CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Mauro Gomes Aranha de Lima
ENTREVISTA (pág. 4)
Kerry Sulkowicz
CRÔNICA (pág. 10)
Fabrício Carpinejar*
CONJUNTURA (pág. 12)
Intoxicação alcoólica
DEBATE (pág. 16)
Lei Maria da Penha e a violência contra a mulher
MÉDICOS NO MUNDO (pág. 23)
Denis Mukwege
HOBBY DE MÉDICO (pág. 27)
Vidal Haddad Júnior
GIRAMUNDO (Pág. 30 e 31)
Avanços da ciência
PONTO COM (Pág. 32 e 33)
Mundo digital & tecnologia científica
HISTÓRIA DA MEDICINA (Pág. 34)
Paulo Tubino* e Elaine Alves**
CULTURA (Pág. 38)
Fernando Zarif
GOURMET (Pág. 44)
Kelma Vera Donuetts
MÉDICOS QUE ESCREVEM (pág. 42)
Luiz Carlos Aiex Alves*
FOTOPOESIA (Pág. 48)
Paulo Neruda
GALERIA DE FOTOS
HISTÓRIA DA MEDICINA (Pág. 34)
Paulo Tubino* e Elaine Alves**
Interpretações equivocadas sobre a anatomia
humana ao longo do tempo
Madonna Gualino, c. 1280, atribuída a Duccio di Buoninsegna.
O menino Jesus é representado como um adulto em miniatura.
Estudos anatômicos de Leonardo da Vinci, entre 1504 e 1508
Vários textos, gravuras, pinturas e esculturas de antigamente mostram, com frequência, equívocos dos médicos, pesquisadores e artistas de então. Não havia como estudar a fundo anatomia, fisiologia e, sobretudo, embriologia. A comunicação entre esses observadores era difícil, assim como a troca de experiências. Uma análise mais apurada, no entanto, nos leva a concluir que na verdade eram gênios, pessoas excepcionais que apesar de tudo estabeleceram as bases da medicina atual. Nosso trabalho não é de críticas ou simples detecção de erros. A proposição é aproveitar esses equívocos justificáveis para motivar o aprendizado dos conceitos atualmente aceitos.
Proporções corporais do recém-nascido
Na Idade Média, a criança era representada como um adulto pequeno. Até o século 13, a arte medieval desconhecia a infância ou não se preocupava em representá-la. De fato, entre a Idade Média e o século 17, as crianças se vestiam, executavam tarefas e se comportavam socialmente como adultos. Entretanto, Leonardo da Vinci (1452-1519) já conhecia as proporções corporais do recém-nascido, mostrando o crescimento desigual dos diferentes segmentos corporais.
Apêndices caudais
No ser humano, a modelação embrionária do períneo se faz ao mesmo tempo em que há a regressão caudal. Hoje se sabe que a regressão do broto caudal se faz pela migração de seu mesênquima para o períneo a fim de modelá-lo.
Modelação do períneo pelo mesênquima do broto caudal
A presença congênita de cauda em seres humanos traz consigo sérias anomalias do períneo. Curiosamente, as figuras mitológicas com apêndices caudais os apresentam muito grandes e sem outras anormalidades.
Pazuzu, rei dos demônios do vento na mitologia
da antiga Mesopotâmia
Teseu e o Minotauro, de Antoine-Louis Barve (1843).
Museu do Louvre, Paris, França
Sereias. Sirenomelia
Na sirenomelia há desaparecimento precoce da cauda com ausência da abertura anal e do seio urogenital. Há sempre rotação externa dos membros inferiores: patelas situadas lateralmente, fíbulas medialmente e planta dos pés para frente, o que não se vê nas sereias famosas.
Primeira imagem: caso de sirenomelia (Musée Testut Latarjet d'anatomie
et d'Histoire naturelle médicale, Lyon, França).
Segunda imagem: a Pequena Sereia de Copenhague, Dinamarca
Ciclopes. Ciclopia
Na mitologia greco-romana os ciclopes eram gigantes ferozes, com um olho no meio da testa e força prodigiosa. Polifemo, descrito por Homero na Odisseia, foi vencido por Ulisses que lhe cravou no olho uma estaca de oliveira.
