CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Bráulio Luna Filho - Presidente do Cremesp
ENTREVISTA (pág. 4)
Kátia Maia - diretora da Oxfam Brasil
CRÔNICA (pág. 10)
Lusa Silvestre*
ESPECIAL (pág. 12)
Médico humanista - Aureliano Biancarelli
SINTONIA (pág. 19)
Medicina translacional
EM FOCO (pág. 22)
Complexo Industrial-militar, por Isac Jorge Filho*
CARA NOVA (pág. 25)
Nova Ser Médico
MÉDICOS NO MUNDO (pág. 26)
Ana Letícia Nery
GIRAMUNDO (pág. 30)
Medicina & Ciência
PONTO.COM (pág. 32)
Mundo digital & Tecnologia científica
HISTÓRIA DA MEDICINA (pág.34)
Das Misturas e Poderes das Drogas Simples
LIVRO DE CABECEIRA (pág. 37)
Antonio Pereira Filho*
CULTURA (pág. 38)
Histórias de vidas anônimas
TURISMO (pág. 42)
Turquia/Curdistão
CARTAS & NOTAS (pág. 47)
Espaço dos leitores
FOTOPOESIA (pág. 48)
Mensagem de Ano Novo
GALERIA DE FOTOS
ENTREVISTA (pág. 4)
Kátia Maia - diretora da Oxfam Brasil
Um mundo tão desigual é viável?
Relatório anual do Credit Suisse revela que a concentração de renda no planeta está aumentando. Para a diretora da Oxfam Brasil, Kátia Maia (foto acima), essa desigualdade prejudica a todos, inclusive aos mais ricos, citando, como exemplo, a violência.
Cerca de 1% da população mundial detém quase 50% da riqueza produzida no planeta. Os outros 99% dividem, em partes também desiguais, os cerca de 50% restantes. A informação não é de uma organização pequena ou que pudesse ser acusada de ter viés ideológico, mas, sim, de uma instituição financeira respeitada mundialmente, o banco Credit Suisse. E, pior, segundo o estudo, a concentração da riqueza está aumentando. A pesquisa levou em conta dados patrimoniais de 4,8 milhões de adultos procedentes de mais de 200 países. Os números são estarrecedores. Uma sociedade tão desigual é viável em longo prazo? O que esses algarismos significam em termos humanos? Por que se chegou a tal ponto? O que fazer para mudar esta realidade?
Para responder essas e outras questões sobre o assunto, a Ser Médico entrevistou a diretora executiva da Oxfam Brasil, a socióloga Kátia Maia.
A sigla vem de Oxford e Famine (Oxford Committee for Famine Reliefe/Comitê de Oxford para o Alívio da Fome). Trata-se de uma confederação internacional de organizações, formada atualmente por 20 afiliadas operando em mais de 90 países, com o objetivo de desenvolver ajuda humanitária e projetos para combater as desigualdades sociais no mundo.
Fátima Barbosa*
Ser Médico – O banco Credit Suisse divulgou, em outubro último, seu relatório anual (Global Wealth Report 2015) sobre a distribuição da riqueza global, apontando que a concentração de renda no mundo e, portanto, as desigualdades sociais, aumentaram ainda mais em relação ao estudo feito pela mesma instituição em 2014. Segundo o documento, quase metade da riqueza do planeta está nas mãos de menos de 1% da população. O que esses números significam em termos humanos?
Kátia Maia – A Oxfam Internacional lançou, em janeiro de 2014, o relatório Working for a few (Trabalhando para poucos), que utilizou dados do relatório do banco Credit Suisse. As análises dos números são chocantes. Como é possível conviver com o fato de que as 85 pessoas mais ricas do mundo são donas do equivalente ao que a metade da população mais pobre do planeta tem? Entre março de 2013 e março de 2014, essas 85 pessoas aumentaram suas riquezas em 668 milhões de dólares diariamente! São números assustadores. Mais que isso, eles expressam uma profunda injustiça sobre a qual o nosso planeta está assentado. É inaceitável! É desumano! Num planeta onde mais de 700 milhões de pessoas ainda passam fome, como é possível continuar com tamanha concentração de riqueza? Essa desigualdade extrema reforça e alimenta outras desigualdades, como as existentes entre homens e mulheres, entre brancos e negros.
