CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Bráulio Luna Filho
CONFERÊNCIA (pág. 4)
Fronteiras do Pensamento
CRÔNICA (Pág.10)
Luis Fernando Verissimo*
EM FOCO (Pág.12)
Obesidade
ESPECIAL (Pág. 16)
Comportamento
CARTAS E NOTAS (Pág. 23)
Projeto Ministério Público pela Educação
MÉDICOS NO MUNDO (Pág. 24)
Neurocirurgia
HISTÓRIA DA MEDICINA (Pág. 28)
Ácido acetilsalicílico
GIRAMUNDO (Pág. 32)
Medicina & Ciência
PONTO COM (Pág. 34)
Mundo digital & tecnologia científica
HOBBY (Pág. 36)
Carros antigos
GOURMET (Pág. 40)
Costelinha suína com farofa de couve
CULTURA (Pág. 44)
Adoniran Barbosa
FOTOPOESIA (Pág. 48)
Jorge Fernando dos Santos
GALERIA DE FOTOS
MÉDICOS NO MUNDO (Pág. 24)
Neurocirurgia
Hugues Duffau, o revolucionário da neurocirurgia
Sua técnica de cirurgia para retirar tumores cerebrais com o paciente consciente, durante parte do tempo, já permitiu que ele operasse uma pianista russa que falava cinco idiomas e mantivesse, deliberadamente, os três que ela escolhera previamente. “Impossível conservá-los todos, pois não podíamos multiplicar por cinco a duração da operação para que a fonoterapeuta realizasse os testes com cada idioma. A paciente decidiu, então, que os mais importantes para ela eram o russo, o francês e o inglês. Após a operação, ela continuou poliglota, perdendo, como previsto, apenas o italiano e o espanhol”, assegurou o neurocirurgião francês Hugues Duffau, 50, ao canal de seu país, Europe 1.
Tudo começou quando ele, segundo a revista francesa L´Express, aprendeu a técnica, nos Estados Unidos, seguindo os primeiros passos do médico canadense Wilder Penfield, que já estavam caindo no esquecimento. Penfield, que faleceu em 1976, aproveitava suas cirurgias de epilepsia, com os pacientes acordados, para tentar “mapear” o cérebro. Único a acreditar na técnica, o neurocirurgião francês, ao voltar ao seu país, em 1996, aperfeiçou-a e começou a utilizá-la na retirada de tumores cerebrais, visando evitar sequelas.
No início, ele foi acusado de sensacionalismo, mas cerca de 20 anos depois foi reconhecido no mundo todo por sua técnica. Tímido e avesso a publicidade, Duffau já formou, até agora, equipes de 300 serviços de Neurologia de 45 países no Hospital Gui-de-Chauliac, em Montpellier, na França, onde trabalha. Em 2010, ele ganhou a medalha Herbert Olivecrona, concedida pelo Instituto Karolinska, da Suécia, equivalente ao Prêmio Nobel da Neurocirurgia.
Duffau formou-se em Medicina em 1995 e obteve o doutorado em Neurociência em 2000 na Universidade Paris VI. Em 2006, foi nomeado professor de Neurocirurgia e, no ano seguinte, passou a dirigir o Departamento de Cirurgia do Centro Hospitalar Universitário (CHU), em Montpellier, que reúne diversos hospitais e clínicas, entre os quais o Hospital Gui de Chauliac, onde trabalha. É também professor do Departamento de Plasticidade do Sistema Nervoso Central, de Células-tronco e Tumores do Glioma, no Instituto de Neurociências de Montpellier (Inserm) e faz parte de conselhos editoriais de diversas revistas científicas.
“Cada cérebro é único”
Sua primeira paciente foi uma mulher de 25 anos que está viva até hoje e tornou-se mãe. O tumor estabilizou-se sem se tornar maligno. Antes, ressaltou, os pacientes viviam em média oito anos após o diagnóstico de câncer no cérebro. Eram operados desacordados e se retirava o mínimo do tumor para não atingir zonas essenciais do cérebro. Os médicos temiam que os pacientes acordassem da cirurgia mudos ou paralisados. E, com o tempo, os tumores recidivavam.
