CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Mauro Gomes Aranha de Lima
ENTREVISTA (pág. 4)
Kerry Sulkowicz
CRÔNICA (pág. 10)
Fabrício Carpinejar*
CONJUNTURA (pág. 12)
Intoxicação alcoólica
DEBATE (pág. 16)
Lei Maria da Penha e a violência contra a mulher
MÉDICOS NO MUNDO (pág. 23)
Denis Mukwege
HOBBY DE MÉDICO (pág. 27)
Vidal Haddad Júnior
GIRAMUNDO (Pág. 30 e 31)
Avanços da ciência
PONTO COM (Pág. 32 e 33)
Mundo digital & tecnologia científica
HISTÓRIA DA MEDICINA (Pág. 34)
Paulo Tubino* e Elaine Alves**
CULTURA (Pág. 38)
Fernando Zarif
GOURMET (Pág. 44)
Kelma Vera Donuetts
MÉDICOS QUE ESCREVEM (pág. 42)
Luiz Carlos Aiex Alves*
FOTOPOESIA (Pág. 48)
Paulo Neruda
GALERIA DE FOTOS
ENTREVISTA (pág. 4)
Kerry Sulkowicz
“O único lado a ser admitido é o do paciente”
Em momento marcado por violência contra refugiados de guerras, atrocidades a prisioneiros, discriminação explícita por gênero, cor e raça, além de desmandos governamentais a civis, tranquiliza saber que representantes da categoria médica usam sua experiência e militância em prol dos direitos humanos. É o que faz, há três décadas, a Médicos pelos Direitos Humanos (PHR, sigla em inglês para Physicians for Human Rights), organização não governamental, com sede nos Estados Unidos, que – apesar de co-laureada pelo Nobel da Paz, em virtude de campanha para evitar a propagação de minas terrestres – ainda não é muito conhecida no Brasil.
Os médicos da PHR, ao lado de outros membros das equipes de saúde, usam a medicina e a ciência para documentar e chamar a atenção para violações às populações mais vulneráveis do planeta. Tais esforços vão desde apoiar e divulgar casos de colegas atingidos em zonas de confronto na Síria, passando pelas vítimas da impunidade policial, socorridas por especialistas quenianos; até identificar – e pedir punição – de médicos e enfermeiros envolvidos em esquemas de tortura perpetrados pela Central Intelligence Agency (CIA), em territórios dominados pelos EUA.
“Enquanto existirem violações dos direitos básicos, faremos a nossa parte”, garante Kerry Sulkowicz, presidente da PHR e professor de psiquiatria da Universidade de New York, nesta entrevista exclusiva à Ser Médico. Além de detalhar os focos de atuação da ONG, esse filho de poloneses sobreviventes do Holocausto, que também é colunista em Saúde da revista BusinessWeek, relembra a infância dedicada a entender “como os líderes podem influenciar grandes grupos de pessoas a fazer coisas boas e, especialmente, as ruins”.
Por Concília Ortona*
Ser Médico – A Physicians For Human Rights é uma ONG pautada na ideia de que médicos e demais profissionais da saúde possuem habilidades capazes de garantir credibilidade às investigações sobre abusos aos direitos humanos. Que habilidades são essas?
Kerry Sulkowicz – Médicos têm a obrigação ética de colocar os interesses de seus pacientes acima de qualquer outro, e de “não fazer o mal”, conforme preceito hipocrático. Em todo o mundo, são respeitados e considerados imparciais e objetivos na defesa de uma atuação baseada em ciência, além de carregarem a crença de que seu primeiro dever é salvar vidas. Por isso, quando médicos, enfermeiros etc. testemunham e relatam abusos físicos e psicológicos aos direitos humanos, entende-se que não estejam motivados por interesses partidários em relação a governos ou aos opositores do Estado: em situações de conflito, o único lado a ser admitido é o do paciente. Espera-se, enfim, que sejam profissionais profundamente comprometidos com a defesa dos direitos das pessoas.
