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Edição 70 - Janeiro/Fevereiro/Março de 2015

ENTREVISTA (pág.4 a 9)

Roberto Cardoso

“Meditação pode ser um recurso terapêutico”

Prática milenar nos países orientais e ainda hoje associada à religiosidade, a meditação tem sido, cada vez mais, objeto de pesquisas científicas que comprovam os benefícios à saúde física e mental de seus adeptos. Mas o médico obstetra e praticante há mais de 30 anos, Roberto Cardoso, vai além. Ele defende que a meditação pode ser um recurso terapêutico a ser utilizado na prática médica, desvinculado de qualquer caráter religioso. Profundo estudioso do assunto, inclusive com doutorado em Ciências na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) sobre meditação em gestantes, ele é autor do livro Medicina e meditação – um médico ensina a meditar, em sua quarta edição.

Formado pela Universidade de Brasília, com mestrado em Obstetrícia, também pela Unifesp, Cardoso desenvolve, nessa instituição, pesquisas sobre medicina comportamental e qualidade de vida. É membro fundador do Numepi-Unifesp (Núcleo de Medicina e Práticas Contemplativas), autor de artigos tanto científicos como destinados ao público em geral – esses últimos no site http://www.redepsi.com.br/category/colunistas – e palestrante sobre qualidade de vida e gerenciamento do estresse.

Nesta entrevista à Ser Médico, ele compartilha seus conhecimentos sobre o tema e recomenda a meditação também a seus colegas médicos. “Estamos entre os profissionais com os mais altos níveis de estresse e isso faz com que não sejamos modelos de saúde. A meditação pode reduzir nossos níveis de ansiedade, melhorar nossa imunidade, ajustar nosso sono, aumentar a saciedade em relação à vida e, ainda, nos tornar mais presentes, intensos e plenos no próprio exercício da profissão”, assegura.

 

Ser MédicoO que é a meditação e por que o senhor diz que é possível desvinculá-la de aspectos religiosos ou místicos?

Roberto Cardoso – Podemos ver a meditação como um estado ou uma técnica. Se a virmos como um estado, estaremos falando de algo “além da lógica”; assim, não há nada a se falar sobre ele, apenas vivê-lo, pois toda palavra utilizará a lógica e, portanto, será incompleta. Se a virmos como uma técnica, aí sim, podemos descrevê-la, explicá-la, orientá-la, corrigir falhas, tirar dúvidas, ajudar nas dificuldades etc. Sob o ponto de vista operacional, a meditação é um procedimento autoinduzido (você faz com você mesmo) e com técnica específica (existe uma espécie de “receita de bolo” para cada técnica). Mas os dois itens operacionais mais importantes são aqueles que chamamos de “âncora” e de “relaxamento da lógica”. Âncora é um artifício de autofocalização. É para onde a atenção do meditador se volta. Existem âncoras mais objetivas (a respiração, um som etc) ou mais subjetivas (o “nada”, o agora etc). O relaxamento da lógica consiste em não se envolver nas próprias sequências de pensamento. Como isso é possível? Ora, mantendo a atenção na âncora, guardando apenas um pouquinho de energia para uma sutil atenção ao eventual envolvimento em sequências de pensamento. Sempre que o meditador se perceber envolvido nelas, ele deve “abandoná-las” e voltar sua atenção apenas para a âncora.  E assim por diante, vez após vez que acontecer a mesma coisa. No início, esse exercício, repetido, ativa ainda mais o lobo pré-frontal do cérebro, envolvido com atividades lógicas, mas acaba por determinar outros efeitos que “tiram” o meditador do terreno lógico por algum tempo. Isso acontece cada vez mais, à medida que o treinamento se intensifica. Meditação não é algo religioso. Imagine um grupo de monges que tenha o hábito de caminhar em torno do mosteiro, em meio à natureza, e considere isso uma atividade religiosa. Depois, imagine que alguns estudos descubram que esse caminhar em meio à natureza traga diversos benefícios, independentemente de religião. Por que não adotar esse hábito? Só porque algumas pessoas vão confundi-lo com religião? Pois é, o mesmo acontece com a meditação. É possível meditar fora do contexto religioso, e obter os diversos benefícios dessa prática.


