CAPA
PONTO DE PARTIDA (Pág. 1)
Mauro Gomes Aranha de Lima
ENTREVISTA (Pág. 4 a 9)
Maria Elizete Kunkel
CRONICA (Pág. 10 e 11)
Tati Bernardi*
SINTONIA (Pág. 12 a 15)
Literatura & Medicina
DEBATE (Pág. 16 a 22)
Diretivas Antecipadas de Vontade
LIVRO DE CABECEIRA (Pág. 23)
Caio Rosenthal*
EM FOCO (Pág. 24 a 27)
Rodolpho Telarolli Junior*
HISTÓRIA DA MEDICINA - (Pág. 28 a 31)
Edgard Roquette-Pinto
GIRAMUNDO (Pág. 32 e 33)
Avanços da ciência
PONTO COM - (Pág. 34 e 35)
Mundo digital & tecnologia científica
HOBBY (Pág. 36 a 39)
Médico & Fotógrafo
CULTURA (Pág. 40 a 43)
Cultura maia
TURISMO (Pág. 44 a 47)
Uma viagem à capital tcheca
FOTOPOESIA (Pág. 48)
Guilherme de Almeida
GALERIA DE FOTOS
SINTONIA (Pág. 12 a 15)
Literatura & Medicina
O que a Literatura ensina à Medicina?
Raquel Rangel Cesario*
Ler, se lermos para valer, fere. Arranca nacos do espírito, agita a sensibilidade e desloca os pensamentos. Essas marcas nunca cicatrizam por completo. A melhor forma de tratá-las é transformá-las em novos textos, que geram novas leituras, em um desdobramento infinito de escritores e de leitores que dialogam e se misturam.
(José Castello, em As feridas de um leitor)
A passagem acima nos remete à relação médico-paciente, em seu desdobramento infinito de diálogos entre pessoas que se necessitam, e à Medicina Baseada em Narrativa, que tantas contribuições podem trazer à prática médica humanizada.
No Brasil, as escolas médicas têm atribuição legal de formar um profissional generalista, humanista, crítico e reflexivo. Além de diagnosticar e tratar doenças, o médico deve estabelecer empatia com as pessoas e seus processos de adoecimento, saber comunicar-se de forma ética, manter-se atualizado e ainda cuidar de sua própria saúde física e mental. Essas são habilidades e competências que vão muito além do extenso e intenso conteúdo biomédico, também necessário aos currículos de Medicina. E aqui entra o poder da literatura de ficção.
Diversas universidades no mundo discutem e incluem em seus currículos temas de literatura para a formação humanista do médico. Há 20 anos, um terço das escolas médicas norte-americanas inclui o estudo de textos literários em seu currículo, desenvolvendo competências clínicas difíceis de ensinar, como habilidades de observação e interpretação, imaginação clínica, facilidade de expressão escrita e falada, autoconhecimento, entre outras competências. O King’s College of London, que tem uma das maiores e mais antigas escolas de Medicina do mundo, possui um departamento voltado às questões de Literatura e Medicina, oferecendo cursos de pós-graduação nessa área. Fora da academia, o programa Literature & Medicine: humanities at the heart of health care, do Massachusetts Foundation for Humanities and Public Policy é voltado para a humanização de profissionais da Saúde e empregado com sucesso em hospitais norte-americanos, dando a eles a oportunidade de refletir sobre seu papel como pessoa e cuidador de saúde, com benefícios comprovados para trabalhadores e pacientes.
No Brasil, pesquisadores discutem o papel da narrativa em Medicina, tratando-a como ferramenta fundamental para garantir a competência necessária ao soerguimento das hipóteses diagnósticas a partir da história da doença contada pelo paciente. Iniciativas nesse sentido têm surgido, como, por exemplo, o projeto Literatura e Medicina, na Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro; e a disciplina Literatura, Narrativa e Medicina, oferecida em 2015 pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em conjunto com a Faculdade de Medicina da mesma universidade.
Médicos protagonistas
Na Faculdade de Medicina da Universidade de Franca (Unifran), o projeto Literatura na Educação Médica, iniciado em 2012, começa a apresentar os primeiros resultados, tendo como objetivo desenvolver habilidades humanísticas nos alunos de Medicina, por meio de textos da literatura ficcional que tenham médicos como protagonistas. Seu componente investigativo, com recorte qualitativo e longitudinal, pretende acompanhar a evolução do estudante desde o primeiro até o último ano do curso.
Na primeira fase, ao fim de cada ano, o estudante participante deve refletir e escrever sobre o tipo de médico que quer ser; depois, durante as férias de janeiro, ler o livro que lhe couber dentre os seis oferecidos e escrever um texto sobre o impacto que a história teve sobre ele.
O projeto está em seu quarto ano e conta atualmente com 10 estudantes envolvidos, cuja participação é voluntária. A resistência evidenciada nos primeiros anos tem diminuído. Na primeira avaliação do projeto, em 2015, o único ponto negativo levantado pelos participantes foi a obrigatoriedade da leitura. De outro lado, os estudantes citaram diferentes impactos pessoais positivos, como terem desenvolvido mais segurança sobre a escolha profissional, o despertar da capacidade imaginativa, a elaboração da própria experiência de aprendiz e melhor compreensão do adoecer do paciente. Do ponto de vista pedagógico, citaram a melhoria do vocabulário, da fluência de pensamentos e da capacidade de elaboração do aprendizado, fazendo frequentes paralelos com conteúdos trabalhados em sala de aula, em todos os domínios do curso.
