CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág.1)
Editorial de Renato Azevedo Júnior - Presidente do Cremesp
ENTREVISTA (pág. 4)
Soren Holm - editor do Journal of Medical Ethics
SINTONIA (pág. 9)
Médicos e indústria farmacêutica
CRÔNICA (pág. 12)
Millôr Fernandes
DEBATE (pág. 14)
Aids: em discussão o tratamento profilático
MÉDICOS NO MUNDO (pág. 20)
As muitas guerras do dr. Filártiga
EM FOCO (pág. 24)
AVAAZ: protestos em um clique
HISTÓRIA DA MEDICINA (pág. 27)
Médico, torneiro mecânico e inventor
GIRAMUNDO (págs. 30/31)
Curiosidades da ciência e tecnologia, da história e de fatos atuais
PONTO COM (págs. 32/33)
Informações do mundo digital
SUSTENTABILIDADE (pág. 34)
Sacolas plásticas: uma história sem heróis nem vilões
LIVRO DE CABECEIRA (pág. 37)
Indicação da conselheira Ieda T. Verreschi*
CULTURA (pág. 38)
Pedro Almodóvar
MAIS CULTURA (pág. 41 )
A revolução romântica
HOBBY (pág. 42)
Sem efeito colateral
CARTAS & NOTAS (pág. 33)
SUS: Cremesp recolhe assinaturas
GOURMET (pág. 45)
Sabor de vida em família
FOTOPOESIA( pág. 48)
João Cabral de Melo Neto
GALERIA DE FOTOS
DEBATE (pág. 14)
Aids: em discussão o tratamento profilático
Caio Rosenthal, Paulo Teixeira e Esper Kallás
A revista Science elegeu como a maior descoberta científica de 2011 um estudo que pode vir a demonstrar nova função para os medicamentos usados no tratamento da Aids: eles são também eficazes na prevenção da infecção pelo HIV e podem contribuir para barrar a propagação da epidemia em níveis jamais imaginados.
No estudo internacional, chamado HPTN 052, realizado no Brasil e em mais oito países, pessoas em tratamento adequado com antirretrovirais reduziram em 96% a chance de transmitir o HIV para seus parceiros. A pesquisa envolveu 1.763 casais heterossexuais em que um dos parceiros era soropositivo. Eliminar a Aids, dizem as avaliações mais otimistas, tornou-se cientificamente possível, em meio às frustradas tentativas de desenvolvimento de uma vacina preventiva e da busca da cura da doença.
Os medicamentos já são usados com sucesso na prevenção, na chamada profilaxia pós-exposição (PEP), preconizada para evitar a transmissão vertical do HIV (da mãe para o bebê), em casos de acidentes profissionais com materiais contaminados, em casos de estupro, de relações sexuais desprotegidas e em programas de reprodução assistida para casais sorodiscordantes (quando um dos parceiros é HIV positivo). Pesquisas recentes apontam para a eficácia, ainda relativa, da profilaxia pré-exposição (PREP), o uso de medicamentos antes da possível exposição ao risco de infecção pelo HIV.
Para debater a novidade, a Ser Médico reuniu os médicos Paulo Roberto Teixeira, dermatologista e sanitarista, e Esper Georges Kallás, infectologista e imunologista, com a mediação do infectologista e conselheiro do Cremesp, Caio Rosenthal. Teixeira foi coordenador do primeiro programa de Aids do país, no Estado de São Paulo, em 1983, e dirigiu a Coordenação Nacional DST/Aids, do Ministério da Saúde. Atualmente é consultor sênior do Programa Estadual de DST/Aids-SP e representante do Ministério da Saúde junto ao Fundo Global de Aids, Tuberculose e Malária. Kallás é professor associado da disciplina de Imunologia Clínica e Alergia e livre-docente pela Fmusp e, também, o pesquisador principal do São Paulo Clinical Trials Unit, que estuda, em parceria com o National Institutes of Health (NIH), dos Estados Unidos, novas drogas, novas estratégias de prevenção e vacinas contra o HIV.
Caio: Se aplicássemos o tratamento como prevenção, as próximas gerações estariam livres do HIV, como aconteceu com a varíola, por exemplo? Hillary Clinton declarou que os Estados Unidos pretendem ampliar o tratamento antirretroviral com o objetivo de conquistar uma próxima geração sem Aids.
Paulo: Creio que não, e diria ainda que a erradicação de uma doença depende de uma vacina. Exemplos absolutamente sólidos são a hanseníase, a tuberculose e as próprias DSTs, nas quais também é usado o tratamento como prevenção, mas que ainda mostram índices epidêmicos, certamente por falta de diagnóstico e falha no tratamento em termos de adesão, o que as mantêm como sérios problemas de saúde pública. Mesmo o Estado de São Paulo, que tem uma eficiência relativa nessa área, registra ainda cerca de 17 mil casos de tuberculose por ano. Em relação à Hillary Clinton, só uma observação: para isso os EUA teriam de mudar o seu sistema de saúde. É sabido que, lá, para muitos pacientes, principalmente os hispânicos, ilegais e presidiários, é muito difícil o acesso ao tratamento antirretroviral.