SM – Como e por que começou a meditar? Já estava fazendo Medicina?

RC – Comecei a meditar aos 17 anos, e entrei no curso de Medicina uma semana antes de completar 18. Passei a meditar, diariamente, a partir dos 27 anos. Fazia artes marciais e, em uma academia, encontrei um instrutor indiano que se ofereceu para me ensinar meditação. Aceitei e gostei. Depois disso, virou uma espécie de hobby, por meio do qual conheci várias pessoas e técnicas, de diferentes grupos e tradições. Em janeiro de 1999, ao chegar à Unifesp, o professor José Roberto Leite, da Psicobiologia, sugeriu que eu usasse essa experiência como suporte para uma nova atividade acadêmica. E, assim, o hobby virou área de interesse, de estudo e de pesquisa. Na Obstetrícia, recebi ajuda e estímulo de vários colegas, e tive as portas abertas pelos professores Luiz Camano e Eduardo de Souza.

SM – Além de seu trabalho como obstetra, quais trabalhos e atividades o senhor desenvolveu ou desenvolve na EPM/Unifesp relativos à meditação? O senhor enfrentou preconceitos de colegas por se envolver com uma prática tida como “alternativa”?

RC – Fiz meu doutorado sobre meditação em gestantes. Depois, ampliei minhas atividades para outras áreas, e comecei a formar instrutores de meditação entre os profissionais de saúde, além de promover atividades em eventos médicos e corporativos. Hoje também atuo com esse tema no Numepi-Unifesp (Núcleo de Medicina e Práticas Integrativas). O preconceito, tão comum no início, é hoje para mim algo quase esquecido. A maior parte dos colegas respeita e estimula o nosso trabalho. Depois do reconhecimento (e utilização) da nossa definição operacional por organismos internacionais, muito da resistência se quebrou. Tudo está bem. Tudo está como deve estar.

SM – O que é preciso para o iniciante começar a meditar? Quanto tempo e quantas vezes é o ideal?

RC – Basta apenas entender a técnica. Se for possível, com um instrutor confiável. Existe também a possibilidade de aprender por livro, e foi para isso que escrevi Medicina e Meditação, mas o aprendizado presencial ainda é melhor. Ao iniciante, recomendo meditar uma a duas vezes por dia, entre 15 e 20 minutos.

SM – No seu livro, o senhor ensina várias técnicas. Poderia fazer um breve resumo das que são consideradas mais eficazes?

RC – Todas as técnicas são eficazes, desde que o praticante siga os preceitos operacionais adequadamente. Existem técnicas mais conhecidas, por terem sido mais estudadas, como a Meditação Transcendental, a Zazen, a Vipassana e a Atenção Plena. Pessoalmente, considero que o aprendiz é mais beneficiado começando com técnicas de âncoras mais objetivas, até que esteja com bastante exercício meditativo. A partir daí, âncoras mais subjetivas são bem-vindas e podem ser até melhores.

SM – Qual âncora o senhor acha que é mais objetiva para iniciantes? Como praticá-la?

RC – A atenção à própria respiração. Deve-se manter a atenção na âncora, ao mesmo tempo mantendo uma sutil atenção ao eventual envolvimento em sequências de pensamento. Sempre que o meditador se perceber envolvido em correntes de pensamentos, ele deve “abandoná-las” e voltar sua atenção apenas para a âncora.  E assim repetidamente, vez após vez que acontecer a mesma coisa.

SM – É possível ter um objetivo na meditação?

RC – Do ponto de vista operacional, a meta é o relaxamento da lógica, levando àquilo que chamaríamos de “atenção relaxada”. Durante a técnica, o objetivo melhor descrito seria a “autopercepção não sensorial sem a participação da lógica”. Chegar a perceber-se, sem ser através dos sentidos, e sem julgamento. Todos os efeitos vêm a partir dessa atenção relaxada continua­mente exercitada.