"Espera-se que os médicos sejam profundamente comprometidos
com a defesa dos direitos das pessoas"
SM – Como é o trabalho dos médicos e cientistas envolvidos no PHR? Pode dar exemplos reais, quanto à prevenção de violações e tratamento das vítimas?
Sulkowicz – Médicos e cientistas estão presentes em todos os aspectos do nosso trabalho, que abrange mais de 60 países, incluindo o Afeganistão, Bangladesh, Colômbia, República Democrática do Congo, México e, mesmo, Estados Unidos. Na Síria, por exemplo (confira crônica à pág. 42), os colegas treinados pela PHR dedicam-se a examinar sobreviventes de torturas perpetradas tanto pelas forças de governo quanto pela oposição, documentando evidências físicas e psicológicas de terríveis violações aos direitos humanos. São estimulados, entre outros motivos, pela possibilidade de que, um dia, os sinais encontrados possam ser usados para garantir que os torturadores enfrentem a Justiça por seus crimes. Na região da antiga Iugoslávia (hoje, Sérvia, Croácia e Eslovênia, entre outros países) e em Ruanda, África, onde milhares de pessoas foram enterradas sem identificação, em valas comuns, os cientistas do PHR exumaram corpos de sepulturas e realizaram autópsias que contribuíram para a condenação de criminosos de guerra. Após a dura repressão governamental a protestos acontecidos em 2013, no Parque Gezi, Turquia (quando alguns ambientalistas se manifestaram contrários ao corte de árvores, e conseguiram aglutinar mais de 2,5 milhões de indivíduos), nossos colegas, em parceria com organizações locais de defesa dos direitos humanos, incumbiram-se de examinar os manifestantes, confirmando que houve, sim, abuso por parte das forças de segurança turcas. Isso provocou um clamor mundial entre grupos de médicos, chamando a atenção para aquela região. Nos Estados Unidos, médicos e psicólogos voluntários do PHR trabalharam, junto a autoridades públicas, avaliando requisições de asilo político, para fundamentar as histórias dos requerentes quanto à tortura e violência física e mental em seus países de origem; muitos são da América Latina. Tais análises são usadas como provas em audiências de imigração, tornando-se fundamentais na garantia de refúgios seguros.
SM – Que iniciativa levou a PHR ser co-laureada com o Nobel da Paz?
Sulkowicz – Em 1997, o comitê norueguês do Nobel atribuiu o Prêmio Nobel da Paz à Campanha Internacional para a Proibição das Minas Terrestres, compartilhado entre a professora Jody Williams, ativista e coordenadora da iniciativa, e os membros fundadores da campanha, inclusive, a PHR. Em seu anúncio, o comitê do Nobel elogiou nossas ações pelo fim das minas, considerando-as como baseadas em “uma visão de realidade viável” e afirmando serem “modelo para processos semelhantes no futuro”, em temas como desarmamento e paz. Tudo começou em 1991, quando pesquisa elaborada pela PHR expôs a ameaça à saúde pública proveniente das terríveis minas terrestres no Camboja. Em parceria com a organização Human Rights Watch, a PHR lançou o relatório Coward’s War: Landmines in Cambodia (em tradução livre, Guerra de covardes: as minas terrestres no Camboja) que, pela primeira vez, defendeu a proibição abrangente dessa arma mortal, apontando ao mundo os efeitos devastadores entre civis vitimados por mutilação e morte. E pior: essas pessoas vivem em países já devastados pelas cicatrizes econômicas, ambientais e psicológicas de guerras. Enfim, a PHR é fundadora e membro ativo, desde o início, da campanha pela proibição das minas, em 1992, realizando pesquisa crítica relativa à prevalência e às consequências médicas das lesões causadas por essas armas; e mobilizando a comunidade de trabalhadores da saúde em direção ao tratado internacional, que veda o uso, comércio, produção e armazenamento de minas terrestres, assinado por 80% dos governos. (N. da R.: os EUA não são signatários do tratado).
