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CAPA

PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Mauro Gomes Aranha de Lima


ENTREVISTA (pág. 4)
Kerry Sulkowicz


CRÔNICA (pág. 10)
Fabrício Carpinejar*


CONJUNTURA (pág. 12)
Intoxicação alcoólica


DEBATE (pág. 16)
Lei Maria da Penha e a violência contra a mulher


MÉDICOS NO MUNDO (pág. 23)
Denis Mukwege


HOBBY DE MÉDICO (pág. 27)
Vidal Haddad Júnior


GIRAMUNDO (Pág. 30 e 31)
Avanços da ciência


PONTO COM (Pág. 32 e 33)
Mundo digital & tecnologia científica


HISTÓRIA DA MEDICINA (Pág. 34)
Paulo Tubino* e Elaine Alves**


CULTURA (Pág. 38)
Fernando Zarif


GOURMET (Pág. 44)
Kelma Vera Donuetts


MÉDICOS QUE ESCREVEM (pág. 42)
Luiz Carlos Aiex Alves*


FOTOPOESIA (Pág. 48)
Paulo Neruda


GALERIA DE FOTOS


Edição 76 - Julho/Agosto/Setembro de 2016

ENTREVISTA (pág. 4)

Kerry Sulkowicz


“O único lado a ser admitido é o do paciente”


Em momento marcado por violência contra refugiados de guerras, atrocidades a prisioneiros, discriminação explícita por gênero, cor e raça, além de desmandos governamentais a civis, tranquiliza saber que representantes da categoria médica usam sua experiência e militância em prol dos direitos humanos. É o que faz, há três décadas, a Médicos pelos Direitos Humanos (PHR, sigla em inglês para Physicians for Human Rights), organização não governamental, com sede nos Estados Unidos, que – apesar de co-laureada pelo Nobel da Paz, em virtude de campanha para evitar a propagação de minas terrestres – ainda não é muito conhecida no Brasil.

Os médicos da PHR, ao lado de outros membros das equipes de saúde, usam a medicina e a ciência para documentar e chamar a atenção para violações às populações mais vulneráveis do planeta. Tais esforços vão desde apoiar e divulgar casos de colegas atingidos em zonas de confronto na Síria, passando pelas vítimas da impunidade policial, socorridas por especialistas quenianos; até identificar – e pedir punição – de médicos e enfermeiros envolvidos em esquemas de tortura perpetrados pela Central Intelligence Agency (CIA), em territórios dominados pelos EUA.

“Enquanto existirem violações dos direitos básicos, faremos a nossa parte”, garante Kerry Sulkowicz, presidente da PHR e professor de psiquiatria da Universidade de New York, nesta entrevista exclusiva à Ser Médico. Além de detalhar os focos de atuação da ONG, esse filho de poloneses sobreviventes do Holocausto, que também é colunista em Saúde da revista BusinessWeek, relembra a infância dedicada a entender “como os líderes podem influenciar grandes grupos de pessoas a fazer coisas boas e, especialmente, as ruins”.

 

Por Concília Ortona*

 

Ser MédicoA Physicians For Human Rights é uma ONG pautada na ideia de que médicos e demais profissionais da saúde possuem habilidades capazes de garantir credibilidade às investigações sobre abusos aos direitos humanos. Que habilidades são essas?

Kerry Sulkowicz – Médicos têm a obrigação ética de colocar os interesses de seus pacientes acima de qualquer outro, e de “não fazer o mal”, conforme preceito hipocrático. Em todo o mundo, são respeitados e considerados imparciais e objetivos na defesa de uma atuação baseada em ciência, além de carregarem a crença de que seu primeiro dever é salvar vidas. Por isso, quando médicos, enfermeiros etc. testemunham e relatam abusos físicos e psicológicos aos direitos humanos, entende-se que não estejam motivados por interesses partidários em relação a governos ou aos opositores do Estado: em situações de conflito, o único lado a ser admitido é o do paciente. Espera-se, enfim, que sejam profissionais profundamente comprometidos com a defesa dos direitos das pessoas.


