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João Ladislau Rosa - Presidente do Cremesp


ENTREVISTA (págs. 4 a 9)
Robert Gallo


CRÔNICA (págs. 10 e 11)
Fabrício Carpinejar*


ESPECIAL (págs. 12 a 17)
Violência e saúde pública


SINTONIA (págs. 18 a 21)
A saúde do adolescente preocupa OMS


EM FOCO (págs. 21 a 23)
Tchekhov


SOLIDARIEDADE (págs. 24 a 28)
Médicos na Amazônia


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Dica de Alfredo de Freitas Filho*


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Curiosidades & Novidades


PONTO COM (págs. 32 a 33)
Informações do mundo digital


HISTÓRIA DA MEDICINA (págs. 34 a 36)
Cardano, o visionário do Renascentismo


HOBBY (págs. 37 a 39)
Correr (fora do dia a dia...) também é esporte de médico!


TURISMO (págs. 40 a 43)
Descobrindo terras e sabores peruanos


CULTURA (págs. 44 a 47)
Salvador Dalí em Sampa


FOTOPOESIA (pág. 48)
Paulo Bomfim


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Edição 68 - Julho/Agosto/Setembro de 2014

ESPECIAL (págs. 12 a 17)

Violência e saúde pública

Quanto custa a guerra urbana?

Mortes, lesões físicas, sequelas psicológicas, doenças crônicas, alteração cognitiva em crianças de bairros violentos, serviços de urgência e emergência sobrecarregados, e ausência de médicos em unidades médicas da periferia são algumas das consequências da escalada da violência no País


A taxa de assassinatos no Brasil é três vezes maior que aquela considerada epidêmica pela Organização Mundial de Saúde (OMS) – foram 47,1 mil mortes em 2012. A cada homicídio registrado, 22 pessoas sofreram lesões corporais dolosas. Outras 990 mil foram vítimas de roubo. Grande parte dessas vítimas diretas – somadas a milhares de outras indiretas – precisou ou precisa de ajuda médica. Por trás desse conflito crônico está a desestruturação da segurança pública, a exclusão social e a falta de investimentos na prevenção, além da banalização da violência na mídia. As pessoas perderam a capacidade de resolver seus conflitos de forma pacífica, dizem especialistas. Duplamente vítimas dessa violência, médicos e profissionais de saúde vivem na linha de frente de uma guerra urbana, com serviços sobrecarregados e pacientes e familiares em desespero.

Aureliano Biancarelli*

 

A auxiliar de limpeza Claudia da Silva Ferreira, 38 anos, morreu numa manhã de domingo quando descia o morro para comprar pão. Cuidava de quatro filhos e de quatro sobrinhos e tinha medo que a polícia os confundisse com traficantes. Morreu arrastada pela própria viatura que a socorria depois de atingida na cabeça numa troca de tiros entre policiais e traficantes. O fato ocorreu em março passado no morro da Congonha, no Rio. No Guarujá, em maio último, uma mãe de duas filhas foi linchada por moradores depois de ser confundida com uma suposta sequestradora de crianças. Era um sábado e Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, estava a caminho da igreja onde tinha esquecido uma bíblia. A fúria e o medo da população foram instigados por páginas no Facebook e registrados em vídeos de celulares. Os episódios ilustram a violência que cresce e se banaliza nos centros urbanos e no cotidiano das pessoas. Ela envolve marginais, policiais e “gente de bem” numa rede que mistura crueldade, desinformação e tecnologias de comunicação.

Truculência e desarticulação das polícias, presença de grupos armados e organizados, exclusão social, imprudência no trânsito e impunidade formam um coquetel que rouba vidas, fere e adoece pessoas e sobrecarrega os serviços de saúde. Já na década de 90, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhecia a violência como um problema global de saúde pública. Para a instituição, 10 assassinatos por 100 mil habitantes/ano configura uma epidemia de violência. A média mundial é de 6,3 – no Brasil, ela chega a 25 mortes por grupo de 100 mil.