SM – Qual situação exigiu maior atenção por parte do PHR?
Sulkowicz – O foco recente da PHR é o conflito na Síria, onde, desde março de 2011, ataques deliberados e sistemáticos ao sistema de assistência local mataram mais de 738 médicos e outros profissionais da área de saúde, e danificou – ou destruiu completamente– cerca de 260 hospitais e centros de saúde. Nosso projeto de mapeamento na Síria é único e reconhecido globalmente, por fornecer detalhes e documentos abrangentes das destruições desde o início da guerra, sendo mencionado por Ban Ki-moon, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em relatórios mensais ao seu Conselho de Segurança, e usado por agências de notícias humanitárias, além de autoridades políticas mundiais. Enfim, a atuação na Síria é parte integrante de missão mais ampla e voltada a defender e proteger os médicos e profissionais da área médica. Por outro lado, a ONG é bastante empenhada na luta para acabar com flagelos que, infelizmente, afetam países em todos os continentes, inclusive, o meu.
SM – Em um mundo com diferentes violações aos direitos humanos, por razões culturais, religiosas e por gênero, entre outras, como eleger as causas merecedoras de ativismo e defesa? Como lidar, ao mesmo tempo, com questões ligadas a humilhações a pacientes palestinos; e denunciar o suplício de prisioneiros sob a custódia do governo dos EUA?
Sulkowicz – A força e o alcance do trabalho da ONG dependem da parceria com organizações humanitárias de todo o mundo. Por exemplo, em conjunto com a Médicos pelos Direitos Humanos de Israel (organização independente, não ligada à PHR), nos empenhamos no sentido de eliminar a alimentação forçada de prisioneiros palestinos. Também na Turquia, ao lado da Fundação de Direitos Humanos e da Associação Médica locais, protestamos contra o ataque do governo às áreas curdas, na região sudeste. Vincent Iacopino, diretor médico da PHR, liderou campanha de mais de dez anos – que contou com a participação de compatriotas médicos estadunidenses –, voltada a expor a tortura de presos políticos pelo governo dos EUA, atos ilegais acumpliciados por colegas da área médica. Além desse trabalho, por mais de duas décadas Iacopino investigou e documentou ampla gama de atitudes deploráveis nos locais mais longínquos como Afeganistão, Botswana, Chechênia, Iraque e Zimbábue. Enquanto existirem violações aos direitos humanos básicos, estaremos orgulhosos por fazer nossa parte.
"Enquanto existirem violações de direitos humanos,
faremos a nossa parte"
SM – O Código de Ética Médica brasileiro proíbe aos médicos praticarem ou deixarem de denunciar “tortura ou procedimentos degradantes, desumanos ou cruéis”. Contudo, tais atos no contexto da saúde nem sempre são claros. Como prevenir?
Sulkowicz – Entre as missões da PHR figuram, por um lado, proteger os trabalhadores da Saúde e, por outro, assegurar que médicos, enfermeiros e demais membros das equipes não participem de maus-tratos ou outros danos aos pacientes. Campanha de mais de uma década da PHR, destinada a terminar com a cumplicidade entre profissionais da Saúde e torturadores militares da CIA, conquistou importantes vitórias no ano passado, quando a Associação Americana de Psicologia proibiu os psicólogos de participarem de interrogatórios de segurança nacional. Logo depois, o Pentágono retirou tais profissionais de todas as operações realizadas no Centro de Detenção da Baía de Guantánamo, em Cuba – base naval estadunidense onde se encontram presos das guerras do Afeganistão e do Iraque. Paralelamente, lideramos campanha em defesa de uma enfermeira da Marinha dos EUA, ameaçada de demissão e cassação de diploma, por eticamente ter se recusado a cumprir ordens militares de forçar a alimentação de prisioneiros em greve de fome. O empenho deu certo, pois o Departamento de Defesa dos EUA arquivou todos os processos movidos contra ela.
