CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Mauro Gomes Aranha de Lima
ENTREVISTA (pág. 4)
Kerry Sulkowicz
CRÔNICA (pág. 10)
Fabrício Carpinejar*
CONJUNTURA (pág. 12)
Intoxicação alcoólica
DEBATE (pág. 16)
Lei Maria da Penha e a violência contra a mulher
MÉDICOS NO MUNDO (pág. 23)
Denis Mukwege
HOBBY DE MÉDICO (pág. 27)
Vidal Haddad Júnior
GIRAMUNDO (Pág. 30 e 31)
Avanços da ciência
PONTO COM (Pág. 32 e 33)
Mundo digital & tecnologia científica
HISTÓRIA DA MEDICINA (Pág. 34)
Paulo Tubino* e Elaine Alves**
CULTURA (Pág. 38)
Fernando Zarif
GOURMET (Pág. 44)
Kelma Vera Donuetts
MÉDICOS QUE ESCREVEM (pág. 42)
Luiz Carlos Aiex Alves*
FOTOPOESIA (Pág. 48)
Paulo Neruda
GALERIA DE FOTOS
MÉDICOS NO MUNDO (pág. 23)
Denis Mukwege
No Congo, o estupro é uma arma de guerra
Considerado o maior especialista do mundo no tratamento
da fístula vaginal, o médico Denis Mukwege
coloca a vida em risco ao combater a violência
às mulheres de seu país e apontar os motivos
da guerra civil
Quem o vê, algumas vezes sorridente, em fotos, não imagina a violência contra a qual ele luta cotidianamente, uma das mais terríveis que o ser humano é capaz de provocar, ainda, no século 21. Ele é Denis Mukwege, 61 anos, médico da República Democrática do Congo (RDC), que tem dedicado sua vida, nos últimos 30 anos, a operar e refazer o aparelho genital de mulheres – de 5 a 80 anos e, ultimamente, também de bebês – vítimas de estupros coletivos como arma de guerra. E também denuncia ao mundo, incansavelmente, esses crimes hediondos perpetrados pelas milícias armadas envolvidas na guerra civil que atinge o país há cerca de 15 anos, e até mesmo pelas próprias forças de segurança locais.
De novembro de 1999 a dezembro do ano passado, 48.842 mulheres vítimas de violência sexual e 37.382 mulheres com patologias ginecológicas foram tratadas pelo médico e sua equipe, no Hospital de Panzi, instituição de referência localizada na cidade de Bukavu, na RDC, que ele fundou com o apoio de organizações não-governamentais suecas. Mas os números são apenas a ponta do iceberg, segundo Mukwege, filho de um pastor pentecostal, que se formou médico no Burundi e fez especialização na França. “Panzi é o único hospital na RDC nessa especialidade, e trata as mulheres que não se esconderam; mas quantas morrem no anonimato total com medo de serem estigmatizadas?” – questionou ele em maio último, em entrevista concedida durante sua participação no Fórum da Liberdade de Oslo, Suécia que reúne, anualmente, militantes a favor da paz.
Segundo afirmou o medico na mesma ocasião, a violência, que já era aterrorizante, atinge o paroxismo com o aumento do número de bebês e crianças vítimas dos estupros. “Tenho 30 anos de experiência como obstetra-ginecologista e cirurgião, mas ver bebês de 12 meses, e, às vezes, de seis meses, com o períneo completamente destruído é um fenômeno novo e inquietante”, indignou-se, alertando que o crime “está se espalhando na sociedade e não acontece apenas nas zonas de conflito; a brutalidade dos estupros, feitos muitas vezes com os canos de armas de fogo e paus, acompanhados de ácido e tiros, não tem limites”.
Vista aérea do Hospital de Panzi, criado por Mukwege,
com apoio sueco
Para reparar a violência sexual, Mukwege, considerado o maior especialista no mundo nessa área, desenvolveu uma técnica menos invasiva para tratar a fístula vaginal, rompimento entre a vagina e o ânus ou entre a vagina e a bexiga, devido a estupro violento ou parto difícil. O rompimento da fístula faz com que a mulher não consiga segurar a urina ou as fezes, e pode provocar vários tipos de infecções. O médico criou também um programa de treinamento para enfermeiras e médicos tratarem as vítimas, abrangendo, além das cirurgias, tratamento para sífilis e HIV, doenças que muitas delas contraem nos estupros. Organizou, ainda, um serviço itinerante para atender vítimas de menor gravidade.