Como se faz na saúde, também na violência se procuram as causas e as soluções. Pesquisadores de centros de estudos especializados estudam episódios violentos para saber quem é o agressor, quem é o agredido e o que está por trás da agressão. Na maioria das vezes, são homens, jovens, pardos e negros, que moram em regiões com alto grau de exclusão social, envolveram-se em disputas interpessoais ou drogas, e tiveram acesso a arma de fogo.

Esse é o perfil visível. Por trás de cada vítima fatal, no entanto, há um número desconhecido de pessoas que sofrem com a vitimização indireta. “O homicídio é apenas a ponta do iceberg. As situações não letais são em muito maior número, e sobre essa morbidade há poucos estudos”, diz Maria Fernanda Tourinho Peres, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP) e professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.

Muito além dos homicídios
Mesmo sem estudos aprofundados, os números disponíveis atestam a extensão dos danos de uma violência que vai muito além dos homicídios contabilizados. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2013, ocorreram no país 47.094 assassinatos ao longo de 2012, taxa de 24,3 homicídios por 100 mil habitantes. Nesse mesmo período, foi registrado um número quase igual de tentativas de homicídios (43,9 mil), e um total espantoso de 750.482 lesões corporais dolosas. Os números referem-se às ocorrências policiais registradas, mas não ao total de vítimas envolvidas, que geralmente é maior. Apenas os ferimentos intencionais, oficialmente registrados em 2012, passam de 1,1 milhão. Significa que para cada homicídio registrado, são cerca de 22 lesões corporais intencionais. Em princípio, todo esse contingente de vítimas foi socorrido em algum serviço de saúde.

As vítimas de roubos chegaram a 985 mil. Embora seja um crime contra o patrimônio e não contra a vida, o roubo provoca uma sensação de insegurança e medo que transforma as pessoas em “vítimas indiretas”, com sintomas muitas vezes desconsiderados nas estatísticas. Com serviços despreparados para identificar situações de violência, não se sabe ao certo o quanto elas estão contribuindo para o adoecimento físico e mental das pessoas. “A violência provoca lesões físicas e transtornos mentais decorrentes, como depressão, ansiedade e estresse pós-traumático, além de doenças e dores crônicas, somáticas, cardiovasculares ou reumáticas”, afirma a pesquisadora do NEV.


"Perdemos a capacidade de resolver os conflitos de forma pacífica"
 

Uma série de estudos já identificou associações entre ser exposto à violência – ou morar em área com alto nível de violência – e os padrões de adoecimento no campo das doenças crônicas. “Pesquisas mostram que crianças em bairros violentos têm desenvolvimento cognitivo diferente daquelas que moram em bairros não violentos”, diz Maria Fernanda. Trata-se do que os especialistas chamam de “vitimização indireta”.

São Paulo é o Estado que apresentou maior redução nas taxas de homicídio. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a taxa paulista foi de 11,5 mortes por 100 mil habitantes, em 2012, saindo da segunda maior, em 2000, para a segunda menor entre as unidades da Federação. Naquele mesmo ano, o Brasil teve razão de 24,3, sendo que os índices chegaram a 64,5 em Alagoas; 48,5 na Paraíba; 40,6 no Ceará; e 38,5 na Bahia.

Nos locais onde houve redução de homicídios – incluindo Pernambuco, no Nordeste – as mudanças são atribuídas à adoção de uma estratégia de segurança integrada. “Políticas públicas de inclusão, presença do Estado nas áreas mais vulneráveis, melhoria e integração das polícias, investimentos em planos de meta de redução de violência, além da diminuição das armas de fogo em circulação, são fatores que estão contribuindo para essa queda”, assegura Carolina Ricardo, analista sênior do Instituto Sou da Paz. Integrar esses fatores depende de planejamento, que por sua vez depende de diagnóstico, que só se faz com investigação e análise dos crimes.

