CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág.1)
Bráulio Luna Filho
ENTREVISTA (págs. 4 a 9)
Göran Hansson
CRÔNICA (págs. 10 a 11)
Sady Ribeiro*
EM FOCO (págs. 12 a 15)
Oliver Sacks
DEBATE (págs.16 a 21)
Ética e Bioética
SINTONIA (págs. 22 a 24)
Tudo em excesso é veneno!
CARTAS & NOTAS (pág. 25)
Espaço dos leitores
DEPOIMENTO (págs. 26 a 29)
Por dentro de um CAPSad
GIRAMUNDO (págs. 30 a 31)
Curiosidades da Medicina
PONTO.COM (págs. 32 a 33)
Ciência no mundo digital
HISTÓRIA DA MEDICINA (págs. 34 a 37)
Stefan Cunha Ujvari*
CULTURA (págs. 38 a 42)
Coleção de arte
+CULTURA (págs. 42 a 43)
Galeano & Grass
TURISMO (págs. 44 a 47)
Ouro Preto e Diamantina
FOTOPOESIA (pág. 48)
Eduardo Galeano
GALERIA DE FOTOS
HISTÓRIA DA MEDICINA (págs. 34 a 37)
Stefan Cunha Ujvari*
Conquistas e estigmas da medicina no século 20
As grandes descobertas médicas dos últimos cem anos nem sempre foram imaculadas ou sem vítimas
Nos anos 30, Thomas Morgan provou que
os cromossomos são portadores de genes
Em 1901, o Aedes Aegypti foi identificado
como vetor da febre amarela
O século 20 pode ser contado de diversas maneiras, assim como as grandes descobertas médicas desses últimos cem anos. Por trás de cada uma, há uma história, nem sempre imaculada ou sem vítimas. Por volta de 1900, o balanço do século 19 mostrava que nunca a ciência avançara tanto em termos tecnológicos, ficando conhecido como a época “das máquinas”. Porém, alguns setores da medicina estavam aquém desses avanços. O século que se iniciava iria mudar esse cenário.
A primeira grande descoberta – a de que a transmissão da febre amarela é feita por meio de mosquitos – ocorreu já no primeiro ano do século 20. Essa informação foi fundamental para o fim da epidemia urbana. O caminho para isso começou com a invasão de Cuba por tropas dos Estados Unidos, em 1898, dando início a uma guerra entre as duas nações. Como a capital cubana, Havana, vivia uma epidemia de febre amarela – e, pior, exportava-a para as cidades sulistas dos EUA – as autoridades norte-americanas criaram uma comissão científica para descobrir as causas da enfermidade.
Para isso, o médico militar norte-americano Walter Reed liderou experimentos desumanos e proibitivos aos olhos da ciência atual. Ele enclausurou voluntários em dormitórios de madeira construídos para a pesquisa, onde dormiam, todos os dias, em cima de vestuários utilizados por pessoas adoecidas pela febre amarela. Vestiam pijamas ensanguentados ou vomitados pelos doentes e repousavam em lençóis, travesseiros, fronhas e cobertores com líquidos e secreções dos doentes. Concluiu-se que a febre amarela não é transmitida pelo contato. Concomitantemente, os pesquisadores expuseram, de propósito, a pele de outros voluntários aos mosquitos vetores. Foi confirmado que as picadas desses insetos precipitavam a doença.
Testes de novas moléculas, semelhantes à progesterona
que bloqueiam a ovulação, descobertos nos EUA, foram feitos em Porto Rico
A partir da Segunda Guerra Mundial, a penicilina salvou milhões
A descoberta de Reed foi divulgada no III Congresso Médico Pan-Americano, de 1901, realizado em Havana. Seria a primeira de muitas do novo século, baseadas no uso de cobaias humanas. A primeira metade dos anos 1900 foi recheada de experimentos humanos que seriam proibitivos atualmente. Muitos, aceitáveis à época, foram divulgados, enquanto outros eram guardados em segredo pe-
la consciência da imoralidade de seus atos, como foi o caso do estudo realizado na Guatemala, em 1947.
Naquele ano, os Estados Unidos da América queriam utilizar a penicilina para conter ou prevenir o avanço da sífilis e da gonorreia entre os soldados. O medicamento havia sido descoberto em 1928, mas fora guardado nas prateleiras da ciência até a Segunda Guerra Mundial, quando foi redescoberto e produzido em larga escala, de maneira injetável, na Inglaterra. Mas, para utilizá-lo nos soldados, era necessário fazer experiências em humanos para definir as doses profiláticas e terapêuticas, bem como esclarecer as formas de contágio das DST. As cobaias escolhidas? Presos e mulheres internadas em um hospital psiquiátrico da Guatemala.