SM – O senhor cita vários efeitos psicofísicos. Poderia descrever os principais?

RC – Há diferentes etapas na meditação. Em um primeiro instante, é um relaxamento, tal como uma massagem ou um ofurô. Em seguida, é um regulador de atenção, aumentando o foco e a presença. Depois, é um indutor da auto-observação, que permite mudanças tanto pela própria observação como por movimento de conteúdos inconscientes.

SM – Qual a relação da meditação com a Medicina?

RC – Há inúmeros trabalhos que envolvem o uso da meditação em saúde. Como não é obrigatoriamente feita em cenário religioso, pode ser utilizada livremente como recurso terapêutico. As situações mais estudadas são ansiedade generalizada (TAG), dor crônica, hipertensão arterial, distúrbios do sono, depressão leve a moderada, melhora da imunidade, dentre outros. Na “depressão de origem ansiosa”, os resultados também costumam ser bons, a não ser quando já se atingiu um grau de depressão muito avançado. Nesse caso, há relatos – embora pouco comuns – de piora logo no inicio da prática. Temos receio, no tratamento da depressão grave, especialmente quando já há tendências suicidas.

SM – O que a ciência diz a esse respeito? Há pesquisas científicas que comprovem seus benefícios?

RC – Sim, especialmente nessas situações que acabo de citar. Hoje, vários centros de pesquisa pelo mundo estudam a meditação, e até mesmo o NIH (Instituto Nacional de Saúde, dos EUA) já apresenta a meditação como recurso de saúde, através do seu National Center for Complementary and Alternative Medicine (Nccam).

SM – Em um artigo, o senhor aborda a questão do efeito placebo. O que ele tem a ver com meditação?

RC – O efeito placebo precisa ser “revisitado” pela classe médica. Ele não é mais uma autoenganação à qual o próprio paciente se submete. Ele é – isso sim – um poderoso instrumento de cura, de homeostase, com o qual podemos contar como parte do processo de saúde. Nossas atitudes mentais viciosas não apenas esquecem esse poder de autocura, mas, até, o atrapalham. A meditação pode nos reaproximar do estado homeostático da mente, e assim nos reconduzir ao estado homeostático do corpo. Nada disso dispensa os espetaculares avanços médicos, capazes de salvar tantas vidas quando em situação de perigo, apenas traz mais um poderoso aliado: um estado salutogênico, no qual manter a saúde é tão ou mais importante do que apenas curar a doença.


SM – Além da depressão grave, existem outras contraindicações ou efeitos colaterais? Por que ela não deve ser feita antes de dormir?

RC – Quase não existem contraindicações ou efeitos colaterais. Apenas recomendamos um especial cuidado com iniciantes com diagnóstico de psicose, especialmente esquizofrenia, se não tiverem a medicação estabilizada, e, ainda, com clínica franca (quadro esquizofrênico em curso). À medida que praticamos a meditação, a chamada “atenção relaxada” tende a se estender para fora do período meditativo, e esse é um de seus principais efeitos. Em nossa experiência clínica, esse progressivo – e muito benéfico – efeito não é tão bem percebido quando se medita e se dorme logo em seguida.

SM – Aparentemente há, cada vez mais, no mundo ocidental, abertura à atividade meditativa, embora ela ainda esteja restrita a determinados círculos sociais. Por que uma prática milenar que traz tantos benefícios tem demorado para se tornar popular no Ocidente?

RC – Creio que algumas razões poderiam explicar isso. Vou citar apenas duas delas: existe preconceito, especialmente quando se relaciona a meditação à obrigatoriedade de um contexto religioso. Apesar de constar de pesquisas clínicas desde 1971, faltavam estudos sobre meditação com uma definição operacional bem definida. Apenas nos últimos 10 ou 12 anos é que se têm publicado artigos que operacionalizam adequadamente a técnica. Antes disso, não havia a preocupação de citar a operacionalização do método, mas apenas seus efeitos e, às vezes, publicavam-se artigos que utilizavam outras técnicas (como visualização, por exemplo) como se fossem técnicas meditativas. Para se visualizar é preciso utilizar a lógica, e não relaxá-la. É um método útil e bem indicado em vários casos, mas não se enquadra no que reconhecemos como meditação. Isso atrasou muito a compreensão e a aceitação do método na comunidade acadêmica.