O cérebro tem a particularidade de não sentir dor, explicou Duffau à revista francesa Le Point, para, em seguida, detalhar a cirurgia. “Abro o crânio na área onde está o tumor, sob anestesia geral. Em seguida, o anestesista acorda o paciente e, durante duas horas uma fonoterapeuta pede para ele nomear objetos, contar e mexer o braço. Enquanto isso, eu mapeio a superfície do cérebro que está aberta por meio de pequenas descargas de um estimulador elétrico. Se o paciente continua a falar e a movimentar o braço normalmente, sei, então, que posso intervir naquele lugar com um bisturi a ultrassom. Mas, se ele confunde as palavras ou fica mudo, coloco um marcador naquele lugar, para não tocá-lo posteriormente.”
A maioria dos tumores do cérebro podem ser retirados por meio dessa técnica, destacou o médico. “Intervenho, principalmente, nos que nascem a partir do glioma. A cirurgia dá melhores resultados nos casos em que eles são de menor gravidade, de maneira que, quando retiramos as funções ameaçadas – como, por exemplo, a fala ou o movimento – elas já se deslocaram para outra área do cérebro.
Essa é outra revolução de Duffau. Ele pôs por terra a tese – na qual se acreditava havia 150 anos – de que a famosa “área de Broca” seria responsável pela fala. Em artigo publicado na conceituada revista Brain, em 2014, o neurocirurgião afirmou que cada cérebro é único no que diz respeito à localização das capacidades intelectuais e que nenhum dos dois hemisférios tem uma função específica. A linguagem, por exemplo, especificou, não está situada em um lugar preciso do cérebro. “Nós temos todos um cérebro diferente, e a geografia funcional de cada um se modifica também com o passar do tempo (...). Contrariamente ao que nos foi ensinado, tal área do cérebro (a de Broca) não corresponde a tal função: tudo funciona em rede neuronal, graças a fibras de substância branca, chamadas de axônios. Se eles são similares de um indivíduo para outro, suas terminações, em contrapartida, são muito variáveis”, garantiu, com a experiência de mais de 500 cirurgias nas quais mapeou o cérebro com o paciente acordado. Segundo ele, 90% dessas pessoas estão vivas e menos de 0,5% teve sequelas.
“Eu retirei a ‘área de Broca’, por exemplo, em mais de 100 pacientes, sem que eles sofressem sequelas”, ressaltou o médico francês à L´Express. O mesmo acontece, complementou, em relação aos lobos frontais. “Muitos cientistas os consideram como a área da inteligência e afirmam que uma lesão nessa parte limita a capacidade de concentração e de decisão. Ora, eu retirei um dos dois lobos frontais de, aproximadamente, 200 pacientes, sem provocar nenhuma dessas sequelas”, garantiu.
O cérebro se autorrepara, afirmou o neurocirurgião. A dificuldade relaciona-se com o fato de este órgão se organizar de maneira diferente em cada paciente, acrescentou. Apenas uma estrutura não varia de pessoa para pessoa: um conjunto apertado de nervos que se abre em forma de espanador na altura do córtex, disse. “Para não provocar sequelas, devemos, então, encontrar os caminhos por onde circulam as funções essenciais e preservá-las”, disse ele à Le Point, destacando que “a plasticidade do cérebro, ou seja, sua capacidade de reorganizar as conexões entre os neurônios, é ainda mais fantástica do que imaginávamos”.
A médica brasileira Julianne Ferreira foi operada por Duffau e conta como foi
Estava na academia quando comecei a passar mal. Era 15 de abril de 2013, um dia depois do meu aniversário de 30 anos. Até então nunca tinha apresentado nenhum sintoma. Voltei pra casa, vomitei e não conseguia falar.
Pelo celular, avisei um grupo de amigas da faculdade e liguei para meu namorado, Luiz Sorrenti, ortopedista e cirurgião de mão, que estava fazendo plantão no Hospital Samaritano, porém não conseguia me expressar. Namorávamos havia apenas seis meses. Ele percebeu que algo não estava bem e foi para minha casa, onde já se encontrava uma das minhas amigas, dra. Fernanda Guirado. Levaram-me para o Samaritano e fui atendida pela equipe de neurologistas de plantão.
Já no hospital, tive duas convulsões e, quando acordei da segunda delas, estava confusa e não lembrava o nome do meu namorado e das minhas amigas da faculdade. Fiz tomografia, coleta de líquor e ressonância, sendo internada na UTI. Diagnóstico: provável Glioma grau 3. Minha mãe chegou no dia seguinte e meu namorado chamou seu amigo neurocirurgião, dr. Maurício Mandel. Devido à localização do tumor, o Maurício sugeriu fazer a cirurgia com o dr. Hugues Duffau. Depois de três meses, estava lá, em Montpellier, para fazer a cirurgia, no dia 11 de julho de 2013, acompanhada do Luiz, de minha mãe, minha cunhada e meu irmão mais velho. Pessoas conhecidas, ou não, ajudaram a pagar a operação e outras despesas por meio de um site criado por um colega de trabalho do meu irmão, para arrecadar doações.