Nos casos de ciclopia há uma anormalidade na interposição do broto frontal entre os brotos maxilares. Assim, nunca poderá haver a formação do nariz em seu local normal. O broto frontal não desce, fica acima do olho único na forma de um apêndice, a probóscis.
Polifemo, por Johann Tischbein, 1802, Landesmuseum Oldenburg.
A seguir, caso de ciclopia com probóscis (caso pessoal dos autores)
A Pietà, de Michelangelo
Pietà (1498-1499), Michelangelo Buonarroti,
Basílica de São Pedro, Vaticano
Obra inicialmente criticada pelo fato de o Cristo ser menor que a Virgem. Na verdade, Michelangelo alterou deliberadamente as proporções. O Cristo é menor que a mãe para mostrar que é seu filho. A Virgem Maria foi representada muito mais jovem que Jesus para atender o ideal renascentista de beleza e juventude: mãe eternamente jovem e bela.
Gêmeos conjuntos ou siameses
Gêmeos conjuntos (também chamados de gêmeos siameses) são gêmeos formados a partir do mesmo zigoto (monozigóticos), em que não ocorre a divisão completa do disco embrionário. Em consequência, formam-se gêmeos que estarão ligados por uma parte do corpo ou com uma parte do corpo comum aos dois.
A gravura acima (gêmeos Löwener, 1547, Kupferstichkabinett, Berlim, Alemanha) não é correta nos seguintes aspectos: são gêmeos monozigóticos de sexos diferentes; posição atípica dos braços para esta monstruosidade; postura imprópria dos gêmeos, que morreram quatro horas após o nascimento. Os gêmeos conjuntos mais famosos foram Chang e Eng (1814-1874), nascidos no Sião (atual Tailândia) e daí o nome gêmeos siameses que passou a designar esses casos. Eram ligados pelo esterno, casaram-se com duas irmãs, em 1843, e tiveram 22 filhos.
“A Lição de Anatomia do Dr. Tulp”
A Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp (c.1632),
Rembrandt van Rijn, Mauritshuis, Haia, Holanda
Talvez essa seja a mais famosa das pinturas sobre lições de anatomia, na qual foram apontados alguns equívocos. Pode-se observar: os músculos flexores longos superficiais do antebraço, pinçados pelo dr. Tulp, estão inseridos no epicôndilo lateral do úmero e não no medial, como seria o correto; os dois membros superiores do cadáver têm comprimentos diferentes. Também chama a atenção o abdome intacto porque, naquela época, as dissecções eram iniciadas justamente pelo abdome, local onde a putrefação era mais precoce.
Equívocos de Leonardo?
Na Mona Lisa (La Gioconda), famoso quadro de Leonardo da Vinci, pode-se observar: provável lipoma no dorso da mão direita; tumor subcutâneo supraorbitário esquerdo; mancha na parte interna da pálpebra superior esquerda; ausência dos supercílios. O retrato de Mona Lisa é, provavelmente, a primeira evidência de que lipoma e xantelasma eram prevalentes no século XVI, bem antes da primeira descrição publicada, em 1851, por Thomas Addison (1793-1860) e William Gull (1816-1890).
Mona Lisa (La Gioconda), c.1503-1506, Leonardo da Vinci.
Museu do Louvre, Paris, França
Leonardo nunca havia dissecado um útero de mulher grávida. Assim, desenhou um útero de vaca, mas com a criança em posição fetal perfeita. Por sua vez, as ilustrações do anatomista e obstetra escocês William Hunter (1718-1783) oferecem uma vista precisa do crescimento fetal e do crescimento uterino concomitante; até então os fetos eram representados como um pequeno adulto flutuando na cavidade uterina.
Primeira imagem: estudo anatômico do útero grávido por Leonardo da Vinci, c.1510-1513. Royal Collection, Queen's Gallery, Inglaterra. A seguir, Anatomia uteri humani gravidi (Anatomia do útero humano grávido). William Hunter, 1774.
* Cirurgião pediatra, doutor e livre-docente em Cirurgia pela USP, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), professor da Disciplina História da Medicina, Faculdade de Medicina, UnB.
** Cirurgiã pediatra, doutora em Medicina pela Unifesp. professora associada da UnB, coordenadora da Disciplina História da Medicina, Faculdade de Medicina, UnB.