SM – O que tem provocado esse aumento da concentração de renda?
Kátia – Em outro relatório lançado pela Oxfam Internacional, em outubro de 2014, chamado Equilibre o Jogo, que trata da desigualdade econômica extrema, nós apontamos algumas causas e, em especial, destacamos dois motores econômicos e políticos da desigualdade, que podem contribuir para explicar os extremos que vemos hoje: o fundamentalismo de mercado e a captura do poder pelas elites econômicas. Como demonstrou o economista francês Thomas Piketty, em O Capital no Século XXI, sem a intervenção do Estado, a economia de mercado tende a concentrar a riqueza nas mãos de uma pequena minoria, fazendo com que a desigualdade aumente. Apesar disso, nos últimos anos, o pensamento econômico tem sido dominado por uma abordagem fundamentalista, que insiste na ideia de que o crescimento econômico só é alcançado reduzindo a intervenção do Estado e deixando que o próprio mercado se organize. Isso prejudica, principalmente, a regulação das atividades econômicas e a tributação, necessárias para enfrentar a desigualdade. A influência e os interesses de elites econômicas e políticas vêm, há muito tempo, reforçando a desigualdade. O dinheiro compra influência política, que os mais ricos e algumas empresas usam para consolidar ainda mais suas vantagens injustas e, em alguns casos, até ilegais. Um exemplo é a incapacidade de muitos países em reformar os seus sistemas fiscais para garantir uma progressividade na arrecadação de impostos, de forma que os mais ricos paguem, proporcionalmente, mais que os mais pobres.
SM – E no Brasil, como a Oxfam vê a questão da concentração de renda?
Kátia – O Brasil apresenta avanços no enfrentamento da concentração de renda, mas ainda insuficiente para que possamos sair do lugar de destaque que ainda ocupamos no ranking da desigualdade mundial. Os programas de distribuição de renda, como o Bolsa-Família, e o aumento do valor real do salário mínimo nos últimos 15 anos foram fatores fundamentais para esse avanço. Porém, ainda estamos longe de solucionar o problema. O País precisa de uma reforma tributária que efetivamente possibilite a redistribuição de recursos daqueles que têm mais para aqueles que mais precisam. Sabemos que quem tem mais renda e patrimônio aqui paga menos imposto. Isso sem contar o tema da evasão e sonegação fiscal. Ou seja, precisamos de justiça fiscal.
SM – A Oxfam tem dados da concentração de renda no Brasil?
Kátia – O Brasil tem grande produção de dados estatísticos que permitem dimensionar a desigualdade de renda. Mas a verdadeira desigualdade se mede sobre a riqueza, e ela inclui patrimônio, não é só renda. Apenas recentemente a Receita Federal começou a disponibilizar as informações sobre patrimônio, provavelmente influenciada pelo trabalho de Piketty. A Oxfam Brasil vai elaborar um relatório sobre desigualdades em nosso país, que deverá ser lançado no próximo ano. Mas já podemos dizer que o Brasil ainda é um país patriarcalista, machista e racista, e essa cultura se reflete nas instituições. Por exemplo, na política fiscal, o nosso sistema tributário atual é extremamente regressivo e recolhe a maioria dos impostos de maneira indireta e sobre o consumo, enquanto a renda e o patrimônio são menos taxados. Proporcionalmente, isso onera mais as famílias pobres, o que, consequentemente, onera mais os negros e as mulheres. Esse modelo institucionaliza e perpetua a desigualdade. A participação política também é extremamente influenciada pela nossa cultura excludente e pelas elites econômicas. No Congresso Nacional, as mulheres e os negros representam menos de 10% dos parlamentares, enquanto são mais de 50% da população.
SM – Como a desigualdade pode impactar o mundo?