"Espera-se que os médicos sejam profundamente comprometidos
com a defesa dos direitos das pessoas"

 

SMComo é o trabalho dos médicos e cientistas envolvidos no PHR? Pode dar exemplos reais, quanto à prevenção de violações e tratamento das vítimas?

Sulkowicz – Médicos e cientistas estão presentes em todos os aspectos do nosso trabalho, que abrange mais de 60 países, incluindo o Afeganistão, Bangladesh, Colômbia, República Democrática do Congo, México e, mesmo, Estados Unidos. Na Síria, por exemplo (confira crônica à pág. 42), os colegas treinados pela PHR dedicam-se a examinar sobreviventes de torturas perpetradas tanto pelas forças de governo quanto pela oposição, documentando evidências físicas e psicológicas de terríveis violações aos direitos humanos. São estimulados, entre outros motivos, pela possibilidade de que, um dia, os sinais encontrados possam ser usados para garantir que os torturadores enfrentem a Justiça por seus crimes. Na região da antiga Iugoslávia (hoje, Sérvia, Croácia e Eslovênia, entre outros países) e em Ruanda, África, onde milhares de pessoas foram enterradas sem identificação, em valas comuns, os cientistas do PHR exumaram corpos de sepulturas e realizaram autópsias que contribuíram para a condenação de criminosos de guerra. Após a dura repressão governamental a protestos acontecidos em 2013, no Parque Gezi, Turquia (quando alguns ambientalistas se manifestaram contrários ao corte de árvores, e conseguiram aglutinar mais de 2,5 milhões de indivíduos), nossos colegas, em parceria com organizações locais de defesa dos direitos humanos, incumbiram-se de examinar os manifestantes, confirmando que houve, sim, abuso por parte das forças de segurança turcas. Isso provocou um clamor mundial entre grupos de médicos, chamando a atenção para aquela região. Nos Estados Unidos, médicos e psicólogos voluntários do PHR trabalharam, junto a autoridades públicas, avaliando requisições de asilo político, para fundamentar as histórias dos requerentes quanto à tortura e violência física e mental em seus paí­ses de origem; muitos são da América Latina. Tais análises são usadas como provas em audiências de imigração, tornando-se fundamentais na garantia de refúgios seguros.

 

SM Que iniciativa levou a PHR ser co-laurea­da com o Nobel da Paz?

Sulkowicz – Em 1997, o comitê norueguês do Nobel atribuiu o Prêmio Nobel da Paz à Campanha Internacional para a Proibição das Minas Terrestres, compartilhado entre a professora Jody Williams, ativista e coordenadora da iniciativa, e os membros fundadores da campanha, inclusive, a PHR. Em seu anúncio, o comitê do Nobel elogiou nossas ações pelo fim das minas, considerando-as como baseadas em “uma visão de realidade viável” e afirmando serem “modelo para processos semelhantes no futuro”, em temas como desarmamento e paz. Tudo começou em 1991, quando pesquisa elaborada pela PHR expôs a ameaça à saúde pública proveniente das terríveis minas terrestres no Camboja. Em parceria com a organização Human Rights Watch, a PHR lançou o relatório Coward’s War: Landmines in Cambodia (em tradução livre, Guerra de covardes: as minas terrestres no Camboja) que, pela primeira vez, defendeu a proibição abrangente dessa arma mortal, apontando ao mundo os efeitos devastadores entre civis vitimados por mutilação e morte. E pior: essas pessoas vivem em países já devastados pelas cicatrizes econômicas, ambientais e psicológicas de guerras. Enfim, a PHR é fundadora e membro ativo, desde o início, da campanha pela proibição das minas, em 1992, rea­lizando pesquisa crítica relativa à prevalência e às consequências médicas das lesões causadas por essas armas; e mobilizando a comunidade de trabalhadores da saúde em direção ao tratado internacional, que veda o uso, comércio, produção e armazenamento de minas terrestres, assinado por 80% dos governos. (N. da R.: os EUA não são signatários do tratado).