De suas reflexões, depreende-se percepção e aprendizado de aspectos como empatia, perseverança, paciência, princípios éticos da Medicina, humanização da prática profissional do médico, importância do exame clínico e da relação médico-paciente, dentre outros. Tais resultados estão de acordo com aqueles publicados na literatura especializada.
O projeto Literatura na Educação Médica, portanto, insere-se nesse cenário amplo de estratégias para a humanização da Medicina. Além da leitura pontual de livros nas férias e do mapeamento do estado da arte de projetos semelhantes, já em andamento no mundo, pretende-se transformá-lo em disciplina optativa no curso médico, levando a Literatura e a Medicina Baseada em Narrativas para um número maior de interessados, atendendo às sugestões recebidas no último Congresso Brasileiro de Educação Médica. Espera-se, também, expandir o projeto para participação dos demais profissionais de saúde e docentes interessados, bem como conectá-lo a outras iniciativas brasileiras e estrangeiras, ampliando as oportunidades de inserção do futuro médico no extraordinário, desafiador e complementar mundo onde a Medicina e a Literatura se descobrem.
Depoimento escrito pelo aluno Silvio Antonio Gomes dos Santos Filho, na passagem do 1º para o 2º ano de Medicina da Unifran. Atualmente, ele cursa o 5º ano.
Como um livro me fez pensar sobre o que quero ser
Meu livro foi O 11º mandamento, de Abraham Verghese. Não fazia ideia do que se tratava, até pesquisar: “Moisés escreveu dez, não 11 mandamentos”. Fiquei pensando nisso, mas não me esforcei muito.
Devo dizer, adiei o livro o máximo que pude, porque tive de viajar, malhar, dirigir, ler outras coisas, rever amigos, jogar, assistir documentários e filmes. Usei tudo como desculpa mas, na verdade, eu ainda tentava digerir A Torre Negra, que me custou quatro anos para ser terminada (sete livros). O livro ficou lá, na estante, solitário. Então, no final das férias, decidi lê-lo.
Logo no primeiro capítulo, me deparo com um personagem – Marion Stone – que me fez pensar em mim mesmo. Marion é cirurgião, arte que pretendo praticar. O livro tem diversas frases de efeito – aforismos – em relação a cirurgias. De todas, uma vou guardar para sempre, antes, durante e depois de qualquer procedimento cirúrgico: “A operação mais bem sucedida é a que você decide não fazer”. Observe, releia a frase, sinta a profundidade. Dita por um cirurgião, ela não deprecia a arte de manipular instrumentalmente o corpo do paciente, muito pelo contrário, valoriza aquele momento antes da cirurgia em que o médico pensa: “será necessário o procedimento?”.
Quando comecei o livro, não sabia exatamente o motivo de querer ser cirurgião. E me peguei, novamente, lendo uma história sem conseguir parar, sem conseguir me desvencilhar. Enxerguei o que Marion contou, senti sua raiva, sua alegria, sua insegurança, tudo. Percebi que, apesar de não ensinar Medicina, o livro ensina Medicina. Não nas partes em que aborda doenças, intervenções cirúrgicas, sinais e sintomas. Mas sim quando fala da relação médico-paciente.
Mas, dentre todos os personagens, identifiquei-me mais com o pai de Marion, Thomas Stone. Imaginando-o, descobri meus motivos para ser cirurgião. Exatamente o que ele faz, é o que quero fazer. Ler e reler a teoria, pois tenho plena consciência de que nunca saberei tanto quanto é necessário para não errar. Dedicar-me de corpo e alma a alguém indefeso e necessitado, confiante em que farei o que é certo. Manejar com destreza o bisturi, as tesouras, as agulhas, usando cada músculo e nervo de meu corpo para que o trabalho seja perfeito. Quero ser um Thomas Stone, mas sem sofrer tanto quanto ele.
O livro me iluminou, não no sentido de me dar algo para fazer, mas de mostrar o motivo pelo qual fazer. Espero, sinceramente, que o próximo leitor desse livro, dentre os alunos do curso, seja alguém que enxergue tanto quanto enxerguei, ou até mais. Como diria Dom Cobb, personagem de Leonardo Di Caprio no filme A Origem, “o parasita mais perigoso é uma ideia implantada bem fundo na mente. Ela se espalha como um câncer, de modo silencioso e sem aviso, ela toma tudo”. O 11º Mandamento implantou a ideia de ser cirurgião no fundo da minha mente. Essa é a minha reflexão, minha missão.
Livros do projeto Literatura e a Medicina Baseada em Narrativas
- 1. O físico: a epopeia de um médico medieval, de Noah Gordon
- 2. Xamã: a história de um médico no século XIX, de Noah Gordon
- 3. A escolha da dra. Cole: o cotidiano de uma médica do século XX, de Noah Gordon
- 4. A cidadela, de A. J. Cronin
- 5. Contágio, de Robin Cook
- 6. O 11º mandamento, de Abraham Verghese
*Raquel Rangel Cesario é doutora em Promoção de Saúde e docente nos cursos de Medicina da Universidade de Franca (Unifran) e do Centro Universitário Municipal de Franca (Uni-Facef)