Kátia – As desigualdades de gênero, raça e econômica, além de serem eticamente inaceitáveis, afetam as economias do mundo, pois excluem milhões de pessoas que poderiam estar contribuindo para a construção de uma sociedade mais igualitária e não, como ocorre, vivenciando uma situação de desagregação social. Essas desigualdades também prejudicam o crescimento econômico, gerando uma “captura” da riqueza produzida e impedindo a construção de uma sociedade mais justa baseada no bem-estar social. A desigualdade prejudica a todos, inclusive aos mais ricos. Um exemplo disso é a violência. Segundo o escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (Unodc), as taxas de homicídios são quase quatro vezes mais altas em países com desigualdade econômica extrema do que em nações mais igualitárias. Em última instância, a desigualdade econômica extrema pode inclusive trazer ameaças aos regimes democráticos. Com o poder econômico acumulado nas mãos de um pequeno setor da população, a influência deste sobre o Estado passa a causar distorções no sistema político e nas políticas públicas. Com isso, governantes se veem submetidos aos interesses da minoria, e isso pode levar a grande insatisfação social, gerando revoltas e conflitos.
SM – Esse cenário torna mais difícil a missão da Oxfam, no sentido de buscar soluções para o problema da pobreza e da injustiça?
Kátia – Sem dúvida. O aumento da desigualdade faz parte da nossa agenda de trabalho. Em nossa visão, é impossível avançar no combate à pobreza sem lutar contra as diversas desigualdades existentes que contribuem para a perpetuação das injustiças.
SM – A Oxfam vê alguma alternativa para mudar esse quadro?
Kátia – Seguramente existem alternativas. E elas passam pela mobilização dos cidadãos, das organizações dos diferentes setores da sociedade, e devem ser construídas de maneira democrática. A Oxfam defende algumas medidas para contribuir com esse debate, entre as quais: a implementação de uma política fiscal progressiva sobre a riqueza e a renda; o estabelecimento de alternativas aos modelos de concentração de riqueza, renda e terras, oferecendo dados e medindo a desigualdade nas avaliações de impacto das políticas públicas; o fim à captura política e o estabelecimento da priorização dos interesses da maioria sobre os privilégios de poucos; e a garantia da igualdade de direitos e poder entre homens e mulheres, brancos e negros.
SM – Como a Oxfam atua para alcançar esses objetivos?
Kátia – A Oxfam atua em parceria e aliança com outras organizações da sociedade civil, movimentos sociais, governos, empresas e outros setores que buscam enfrentar e encontrar soluções para a pobreza e a desigualdade, no âmbito nacional e/ou global. Nós temos uma abordagem baseada nos direitos humanos e acreditamos que todas as pessoas têm o direito de desenvolver seu potencial, de viver fora da pobreza e em um mundo menos desigual. Nós atuamos em situações de emergência, nas quais é necessária a ajuda humanitária, desenvolvemos programas e projetos de longo prazo e fazemos campanhas para influenciar tomadores de decisão e a sociedade.
SM – Como e quando a Oxfam surgiu?
Kátia – A Oxfam surgiu na Inglaterra, em 1942, no contexto da Segunda Guerra Mundial, para ajudar pessoas que estavam passando fome em países europeus. Um grupo de cidadãos de Oxford resolveu pressionar os aliados para quebrar o bloqueio na Europa e permitir o envio de alimentos para a Grécia e Bélgica com o objetivo de aliviar a fome dos civis daqueles países. Naquela época, o nome da organização significava Oxford Committee for Famine Reliefe (Comitê de Oxford para o Alívio da Fome). Nesses mais de 70 anos, a Oxfam cresceu e ampliou sua área de atuação. Deixou de ser uma organização britânica para se tornar uma confederação internacional, formada atualmente por 20 afiliadas operando em mais de 90 países, com mais de 4 mil trabalhadores e um orçamento anual próximo a 1 bilhão de euros. A Oxfam também ampliou sua forma de trabalho inicial, focada em ajuda humanitária, passando a desenvolver programas e projetos bem como campanhas. No Brasil, o primeiro apoio financeiro a projetos ocorreu em 1958, e o primeiro escritório local foi aberto nos anos 60, em Recife. Até 2014, a atuação no País se dava através das afiliadas de outros países. A partir desse ano, foi criada a Oxfam Brasil, uma afiliada nacional constituída no formato legal brasileiro de associação e estabelecida na cidade de São Paulo. Ainda estamos terminando de compor nossa equipe multidisciplinar, que deverá chegar a 17 funcionários até o final do ano. Iniciamos nossas atividades com o público em 25 de novembro último, data da inauguração do nosso novo escritório, quando colocamos no ar nossa página web (http://www.oxfam.org.br), retomando nossas atividades com mídias sociais. Já temos um Conselho Diretor em fase inicial. Nos primeiros meses de 2016, estaremos com nosso Conselho Fiscal também em funcionamento.