A falta de investigação é o grande gargalo no País, deixando os autores impunes e alimentando um ciclo que se repete. “Sem o esclarecimento, não se consegue desenvolver medidas de prevenção”, alerta Carolina. Segundo dados do Ministério da Justiça, apenas 8% dos homicídios e 2% dos roubos no País são esclarecidos. Em Alagoas, campeão de mortes dolosas, a taxa de esclarecimento não chega a 2%. Pesquisas nacionais indicam que 65% das vítimas de roubo não fazem queixas às autoridades.

Descrença na Justiça
Ausência de direitos, descrença na Justiça e uma presença permanente da violência nas diferentes mídias contrapõem-se à pacificação. “Estudos em escolas têm mostrado que não há instância de resolução de conflito, de negociação, a não ser na ‘porrada’”, diz a analista do Sou da Paz. “Perdemos a capacidade de resolver os conflitos de forma pacífica, as pessoas não usam mais o diálogo para contornar suas desavenças e as relações estão mais violentas”, completa.


O desenvolvimento cognitivo de crianças de bairros violentos é diferente


Outra decorrência que levou a OMS a classificar a violência como problema de saúde pública global é seu impacto sobre os serviços de saúde. “O crescimento da violência a partir dos anos 80 sobrecarregou os atendimentos de urgência e emergência, por conta especialmente de agressões físicas e acidentes de trânsito”, afirma Edinilsa Ramos de Souza, pesquisadora do Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violência e Saúde (Claves), da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.

Os politraumatismos provocados pela violência e a gravidade dos ferimentos passaram a exigir especialização dos trabalhadores da saúde. “Eles são treinados para atuar em áreas conflagradas de guerra”, diz Edinilsa. É comum o uso por facções criminosas de armas exclusivas das Forças Armadas, com grande poder destrutivo.

“Os prontos-socorros ficaram obsoletos e sobrecarregados diante do crescimento da violência”, observa o cirurgião geral Renato Françoso Filho, coordenador da Câmara Técnica de Urgência e Emergência do Cremesp. Entre 20% e 30% dos serviços de emergência estão ocupados com vítimas de acidentes de trânsito e da violência social. A solução, para ele, está em investimento maciço na educação e prevenção, associado a leis e punição mais rigorosas. “Do contrário, vamos continuar enxugando gelo”, assegura.

 


“O médico trabalha com medo”


Ele é cirurgião de um grande hospital público do Alto Tietê, tem 40 anos e dois filhos. Mais que isso, ele prefere não dizer. Como outros entrevistados nessa matéria, o médico teme ser identificado. “Alguém pode ligar meu relato ao hospital no qual trabalho e encontrar meu endereço”, afirma. O cirurgião em questão não está fugindo da polícia, nem cometeu alguma irregularidade. Ele está se protegendo das ameaças de pacientes.

A última delas aconteceu com um jovem de 27 anos que precisava ser operado de um tumor na cabeça. Por duas vezes, o médico teve de adiar a cirurgia; na primeira porque não havia leito de UTI e, na segunda, porque faltava equipamento no centro cirúrgico. No segundo adiamento, o paciente e seus familiares passaram a fazer ameaças ao médico, tomando nota do crachá e perguntando onde morava. “Eles deixavam claro que, se não houvesse a cirurgia, alguma coisa aconteceria comigo, e que eles contavam com pessoas da comunidade próxima”, relata o cirurgião. A área do hospital é cercada por bairros pobres, com alto índice de violência e presença de tráfico de drogas.

No dia em que o médico concedeu essa entrevista, havia algumas horas que tinha terminado de operar o paciente, na terceira tentativa. “Foi uma cirurgia sem intercorrências. Agora aguardamos uma avaliação neurológica”, relatou, sem esconder a tensão.  Se alguma coisa vier a ocorrer com o paciente, o profissional estará em risco. “A cirurgia já é bastante delicada. Quando o paciente estabelece uma relação de ameaça, o médico se sente acuado, sem tranquilidade para trabalhar”, observa.