"Tratamos as mulheres que não se esconderam, mas quantas morrem
com medo de serem estigmatizadas?",
questiona o médico congolês
O Hospital de Panzi dispõe de 450 leitos, sendo 144 dedicados às sobreviventes de violências sexuais. Conta com 373 agentes de saúde e 40 médicos, dos quais 21 com diferentes especializações. Todas as pacientes que não podem pagar as despesas médicas são tratadas gratuitamente. Embora seja uma instituição considerada pública, o governo da RDC impõe ao hospital mais taxas do que aos demais do país. Sua sobrevivência deve-se à ajuda financeira proveniente de organizações estadunidenses e europeias.
Indicado ao Prêmio Nobel da Paz desde 2009, o médico congolês, entretanto, ainda não recebeu a merecida homenagem. Porém, já recebeu 26 outros prêmios, em reconhecimento ao seu trabalho, como o Prêmio Sakharov de Direitos Humanos, concedido pelo Parlamento Europeu; o Prêmio de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e o Prêmio Olof Palme, da Suécia, considerado o Nobel alternativo; além de vários títulos de doutor honoris causa, como o da Universidade de Harvard.
Atentado
A luta de Mukwege vai além de sua atuação como médico, ao se engajar em um amplo ativismo contra a guerra na RDC, denunciando os interesses econômicos e geopolíticos em jogo, em todas as oportunidades e entrevistas à imprensa congolesa e internacional. Guerra e estupro de mulheres estão claramente vinculados, em sua opinião. “É um método de tortura. Quando vejo alguns dos ferimentos nas mulheres e crianças, chego à conclusão que esse tipo de violência tem pouco a ver com sexo: é uma forma de exercer poder através de terrorismo”, afirmou recentemente ao jornal britânico The Guardian. “Essa será a destruição do povo congolês. Se destruírem úteros suficientes, não haverá crianças. Então por que vocês não vêm diretamente e pegam os minerais logo?”, indagou na mesma entrevista (confira box na página anterior).
Sua luta e coragem valeram-lhe, praticamente, uma vida em reclusão no Hospital de Panzi, vigiado por seis policiais, de onde só sai com colete à prova de balas, capacete, e em veículo blindado da missão de paz da ONU na RDC, após o atentado que sofreu, em outubro de 2012. Sua família foi mantida como refém até ele chegar e só escapou da tentativa de assassinato porque se jogou ao chão, mas seu amigo e guarda de segurança, Joseph Bizimana, foi morto. O ataque ocorreu poucas semanas depois de ter denunciado a guerra na RDC durante um discurso na ONU. Depois do ataque, Mukwege e sua família exilaram-se na Europa, mas ele retornou ao hospital três meses depois, após manifestações de mulheres e colegas que prometeram ajudar na sua segurança. Foi recebido por uma multidão de pessoas em êxtase com seu retorno. A volta foi possível também devido à campanha global que ele desenvolveu com a ONG Physicians for Human Rights (PHR) (confira entrevista na pág. 4 desta edição), durante esse período, reivindicando proteção individual para os profissionais de organizações humanitárias que trabalham nas linhas de frente dos conflitos armados.
O médico tornou-se, também, personagem do documentário O homem que conserta as mulheres, de autoria da renomada jornalista belga Colette Traeckman e dirigido pelo cineasta Thierry Michel, também belga. O diretor passou um ano – de setembro de 2014 a setembro de 2015 – em Kivu, epicentro dos conflitos congoleses, onde fica o Hospital de Panzi. Para ele, como para as mulheres congolesas, Mukwege “é um verdadeiro herói”. No filme, que está proibido na RDC, o médico conclui: “se pararmos de sofrer pelos outros, deixaremos de ser humanos”.
