CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Bráulio Luna Filho - Presidente do Cremesp
ENTREVISTA (pág. 4)
Kátia Maia - diretora da Oxfam Brasil
CRÔNICA (pág. 10)
Lusa Silvestre*
ESPECIAL (pág. 12)
Médico humanista - Aureliano Biancarelli
SINTONIA (pág. 19)
Medicina translacional
EM FOCO (pág. 22)
Complexo Industrial-militar, por Isac Jorge Filho*
CARA NOVA (pág. 25)
Nova Ser Médico
MÉDICOS NO MUNDO (pág. 26)
Ana Letícia Nery
GIRAMUNDO (pág. 30)
Medicina & Ciência
PONTO.COM (pág. 32)
Mundo digital & Tecnologia científica
HISTÓRIA DA MEDICINA (pág.34)
Das Misturas e Poderes das Drogas Simples
LIVRO DE CABECEIRA (pág. 37)
Antonio Pereira Filho*
CULTURA (pág. 38)
Histórias de vidas anônimas
TURISMO (pág. 42)
Turquia/Curdistão
CARTAS & NOTAS (pág. 47)
Espaço dos leitores
FOTOPOESIA (pág. 48)
Mensagem de Ano Novo
GALERIA DE FOTOS
SINTONIA (pág. 19)
Medicina translacional
Do laboratório ao paciente
Centro de Estudos da Unesp dedica-se a pesquisas de venenos e animais peçonhentos que começam nas ciências básicas e vão até a produção de medicamentos
Tudo começou quando, em um plantão no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu, o médico Benedito Barraviera atendeu um paciente que havia sido picado por uma cascavel. Durante a infusão do soro, a vítima evoluiu para choque anafilático com edema de glote e insuficiência respiratória. Para salvá-lo, o médico teve de realizar uma traqueostomia de urgência – feita apenas com um bisturi, sem qualquer anestesia, pois não havia cirurgião disponível no plantão. Salvou-o. Todavia, dias depois, o homem faleceu em decorrência de uma insuficiência renal e hepática.
O caso levou Barraviera a estudar o porquê de certos pacientes evoluírem para lesão no fígado, após picada de cascavel, pesquisa essa que levantou informações essenciais para o desenvolvimento do selante de fibrina, um dos principais projetos do Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Cevap-Unesp), que se destaca por manter pesquisas de cunho translacional no País há mais de 20 anos.
Conectar o que se pensa no laboratório ao que se aplica na prática clínica é a maior característica da chamada medicina translacional, que desenvolve pesquisas realizadas na ciência básica, a fim de produzir tratamentos viáveis. A recente área está cada vez mais em voga, principalmente na produção de novos fármacos. No Brasil, é no Cevap que se realizam algumas dessas pesquisas.
Um de seus fundadores, Barraviera é também professor titular do Departamento de Doenças Tropicais e Diagnóstico por Imagem da Faculdade de Medicina do Campus de Botucatu. Desde o início do projeto – com o embrião do que viria a ser o Cevap, um serpentário, constituído por meio da união de um grupo multidisciplinar com pesquisadores das unidades da Universidade de Botucatu, Rio Claro e Araraquara – já se sabia que esse seria um espaço para ciência translacional. “A gente queria, a partir das toxinas animais, produzir medicamentos. Naquele tempo não usávamos esse termo, mas a maneira como pesquisávamos sempre foi translacional”, diz.
A criação do Centro foi oficializada pelo Conselho Universitário da Unesp em 1993, e o primeiro projeto de ciência translacional realizado foi o do selante heterólogo de fibrina, que poderá ser usado na cicatrização de feridas venosas crônicas e já tem a fase de testes autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
É importante lembrar que pode haver um longo tempo entre uma descoberta no laboratório e o desenvolvimento de um insumo – de 15 a 25 anos, em média –, muito dele gasto com protocolos e testes pré-clínicos, para que o produto possa ser registrado e distribuído.
Benedito Barraviera e o selante de fibrina, um dos principais
projetos da Unesp
Soro antiapílico
Ao longo de 2014, ocorreram 12.660 mil casos e 34 mortes por ataque de abelhas africanizadas no País, segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Esses acidentes aumentam durante o verão, com as altas temperaturas e os temporais, e seus números podem ser ainda maiores, pois não são de notificação obrigatória. É pensando nesse cenário que o Cevap desenvolveu, como um dos principais projetos de pesquisa, o soro antiapílico, antiveneno contra picadas de abelhas africanizadas, produto inédito, que já tem os ensaios clínicos aprovados pela Conep e aguarda autorização da Anvisa para iniciá-los.
As pesquisas do soro partiram do ex-aluno de pós-graduação, Rui Seabra Ferreira Júnior, hoje coordenador do Cevap, e já duram, pelo menos, 15 anos. O desenvolvimento do produto se deu em parceria com o Instituto Vital Brazil, localizado em Niterói, no Rio de Janeiro.
Estudos como os do selante de fibrina e do soro antiapílico receberam apoio do Departamento de Ciência e Tecnologia (Decit) do Ministério da Saúde, que vem incentivando o desenvolvimento e a produção de insumos estratégicos para o Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo Barraviera, é importante que se estimulem a investigação e o desenvolvimento de soluções para as doenças negligenciadas, pelos pesquisadores do próprio País, pois elas não despertam o interesse da indústria farmacêutica.
“Esse tipo de investimento é muito interessante e essencial para a geração de insumos e formação de cientistas para a solução de problemas nacionais. Temos muitas doenças negligenciadas. Não espere que a indústria farmacêutica vá resolver isso, não vai. São os pesquisadores do País que poderão e deverão fazê-lo”, diz Barraviera.
Com a ascensão da ciência translacional, a organização da política de pesquisa em saúde tem sido alterada pelo mundo. No Brasil, em 2004, foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei 10.973, primeira no País a abordar o relacionamento entre as instituições de pesquisa e a indústria, que trata dos incentivos à inovação e à pesquisa cientifica e tecnológica. Ela dispôs que toda instituição de pesquisa, seja pública ou privada, tem que estabelecer um escritório de inovação e transferência de tecnologia. Na prática, eles funcionam como “vitrines” para as descobertas, que podem ser transferidas a empresas para acabamento final e comercialização.
Todavia, o professor lembra que esperar a indústria conduzir todos os detalhes depois de uma descoberta é um erro, assim como acreditar que haverá um desinteresse pela ciência básica se a “molécula candidata” funcionar e passar a ser usada em pacientes, receio de muitos pesquisadores. “Existe a cultura entre os pesquisadores brasileiros de se descobrir algo e, com isso, manter-se em evidência, sustentando o apoio financeiro junto às agências de fomento. Na imensa maioria das vezes, o pesquisador descobre, mas não desenvolve. Deveria haver um grupo de cientistas que fizesse essa translação entre a bancada e o paciente. Muitas vezes, o pesquisador da ciência básica acha que, se ele ceder o produto para o desenvolvimento, vai perdê-lo. Não perde, pois há a lei de patente, que lhe dá segurança. Além disso, durante a translação da molécula candidata muita pesquisa básica será necessária”, afirma Barraviera. “Desenvolver medicamentos no Brasil é altamente desejável e possível, mas haverá necessidade de muita paciência e persistência para se vencer a cultura burocrática, além de investimentos públicos focados em temas estratégicos para o país”, conclui.