 

SM Qual situação exigiu maior atenção por parte do PHR?

Sulkowicz – O foco recente da PHR é o conflito na Síria, onde, desde março de 2011, ataques deliberados e sistemáticos ao sistema de assistência local mataram mais de 738 médicos e outros profissionais da área de saúde, e danificou – ou destruiu completamente– cerca de 260 hospitais e centros de saúde. Nosso projeto de mapeamento na Síria é único e reconhecido globalmente, por fornecer detalhes e documentos abrangentes das destruições desde o início da guerra, sendo mencionado por Ban Ki-moon, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em relatórios mensais ao seu Conselho de Segurança, e usado por agências de notícias humanitárias, além de autoridades políticas mundiais. Enfim, a atuação na Síria é parte integrante de missão mais ampla e voltada a defender e proteger os médicos e profissionais da área médica. Por outro lado, a ONG é bastante empenhada na luta para acabar com flagelos que, infelizmente, afetam países em todos os continentes, inclusive, o meu.

 

SM Em um mundo com diferentes violações aos direitos humanos, por razões culturais, religiosas e por gênero, entre outras, como eleger as causas merecedoras de ativismo e defesa? Como lidar, ao mesmo tempo, com questões ligadas a humilhações a pacientes palestinos; e denunciar o suplício de prisioneiros sob a custódia do governo dos EUA?

Sulkowicz – A força e o alcance do trabalho da ONG dependem da parceria com organizações humanitárias de todo o mundo. Por exemplo, em conjunto com a Médicos pelos Direitos Humanos de Israel (organização independente, não ligada à PHR), nos empenhamos no sentido de eliminar a alimentação forçada de prisioneiros palestinos. Também na Turquia, ao lado da Fundação de Direitos Humanos e da Associação Médica locais, protestamos contra o ataque do governo às áreas curdas, na região sudeste. Vincent Iacopino, diretor médico da PHR, liderou campanha de mais de dez anos – que contou com a participação de compatriotas médicos estadunidenses –, voltada a expor a tortura de presos políticos pelo governo dos EUA, atos ilegais acumpliciados por colegas da área médica. Além desse trabalho, por mais de duas décadas Iacopino investigou e documentou ampla gama de atitudes deploráveis nos locais mais longínquos como Afeganistão, Botswana, Chechênia, Iraque e Zimbábue. Enquanto existirem violações aos direitos humanos básicos, estaremos orgulhosos por fazer nossa parte.


"Enquanto existirem violações de direitos humanos,
faremos a nossa parte"

 

SM O Código de Ética Médica brasileiro proí­be aos médicos praticarem ou deixarem de denunciar “tortura ou procedimentos degradantes, desumanos ou cruéis”. Contudo, tais atos no contexto da saúde nem sempre são claros. Como prevenir?

Sulkowicz – Entre as missões da PHR figuram, por um lado, proteger os trabalhadores da Saúde e, por outro, assegurar que médicos, enfermeiros e demais membros das equipes não participem de maus-tratos ou outros danos aos pacientes. Campanha de mais de uma década da PHR, destinada a terminar com a cumplicidade entre profissionais da Saúde e torturadores militares da CIA, conquistou importantes vitórias no ano passado, quando a Associação Americana de Psicologia proibiu os psicólogos de participarem de interrogatórios de segurança nacional. Logo depois, o Pentágono retirou tais profissionais de todas as operações realizadas no Centro de Detenção da Baía de Guantánamo, em Cuba – base naval estadunidense onde se encontram presos das guerras do Afeganistão e do Iraque. Paralelamente, lideramos campanha em defesa de uma enfermeira da Marinha dos EUA, ameaçada de demissão e cassação de diploma, por eticamente ter se recusado a cumprir ordens militares de forçar a alimentação de prisioneiros em greve de fome. O empenho deu certo, pois o Departamento de Defesa dos EUA arquivou todos os processos movidos contra ela.