SM – No Brasil, a violência por gênero é quase tolerada culturalmente. Por exemplo, há o caso recente de adolescente estuprada por mais de 30 homens em uma favela que, depois da comoção inicial, passou a ser “culpabilizada” pelo crime. Como o médico pode agir, de forma a mudar essa cultura?
Sulkowicz – Infelizmente, a culpabilização de sobreviventes de violência sexual (confira debate sobre esse tema à pág. 16) é problema comum em todo o mundo. Para começar a mudar tal realidade, nosso programa de prevenção à violência sexual em zonas de conflito funciona no Quênia e na República Democrática do Congo (leia matéria sobre médico congolês à pág. 23). Nossos especialistas e parceiros quenianos e congoleses estão treinando mais de mil médicos, enfermeiros, advogados, policiais e juízes no sentido de evitar a impunidade. Evidências e provas são aglutinadas por meio de exames periciais, conversas com sobreviventes e levantamento de documentos. No Quênia, nossa organização juntou-se a três ONGs locais, com vistas a apoiar oito sobreviventes de violência sexual e, pela primeira vez na história, a processar o governo local pela incapacidade de proteger as pessoas durante violências pós-eleitorais em 2007-2008. O que se objetiva é a punição dos criminosos e reparação às vítimas.
SM – No Brasil, tramita no Senado Federal lei que pode flexibilizar regras voltadas a pesquisas com seres humanos. Alguns acreditam que isso pode tornar mais vulneráveis os voluntários dos estudos e aumentar o poder da indústria farmacêutica. A PHR lida com problemas semelhantes em outras nações?
Sulkowicz – A ideia de “consentimento informado” é um dos cernes do nosso trabalho. Isto significa que um paciente deve dar o seu consentimento explícito, antes de ser submetido a tratamento ou procedimento médico. Qualquer pesquisa envolvendo seres humanos é abusiva, na medida em que violar tal padrão. Em 2010, a PHR revelou que, além da já mencionada tortura com prisioneiros, a CIA se vinculou a pesquisas e experimentações ilegais com seres humanos, como parte das práticas de interrogatório durante o governo de Bush.
SM – Como o campo da Bioética se insere na questão da defesa dos direitos humanos?
Sulkowicz – Embora as áreas dos direitos humanos e da bioética provenham de diferentes origens, compartilham o objetivo comum de prevenir e aliviar o sofrimento e promover o respeito pela igualdade e dignidade humana. A ética médica e, como consequência, a bioética, contam com diretrizes e regras que regem, em especial, encontros clínicos entre médicos e pacientes, destinados a prevenir danos. Os direitos humanos podem ser vistos como uma elaboração à obrigação ética de não fazer o mal, sugerindo ao médico que vá além de apenas tratar e fornecer cuidados aos pacientes. Que ele use sua experiência profissional na resolução de causas profundas de sofrimento – tortura, pobreza ou guerra – advogando, na prática, em favor do doente.
SM – O que o motivou, como psiquiatra, a se interessar pelo campo dos direitos humanos? De alguma forma, sua especialidade é mais afeita a tais questões?
Sulkowicz – Ambos os meus pais eram sobreviventes poloneses do Holocausto. Lembro-me de crescer bastante consciente do trauma que haviam sofrido, e curioso por entender como líderes conseguem influenciar grandes grupos de pessoas a fazer coisas boas e, especialmente, as ruins. Anos mais tarde, quis ser médico pelos ideais da Medicina. Cuidar dos doentes, procurar a verdade e não fazer o mal – por conta de uma crença permanente no poder explicativo da ciência – são valores que alavancam minha busca pelos direitos humanos. Como psiquiatra, acredito que a liberdade emocional é um direito humano básico. Quando as pessoas vivem em condições de opressão, não só estão em risco de morte, mas também sujeitas a traumas emocionais graves e passíveis de deixar escondidas, para sempre, profundas cicatrizes. Enfim, atuar contra a opressão, prevenindo o sofrimento físico e mental, é parte da minha vocação como médico.
Mais informações
*Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública (USP)