Embora compreendam o desespero de alguns pacientes, por conta da precariedade do serviço público, os médicos adotam práticas para evitar atritos, especialmente nas unidades mais periféricas. “Assumimos um comportamento defensivo, de muitos cuidados”, lamenta.

Um colega, também anônimo, foi ameaçado de morte quando atendia no Hospital Santa Marcelina, em Itaquaquecetuba. Ele tinha feito doutorado no exterior, e era seu primeiro dia naquela unidade. Demorou em uma cirurgia complexa, e foi recebido com gritos pelos parentes de outro paciente, também em estado grave. “O senhor não volte mais aqui, pois sabemos seu nome e conhecemos seu carro. E temos pessoas influentes que podem fazer o serviço”, teria dito um dos parentes. Como no primeiro caso, o hospital fica em área de periferia, onde é forte a presença do tráfico. Todo o pessoal de saúde ali sabe disso e redobra os cuidados. Naquele mesmo dia, o médico solicitou uma escolta para levá-lo até a Rodovia Airton Senna e nunca mais voltou.

Em outro episódio, o médico foi ameaçado porque a paciente exigia que fornecesse um atestado de incapacidade para que continuasse recebendo o benefício da Previdência. Na falta de documentos que comprovassem seu estado de saúde, o médico pediu uma série de exames, para então conceder o benefício. Ela disse que o médico seria processado e que iria atrás dele onde fosse.

“A violência que acomete os serviços de saúde é reflexo da violência presente na sociedade”, diz Maria Fernanda Tourinho Peres, do Núcleo de Estudos da Violência da USP. A pesquisadora lembra que os profissionais que atuam na base têm “um contato direto e cotidiano com situações de violência urbana, que envolvem até relações próximas com organizações criminosas, que controlam esse território”.

Pesquisa nacional, realizada pelo Datafolha para o Conselho Federal de Medicina, no ano passado, revela que 6% dos médicos consideram o “ambiente seguro e sem violência” como o aspecto principal para aceitar ou deixar um trabalho. Significa que cerca de 24 mil médicos em todo o País têm a violência como principal critério para permanecer ou deixar um posto de trabalho.

Situações de atendimento, especialmente nas urgências e emergências, fazem do médico o centro das tensões nas relações com pacientes e familiares. Os profissionais são vistos como responsáveis pela vida e pela morte. “Há uma sensação muito grande de angústia. Sem um aparato para garantir a segurança, o médico trabalha com medo, de forma defensiva, não tem estímulo para trabalhar, e há falta crônica de profissionais nesses serviços. Então, aumentam as chances de erro, de complicações”, ressalta o cirurgião Renato Françoso Filho, do coordenador da Câmara Técnica de Urgência e Emergência do Cremesp.

O Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp) tem uma lista de violências cometidas contra médicos nos últimos dez anos. Muitas estão relacionadas ao resgate de presos doentes atendidos em hospitais gerais. Em 2009, um médico foi assassinado no estacionamento de uma maternidade da Zona Leste, em São Paulo, sem que a causa do crime fosse esclarecida. A lista de agressões físicas e verbais é bem maior. No Hospital Geral de Taipas, uma paciente agrediu uma médica que estaria demorando no atendimento de uma criança. O marido da médica veio socorrê-la, e também foi agredido.

“As agressões verbais e físicas por parte de pacientes e familiares são, de longe, o maior problema de segurança nos grandes serviços e nas áreas periféricas”, diz Cid Carvalhaes, ex-presidente do Simesp. A reivindicação do sindicato é que haja um policiamento ostensivo do lado de fora em todos os principais serviços.

 

*Jornalista especializado em Saúde

 


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