Esper: Seria muito difícil aplicar o tratamento precoce indiscriminadamente. Mas o conceito de tratamento antirretroviral muda com o passar dos anos. Hoje temos clareza de que as pessoas que têm vírus replicando no organismo possuem um grau de ativação do seu sistema imune bastante elevado. Aparentemente, com o passar do tempo, isso será maléfico para as pessoas. Cada vez mais, estamos tentando entender esse processo. Acho que, num futuro não muito distante, o tratamento não estará condicionado a determinados marcadores, será iniciado por qualquer pessoa, assim que ela descobrir que tem o HIV. Então, “indiscriminado” não seria o termo correto. No final das contas, principalmente com a disponibilidade de remédios com menos efeitos colaterais, optaremos por tratar precocemente todas as pessoas.
Caio: Pode-se dizer então que num futuro próximo haverá a erradicação do HIV?
Esper: Não tenho certeza. Dependeria de vários fatores, entre eles o uso das pílulas de forma regular por todas essas pessoas, o que eu acho impossível. Estudos sobre medicações com efeitos adversos, de uso crônico, mostram que, como é natural entre seres humanos, um percentual não segue o tratamento adequadamente. Acho muito difícil que 100% das pessoas com HIV façam uso correto dos medicamentos – o que seria uma premissa para diminuir a força de transmissão do vírus. Mas não é impossível. Isso se a gente conseguir combinar essa medida com outras formas de prevenção.
Caio: Se não tiver uma adesão de 100% por parte de todos os pacientes, o plano desmorona...
Esper: A falta de adesão pode ser compensada por outras medidas de prevenção, por exemplo a profilaxia pré-exposição (o uso de medicamentos antes da possível exposição ao risco de infecção pelo HIV, como o sexo desprotegido) e por todas as outras medidas tradicionais que já fazem parte do nosso arsenal, como o uso do preservativo. Se conseguirmos que o medicamento chegue ao público alvo dessa estratégia, junto com todas as outras medidas de prevenção, e cada um fizer sua opção de acordo com suas condições social e indivi¬dual, é possível chegar, no longo prazo, ao ponto de diminuir a força de transmissão do vírus na população e, eventualmente, a epidemia ficar sob controle. Erradicar é uma meta difícil. Se olharmos o genoma humano, vamos perceber que mais de 8% da nossa constituição genética é formada por retrovírus endóginos. O retrovírus do qual estamos falando, o HIV, é mais um na escala de evolução de todas as espécies. Ele faz parte desse processo de troca de material genético, atuando no processo evolutivo e, eventualmente, será incorporado ao nosso genoma como todos os outros. Portanto, erradicar HIV é um conceito praticamente impossível na biologia. Não é como o vírus da varíola.
Paulo: Não acredito que seja possível “erradicar” sem uma vacina, pelos diversos componentes estruturais, humanos, sociais, religiosos incluídos na questão. Temos de imaginar um cenário otimista onde um determinado grupo de pessoas se adapta melhor a tomar uma pílula de manhã e na hora de dormir, todos os dias da sua vida, com aqueles que sejam mais aderentes e rigorosos no uso persistente do preservativo. As pesquisas anteriores mostram que a adesão a qualquer método é sempre limitada, mas, juntando as várias possibilidades, podemos pensar em um panorama melhor, sem dúvida.
Caio: O que significa essa descoberta para a epidemia de HIV e Aids? Existe viabilidade financeira em aplicar o tratamento como prevenção na nossa realidade?
Esper: Não existe só um caminho mágico para controlar a epidemia. Nunca teremos uma única receita para resolver o problema, que é complexo. O Brasil já comporta essa estratégia, cujo objetivo final é reduzir a transmissão do vírus. Há medidas de prevenção como a educação voltada ao comportamento sexual e à distribuição de preservativos. Atualmente, a maioria dos brasileiros identificados como infectados está recebendo o tratamento. Aos poucos, temos aumentado os limites para iniciar o tratamento antirretroviral, os médicos estão aprendendo a manusear melhor os remédios e os pacientes entendendo melhor o tratamento e a importância da adesão. Os medicamentos estão ficando cada vez mais palatáveis para os pacientes. Isso amplia mais o tratamento e aumenta a proteção. Mas temos de criar meios para fazer chegar às pessoas o diagnóstico do HIV e das doenças sexualmente transmissíveis.
Paulo: Não tenho a menor dúvida de que, com a experiência dos últimos 20 anos, o Brasil pode incorporar não 230 mil pacientes (número de pessoas atualmente em tratamento), mas sim ampliar para 650 mil pessoas (que é a projeção de indivíduos infectados pelo HIV no país). Adquirimos experiência de gestão e de negociação dos medicamentos. Podemos ampliar o acesso. Minha preocupação não é com a viabilidade econômica, mas com a factibilidade de que poderemos, com os medicamentos, ter um impacto tão grande na epidemia. Temos de acompanhar com muita atenção as pesquisas, mas o Brasil ainda convive com situações inadmissíveis. No país, somente 50% das gestantes soropositivas são diagnosticadas antes ou durante o parto. Houve uma queda de 50% na transmissão vertical nos últimos dez anos, mas os atuais 500 casos, em média, por ano, são inaceitáveis. Também teremos de fazer um esforço para ampliar o diagnóstico precoce. Atualmente, 56% dos pacientes que iniciam tratamento estão com a contagem de CD4 abaixo de 200, ou seja, tiveram o diagnóstico tardio. Neste cenário, devemos reavaliar o possível impacto do tratamento como prevenção.