SM – Os médicos vivenciam, diariamente, uma rotina massacrante, com vários empregos, consultório etc. A meditação pode ajudá-los?

RC – Estamos entre os profissionais com os mais altos níveis de estresse, e isso faz com que não sejamos modelos de saúde. A meditação pode reduzir nossos níveis de ansiedade, melhorar nossa imunidade, ajustar nosso sono, aumentar a saciedade em relação à vida e – ainda – nos tornar mais presentes, intensos e plenos no próprio exercício da profissão. Em minha opinião, quando se fala em humanização da Medicina, não adiantam palestras e nem folhetos. Só se humaniza o cuidado quando se humaniza o cuidador.

SM – Quais as suas expectativas em relação à prática? 

RC – Espero um dia ver a meditação amplamente utilizada como um instrumento de saúde pública de baixo custo e com inúmeros efeitos positivos.

 


Técnicas de meditação mais conhecidas

Meditação transcendental – utiliza como âncora a pronúncia de um som, chamado de “mantra”;
Zazen  – usa um conjunto de âncoras, como a posição do corpo, posição das mãos e a atenção ao momento;
Vipassana –  a  clássica mantinha o foco da própria respiração, mas algumas variações contemporâneas ampliaram esse foco para aspectos corporais e/ou emocionais;
Atenção plena (ou mindfulness) – consiste em estar atento ao próprio momento presente, e a tudo que acontece fora e dentro de você.



Confira alguns artigos científicos a respeito da meditação:
 

ANDERSON, J. W.; LIU, C.; KRYSCIO, R. J. Blood Pressure Response to Transcendental Meditation: A Meta-analysis. American Journal of Hypertension, v. 21, p. 310, 2008.
BENSON, H. Relaxation response: history, physiological basis and clinical usefulness. Acta Medica Scandinava (suppl.), v. 660, p. 231, 1982.
CARDOSO, R. et al. Meditation in health: an operational definition. Brain Research Protocols, v. 14, p. 58, 2004.
INFANTE, J. R. et al. Catecholamine levels in practitioners of the transcendental meditation technique.Physiology and Behaviour, v. 72, p. 141, 2001.
LAZAR, S. W. et al. Functional brain mapping of the relaxation response and meditation. NeuroReport, v. 11, p. 1581, 2000.
LAZAR, S. W. et al. Meditation experience is associated with increased cortical thickness. NeuroReport, v. 16, p. 1893, 2005.
NATIONAL CENTER FOR COMPLEMENTARY AND ALTERNATIVE MEDICINE (on line). National Institutes of Health. NIH-Backgrounder. Meditation for Health Purposes, Bethesda, EUA (citado 2005). Disponível em: URL: http://nccam.nih.gov/health/meditation/meditation.pdf. Acesso em: 03 fev. 2008.
OSPINA, M. B. et al. Meditation Practices for Health: State of the Research. Evidence Report/Technology Assessment No. 155. (Prepared by the University of Alberta Evidence-based Practice Center under Contract No. 290-02-0023.) AHRQ Publication n. 07-E010. Rockville, MD: Agency for Healthcare Research and Quality. Junho 2007. Disponível em: URL: http://www.ahrq.gov/downloads/pub/evidence/pdf/meditation/medit.pdf.
SCHNEIDER, R. H. et al. Long-Term Effects of Stress Reduction on Mortality in Persons ≥55
Years of Age With Systemic Hypertension. American Journal of Cardiology, v. 95, p. 1060, 2005.
WALTON, K. G. et al. Review of controlled research on the transcendental meditation program and cardiovascular disease: risk factors, morbidity, and mortality. Cardiology in Review, v. 12, p. 262, 2004.

 


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