons são ligados a telefone multifuncional, permitindo fazer a autópsia em qualquer lugar, à beira do leito, e estamos validando os resultados também por meio da autópsia convencional. Esses ultrassons portáteis podem ajudar, também, por exemplo, a estudar uma febre em qualquer região brasileira, fazendo biópsia prática de fígado e de baço, para saber se é febre amarela. Eles permitem também que, em qualquer lugar, uma equipe de saúde, supervisionada por um médico, colete material de cadáveres. Estima-se que cerca de 70% das pessoas que morrem, no mundo, não têm a causa básica de morte definida com precisão. Se não tivermos informações confiáveis sobre os motivos das mortes, não há como implementar políticas públicas, e, se implementadas, não tem como avaliar a eficiência delas baseada na mortalidade. Por isso, estamos usando esse enorme serviço de autópsia não apenas para fazer a rotina de emitir atestado de óbito, mas, também, para estudar doenças que ficaram frequentes, para desenvolver métodos alternativos visando melhorar a acurácia da qualidade hospitalar. É uma linha nova, mas muito promissora.
Ser – Já tem resultados práticos?
Saldiva – Muitos. Temos mais de 20 artigos publicados nas melhores revistas científicas. Um dos conhecimentos mais importantes proporcionado pelo projeto é que educação e escolaridade são importantes fatores de proteção contra a demência. Isso foi evidenciado. Temos, também, um projeto muito interessante em curso, para saber o papel da poluição no aceleramento do processo de envelhecimento cerebral. Há muita gente trabalhando nesses projetos.
Ser – O senhor continua se locomovendo de bicicleta? Continua tocando gaita?
Saldiva – Sim. Tive um acidente, mas já estou usando a bicicleta novamente para me locomover. Faço isso desde os 17 anos. Para mim, é a hora em que vejo a cidade. São Paulo é uma cidade feia, mas tem personalidade. A bicicleta dá uma amplitude visual. Se você entra em um carro e fica se defendendo no trânsito, a cidade passa a ser um obstáculo e não um lugar de encontro. Acho que a bicicleta é uma espécie de adolescência que mantive e pretendo manter. E continuo tocando gaita, um pouco menos porque tenho chegado em casa muito tarde; tenho tido uma dupla jornada de trabalho. Gosto também de fazer fotos e voltei a escrever um pouco de literatura.
*Editora da Ser Médico