SM – Como é feito o financiamento da organização?
Kátia – O financiamento da Oxfam no mundo vem de diferentes fontes. Em alguns países, os recursos são, na sua maioria, de contribuições individuais mensais; em outros, de agências de cooperação de governos e agências multilaterais, bem como de fundações privadas. Em praticamente todas as 20 afiliadas, qualquer pessoa pode colaborar, seja com recursos financeiros, com trabalho voluntário ou como ativista. Nesse período inicial, os recursos da Oxfam Brasil são oriundos de outras afiliadas da Confederação. Estamos começando as atividades de captação de recursos, prioritariamente por meio de doadores individuais. Já para o próximo ano lançaremos campanhas e consolidaremos nosso trabalho com outras organizações brasileiras que são nossas parceiras. Esperamos ter um grande número de voluntários, apoiadores e ativistas para nossas ações. É importante dizer que, desde 2006, a confederação Oxfam é signatária da “Carta de Prestação de Contas e Responsabilidade de Organizações Não Governamentais Internacionais” (International NGOS Accountability Charter), apresentando relatórios técnicos e financeiros públicos, além de atuar de forma transparente. A Oxfam Brasil operará em conformidade com esses parâmetros, apresentando total transparência de suas atividades, recursos e parcerias.
SM – Há outras frentes, além da pobreza e da injustiça? Quais são e como a Oxfam atua em relação a elas?
Kátia – A pobreza, a desigualdade e a injustiça são nosso guia. Mas essa agenda é imensa, e a Oxfam focaliza suas ações, a cada cinco anos, por meio do seu plano estratégico global. Para o período 2013-19, estão colocadas seis metas de trabalho: 1. O direito das pessoas em demandar uma vida melhor; 2. Justiça de gênero; 3. A importância de salvar vidas ameaçadas por conflitos e desastres ambientais; 4. Um sistema alimentar sustentável; 5. Um compartilhamento justo dos recursos naturais; 6. Um financiamento para o desenvolvimento que assegure o acesso universal a serviços essenciais como saúde e educação. No Brasil, ainda estamos elaborando o plano estratégico para o período 2016-2020, mas alguns temas deverão fazer parte de nossa agenda de trabalho: desigualdades nas cidades – juventude, gênero e raça; justiça fiscal e captura política; o papel do Brasil e sua influência no cenário regional e global; e o sistema alimentar.
SM – Podemos ter esperança em ver um mundo menos desigual?
Kátia – Seguramente que sim. Apesar do aumento da desigualdade e dos imensos desafios sobre os quais falamos até agora, existem avanços a serem considerados, particularmente na conquista de direitos. O importante é entender que um mundo menos desigual depende da mobilização e do trabalho conjunto de organizações da sociedade civil, movimentos sociais e vários outros setores da sociedade. A construção de um mundo mais justo é uma tarefa coletiva, ainda que cada indivíduo possa e deva dar sua contribuição. Pensar e desejar um mundo menos desigual não é somente uma questão de esperança; é uma questão intrínseca ao que somos como seres humanos. Prefiro acreditar que somos uma civilização na qual ainda existe espaço para valores fundamentais como a ética e a solidariedade.
*Editora da Ser Médico
Mais informações
• PDF do relatório original do Credit Suisse, em inglês:
- http://ep00.epimg.net/descargables/2015/10/14/81cef5bbe2878e321682f7adfde25ec6.pdf
• Matérias sobre o relatório na imprensa:
- http://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/13/economia/1444760736_267255.html