No início da cirurgia, eu disse: ‘vamos lá, dr. Duffau, a gente consegue!’. Fui anestesiada para que ele iniciasse a cirurgia e, em seguida, fui acordada para poder nomear as imagens de animais e objetos que uma fonoaudióloga mostrava em um laptop. E eu tinha de falar em minha língua materna, o português! Por sorte, havia um fellow brasileiro na equipe, o dr. Guilherme Lucas Lima, que gentilmente serviu como intérprete. Deitada de lado, enquanto falava, tinha de movimentar o braço direito para cima e para baixo. Enquanto isso, o dr. Duffau mapeava até onde poderia retirar o tumor. Quando aparecia uma imagem e minha voz não saía, ou o meu braço não mexia, o dr. Guilherme o avisava. O mapeamento durou cerca de duas horas. Foram retirados 85% do tumor e os 15% restantes terão de ser monitorados pelo resto da minha vida. Ao todo, a cirurgia durou cerca de cinco horas e permaneci no hospital durante seis dias. Fomos para Londres, onde mora meu irmão mais velho, para poder terminar minha recuperação. Voltamos ao Brasil em 28 de julho. Não precisei fazer quimioterapia, pois o diagnóstico final foi de um glioma grau 2. O dr. Duffau acredita que eu tinha o tumor há anos.
Continuei o curso de Medicina do Trabalho, na USP, terminando-o em dezembro daquele mesmo ano, e voltei a trabalhar, nesse mesmo mês, no Club Athletico Paulistano. Porém, antes, três meses após a cirurgia, tive de voltar a Montpellier, para passar em consulta com o dr. Duffau. Desde então, volto lá uma vez por ano, e a cada seis meses envio um exame de ressonância magnética, feito sempre no mesmo aparelho, para que ele possa fazer uma avaliação.
No final de cada consulta, o dr. Duffau grava um resumo da mesma na frente do paciente. Acho que depois alguém transcreve a gravação. Geralmente, algum fellow acompanha a consulta, se o paciente permitir. Estive lá, da última vez, em outubro passado. Ele é fantástico, espetacular e tem muito a oferecer aos pacientes. A técnica dele precisa ser mais divulgada. Tanto o aspecto técnico como a relação dele com o paciente são incríveis. Sempre é ele mesmo quem explica, ninguém fala por ele. O paciente se sente acolhido.
Não fiquei com nenhuma sequela na fala, mas às vezes tenho dificuldade para lembrar ou escolher algumas palavras. Tenho de prestar muita atenção para não errar. No primeiro ano, após a cirurgia, fiz fonoterapia três vezes por semana, em seguida, duas vezes, e hoje faço uma vez por semana, com a fonoaudióloga Vívian Romero. É muito importante.
Atuo como médica do Trabalho, pela manhã, no Hospital São Camilo, na unidade Pompeia; e no Club Athletico Paulistano, à tarde. Sempre fui muito transparente sobre o que me aconteceu.
Não sei se poderei ter filhos, mas não me preocupo com isso agora. Tomo o medicamento Levetiracetam, um anticonvulsivante, que ainda aguarda liberação da Anvisa para ser comercializado no Brasil. Faço o acompanhamento neurológico com o dr. Fernando Freua, e o neurocirúrgico com o dr. Maurício Mandel. Ainda tive duas convulsões depois da cirurgia, e descobri que não posso ter privação do sono ou ficar muito nervosa.
Passei a valorizar muito o hoje, o agora. Não bebo, não faço nada que possa me prejudicar; quero estar com as pessoas. No trabalho, sou um pouquinho chata. Acho a Medicina do Trabalho muito importante e tento contribuir da melhor forma. Quero que as pessoas tenham consciência de sua própria saúde. Ao mesmo tempo, é meu papel, também, mostrar para o empregador que, apesar da necessidade de ser objetiva, a consulta não pode durar apenas 5 minutos.
O contato com o dr. Duffau me incentivou a atender os pacientes como eu gostaria de ser atendida, a explicar bem e dar toda a atenção que cada um merece. Ele me inspira a querer ser uma médica cada vez melhor. Confiança é o que define a relação médico-paciente e, por mais que eu confie nos meus outros médicos, gosto de ouvir dele que estou bem para me sentir em paz.