O pano de fundo da guerra são os minerais
As atrocidades da RDC parecem estar muito longe de nós, mas um dos motivos delas está em nossas mãos, ou melhor, no cobalto que integra a maioria das baterias de nossos celulares. Dono de 50% das jazidas mundiais desse mineral essencial para as novas tecnologias, o país é alvo da cobiça econômica, que não é apenas atual. Vem de longe, de um colonialismo depredador, que deixou uma herança nefasta, passando pela influência da guerra fria entre as potências e pelos conflitos étnicos insuflados por esses mesmos interesses econômicos (na foto acima, minas congolesas exploram o trabalho infantil, denuncia a Anistia Internacional). Tudo isso forma o caldo que resultou em uma guerra civil que atinge o país há 15 anos, período em que, calcula-se, morreram mais de seis milhões de pessoas. As forças da ONU deslocaram para o país cerca de 20 mil soldados, mas a paz parece, ainda, estar longe de ser alcançada.
Segundo maior país da África depois da Argélia, com uma população de 70 milhões de pessoas, a RDC é considerada um dos países mais ricos do mundo em recursos naturais e apontado como o segundo mais bio-diversificado, atrás apenas do Brasil. Além do cobalto, possui imensas jazidas de diamantes e ouro, entre outros minerais. No entanto, é um dos mais pobres do planeta, com um Produto Interno Bruto (PIB) per capita à frente, apenas, do Burundi.
O país tornou-se independente da Bélgica apenas em 1960, mas seu primeiro governante e líder da luta pela independência, Patrice Lumumba, nacionalista e socialista, foi assassinado pouco tempo depois de assumir o cargo. O crime, conforme foi denunciado posteriormente, foi planejado por países ocidentais (EUA, Inglaterra e Bélgica), que não queriam ver o país na órbita da então União Soviética. Desde então, o país passou, entre outros governantes, pela sangrenta ditadura de Mobutu, apoiado pelos serviços secretos estadunidenses, até resultar na guerra civil.
Enquanto isso, ou por isso, apenas 10% de suas reservas minerais são exploradas legalmente. A maioria é contrabandeada para países vizinhos, como Ruanda, Uganda e Burundi. Relatório divulgado, este ano, pela organização Anistia Internacional denuncia que grandes empresas mundiais não estão tomando as medidas básicas necessárias para garantir que o cobalto da RDC não seja explorado por meios quase escravagistas, inclusive de trabalho infantil. Segundo o documento, a empresa chinesa Huayou Cobalt, por meio de sua subsidiária CDM, é uma das maiores responsáveis por processar o cobalto antes de vendê-lo a três fabricantes de componentes de baterias na China e na Coreia do Sul, que por sua vez os fornecem aos grandes fabricantes de baterias e, esses, às gigantes de tecnologia como Apple, Sam¬sung e Sony, e do setor de automóveis, como Daimler e Volkswagen.
Mais informações:
http://www.hopitaldepanzi.org/
http://www.panzifoundation.org/dr-denis-mukwege/
Relatório da Anistia Internacional sobre o cobalto
Documentário sobre Denis Mukwege, no You Tube
“O estupro como arma de guerra não deve ser confundido com uma relação sexual não consentida, pois ele é cometido, frequentemente, contra civis, publicamente, e de maneira massiva e sistemática. As comunidades locais são, também, vítimas de uma profusão de violências sexuais, como escravidão sexual e esterilizações forçadas. Trata-se, antes de tudo, de uma estratégia de humilhação, poder e dominação. O estupro cometido com extrema violência visa não apenas a destruir o aparelho genital da mulher, mas também a aterrorizar a população, a forçar o deslocamento de populações, destruir a vida familiar e o tecido social. Ele visa, portanto, a destruir a fonte da vida, e diz respeito a todos nós. Além de tudo, deixa múltiplas sequelas após a guerra, principalmente nas crianças oriundas do estupro, uma vez que ele e a violência baseada em gênero dissemina-se como metástase nas sociedades traumatizadas e em via de perda de valores, frequentemente por muitas gerações.”
Comunicado à imprensa de Denis Mukwege, por ocasião do 1º Dia Internacional pela Eliminação das Violências Sexuais em Período de Conflito, que ele ajudou a criar, em junho último.