 

SM No Brasil, a violência por gênero é quase tolerada culturalmente. Por exemplo, há o caso recente de adolescente estuprada por mais de 30 homens em uma favela que, depois da comoção inicial, passou a ser “culpabilizada” pelo crime. Como o médico pode agir, de forma a mudar essa cultura?

Sulkowicz – Infelizmente, a culpabilização de sobreviventes de violência sexual (confira debate sobre esse tema à pág. 16) é problema comum em todo o mundo. Para começar a mudar tal realidade, nosso programa de prevenção à violência sexual em zonas de conflito funciona no Quênia e na República Democrática do Congo (leia matéria sobre médico congolês à pág. 23). Nossos especialistas e parceiros quenianos e congoleses estão treinando mais de mil médicos, enfermeiros, advogados, policiais e juízes no sentido de evitar a impunidade. Evidências e provas são aglutinadas por meio de exames periciais, conversas com sobreviventes e levantamento de documentos. No Quênia, nossa organização juntou-se a três ONGs locais, com vistas a apoiar oito sobreviventes de violência sexual e, pela primeira vez na história, a processar o governo local pela incapacidade de proteger as pessoas durante violências pós-eleitorais em 2007-2008. O que se objetiva é a punição dos criminosos e reparação às vítimas.

 

SM No Brasil, tramita no Senado Federal lei que pode flexibilizar regras voltadas a pesquisas com seres humanos. Alguns acreditam que isso pode tornar mais vulneráveis os voluntários dos estudos e aumentar o poder da indústria farmacêutica. A PHR lida com problemas semelhantes em outras nações?

Sulkowicz – A ideia de “consentimento informado” é um dos cernes do nosso trabalho. Isto significa que um paciente deve dar o seu consentimento explícito, antes de ser submetido a tratamento ou procedimento médico. Qualquer pesquisa envolvendo seres humanos é abusiva, na medida em que violar tal padrão. Em 2010, a PHR revelou que, além da já mencionada tortura com prisioneiros, a CIA se vinculou a pesquisas e experimentações ilegais com seres humanos, como parte das práticas de interrogatório durante o governo de Bush.

 

SM Como o campo da Bioética se insere na questão da defesa dos direitos humanos?

Sulkowicz – Embora as áreas dos direitos humanos e da bioética provenham de diferentes origens, compartilham o objetivo comum de prevenir e aliviar o sofrimento e promover o respeito pela igualdade e dignidade humana. A ética médica e, como consequência, a bioética, contam com diretrizes e regras que regem, em especial, encontros clínicos entre médicos e pacientes, destinados a prevenir danos. Os direitos humanos podem ser vistos como uma elaboração à obrigação ética de não fazer o mal, sugerindo ao médico que vá além de apenas tratar e fornecer cuidados aos pacientes. Que ele use sua experiência profissional na resolução de causas profundas de sofrimento – tortura, pobreza ou guerra – advogando, na prática, em favor do doente.

 

SM O que o motivou, como psiquiatra, a se interessar pelo campo dos direitos humanos? De alguma forma, sua especialidade é mais afeita a tais questões?

Sulkowicz – Ambos os meus pais eram sobreviventes poloneses do Holocausto. Lembro-me de crescer bastante consciente do trauma que haviam sofrido, e curioso por entender como líderes conseguem influenciar grandes grupos de pessoas a fazer coisas boas e, especialmente, as ruins. Anos mais tarde, quis ser médico pelos ideais da Medicina. Cuidar dos doentes, procurar a verdade e não fazer o mal – por conta de uma crença permanente no poder explicativo da ciência – são valores que alavancam minha busca pelos direitos humanos. Como psiquiatra, acredito que a liberdade emocional é um direito humano básico. Quando as pessoas vivem em condições de opressão, não só estão em risco de morte, mas também sujeitas a traumas emocionais graves e passíveis de deixar escondidas, para sempre, profundas cicatrizes. Enfim, atuar contra a opressão, prevenindo o sofrimento físico e mental, é parte da minha vocação como médico.

Mais informações

*Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública (USP)

 


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