Enquanto o julgamento de Nuremberg expunha as atrocidades nazistas com experimentos humanos, médicos guatemaltecos e norte-americanos conduziam as pesquisas. Presos guatemaltecos recebiam visitas íntimas de prostitutas infectadas para avaliar se doses profiláticas do medicamento evitavam a sífilis e a gonorreia. Algodões embebidos em líquido contaminado pelas bactérias eram postos em contato com mucosas de doentes mentais do hospital. As mucosas genitais eram escarificadas com lâminas contaminadas para avaliar os riscos de transmissão, bem como cortes nos braços demonstravam se as bactérias invadiriam a pele lesada. Líquidos contaminados com bactérias da sífilis também eram ofertados aos doentes para verificar se ocorria transmissão oral. Com a crescente opinião pública enojada pelos relatos que chegavam de Nuremberg, os supervisores do estudo encerraram abruptamente o experimento na Guatemala. O segredo só veio a público na última década.
Mentes criativas
Em contrapartida, muitas descobertas dependeram de mentes criativas e perspicazes em épocas carentes do atual avanço tecnológico. Foi dessa forma que Thomas Morgan cruzou milhares de moscas de frutas para estudar suas mutações na tentativa de elucidar o que comandava as características físicas. Seu laboratório acomodava recipientes com moscas de olhos brancos, sem olhos, com um único olho, sem asas, com uma única asa, sem antenas, e assim por diante. Morgan catalogou as mutações e as classificou em grupos. Algumas mutações ocorriam de maneira concomitante a outras, da mesma forma que algumas jamais ocorriam ao mesmo tempo em uma mosca. Assim, sua classificação originou quatro grandes grupos, com o mesmo número de cromossomos das moscas. E mais, a quantidade de mutações variava em cada grupo da mesma maneira que o tamanho dos cromossomos se modificava. Dessa forma Morgan descobriu que os cromossomos determinavam as características físicas.
A descoberta de Morgan reverberou entre os cientistas da eugenia americana. O século 20 nascera também com a nova ciência da moda: “existiam raças humanas superiores e inferiores”. As nações deveriam lutar para que a população superior preponderasse sobre os inferiores, fadados à preguiça, doenças, vagabundagem, criminalidade, alcoolismo etc. O movimento da eugenia proibia o casamento entre raças diferentes que pudessem contaminar os superiores e condenar a nação à ruína. Revistas e congressos divulgavam os últimos resultados dessa pseudociência. De repente, acontece a descoberta de Morgan e fica provado que os cromossomos ditam a característica das pessoas e podem realmente determinar genes “bons e ruins”. As histórias do século 20 e a das descobertas médicas se misturavam.
Enquanto eugenistas incentivavam a natalidade por meio de cruzamentos de “genes bons”, a enfermeira Margaret Sanger enfrentava a lei norte-americana ao criar uma clínica de orientação sobre como evitar a natalidade. A jovem defendia o direito de as mulheres escolherem se queriam ou não engravidar, e, se sim, quantos filhos gostariam de ter. Margaret enfrentou a lei americana que proibia medidas contraceptivas. Foi presa logo após a abertura de sua clínica de orientação sexual na década de 1910, mas não se intimidou e lançou panfletos e revistas sobre o controle da natalidade. A primeira semente em defesa da autonomia feminina era lançada.
Já na Alemanha nazista ocorreu o contrário. Clínicas de reprodução feminina se espalharam pelo interior alemão desde a chegada de Hitler ao poder. O projeto secreto recrutava moças adolescentes com características arianas para, voluntariamente, relacionarem-se com oficiais da SS (Schutzstaffel, organização paramilitar ligada ao partido nazista). As jovens eram cativadas pelas promessas de que contribuíam para a consolidação do império alemão. Recebiam certificados de pureza da raça que as habilitaria ao casamento com oficiais arianos. A gestação era acompanhada nas clínicas e, após o parto, as crianças eram ofertadas para serem criadas por famílias alemãs. As jovens não teriam responsabilidades após essa enorme contribuição ao Reich.
Enquanto isso, as pesquisas para o desenvolvimento de uma pílula anticoncepcional se avolumavam. Descobertas acidentais traziam novas moléculas semelhantes à progesterona, que podiam ser ingeridas com boa absorção e bloqueariam a ovulação. Mas onde realizar os testes, uma vez que a lei norte-americana era rígida em proibir métodos contraceptivos? No quintal norte-americano. Na década de 50, pesquisadores dos EUA realizaram o experimento em Porto Rico, cujo governo consentiu devido ao enorme crescimento populacional na ilha, com desemprego e pobreza. Desse estudo surgiu a aprovação inicial da primeira pílula para regularização do ciclo menstrual, mas empregada largamente como anticoncepcional. Uma maneira de burlar a lei americana.
Esses são apenas alguns dos exemplos dos avanços da medicina no século 20. Muitos outros emergiram: tratamento do câncer, fertilização in vitro, vacinas, transplantes, descoberta da insulina, tratamento do raquitismo e diversos outros avanços para prevenção e tratamento. As grandes conquistas médicas emergiram em contextos históricos diferentes e cada qual em sua época. Essa contextualização traz um imenso prazer de conhecimento e entendimento da medicina atual.
*Médico infectologista e escritor; co-autor, juntamente com Tarso Adoni, do livro A história do século XX pelas descobertas da medicina, Editora Contexto, 2014