Prevenção: "na soma das diferentes possibilidades de cobertura, vamos melhorar o resultado final" (Paulo Roberto Teixeira)
Caio: O Brasil tem recursos limitados. Se fosse aplicado o tratamento indiscriminadamente para fins de prevenção do HIV, teríamos especialistas para lidar com essa nova estratégia? Que outros desafios teremos?
Esper: Isso precisa ser corrigido, mas temos tido um sucesso muito grande no tratamento, pois no Brasil mais de 80% dos pacientes soropositivos que chegam até o tratamento têm o HIV indetectável. A previsão de que o Brasil teria um número muito maior de infecções, se não tivéssemos implementado o programa nacional de Aids no começo da epidemia, é algo de que devemos nos orgulhar. O que nos levou a ter uma posição privilegiada em relação aos outros países foi a ousadia. Essa ousadia ficou esquecida. Temos de resgatá-la para lançar mão de novas estratégias de prevenção. Um dos maiores problemas que temos são as populações vulneráveis, principalmente a de homens que fazem sexo com homens (HSH), na qual temos uma situação, embora em menor escala, similar à africana. Temos entre 10% e 16% dos homossexuais infectados pelo HIV na cidade de São Paulo.
Caio: Quer dizer que temos de fazer uma prevenção muito mais sofisticada para evitar mais infecções entre os grupos vulneráveis?
Paulo: Em relação às populações específicas, não acredito que seja o caso de novas tecnologias, como temos ouvido, genericamente. Não discordo de que novas tecnologias sempre são importantes, mas insisto em que as tecnologias “convencionais” são altamente eficientes e não foram usadas em sua plenitude, em diferentes situações, por diferentes determinantes. Por exemplo, a questão da camisinha. Entre homossexuais, continuamos tendo uma taxa alta de transmissão e manutenção da prevalência nacional, ao redor de 12%. Estudos mostram que, apesar de a informação existir, o não uso do preservativo é extremamente alto, determinado por vários fatores que precisamos entender melhor. Em relação a profissionais do sexo, ao redor de 5% estão infectados; entre usuários de drogas, de 5% a 6%, a mesma taxa entre moradores de rua. Outra grande questão é o acesso aos serviços, determinado por fatores de ordem econômica e social, que não dependem de uma nova tecnologia, mas sim de um sistema de saúde acessível e acolhedor, universalmente. Somente construindo o SUS efetivamente – que significa recursos adicionais e capacitação – é que vamos chegar a um cenário mais aceitável.
Esper: Vamos imaginar uma situação ideal, como a produzida no nosso estudo sobre profilaxia pré-exposição (conduzido na Fmusp e em outros 11 centros no mundo). Os voluntários eram homossexuais de alta vulnerabilidade para o HIV. No início da pesquisa, 80% deles relataram que tinham relações anais receptivas sem preservativo e média de sete parceiros novos por semana. Nós oferecemos a eles psicólogos, preservativos, diagnóstico e tratamento para doenças sexualmente transmissíveis. Eles realizavam testes anti-HIV mensalmente, com aconselhamento pré-teste e pós-teste. Não consigo imaginar uma situação mais ideal do que esta. As relações desprotegidas caíram de 80% para 50% e o número de parceiros caiu de sete para dois. Ou seja, mesmo combinando todas as medidas de prevenção tradicionais isso não foi suficiente para zerar ou reduzir drasticamente a transmissão. Você precisa de outros ingredientes nessa cesta. Algumas pessoas podem se beneficiar mais de outras estratégias. É necessário oferecer opções a essas pessoas, isso faz parte da natureza individual.
Caio: O que poderíamos oferecer para as pessoas aderirem ao preservativo, por exemplo?
Esper: Não se pode partir do princípio de que o fato de eles não usarem preservativo regularmente quer dizer que nunca não irão usar ou se interessar por outros métodos como a profilaxia pré-exposição (PREP) ou a circuncisão, que pode contribuir em alguns contextos para redução da transmissão. É preciso oferecer sempre o máximo possível para chegarmos a uma situação onde seja possível vislumbrar a erradicação ou o controle completo da epidemia.
Paulo: Não discordo de que é preciso procurar um maior número possível de opções. Na soma das diferentes possibilidades de cobertura, vamos certamente melhorar o resultado final. Só acho que não podemos dizer que é impossível, e que nós conhecemos todos os elementos de cada população. Felizmente, está vindo bastante ao debate a questão dos homossexuais. Um dos determinantes da epidemia nesse grupo é a homofobia, a discriminação, o preconceito. Quando você avalia o estudo entre prostitutas, verifica que, no último ano, diante de uma lesão genital, somente 60% tiveram acesso ao sistema de saúde. Os usuários de drogas também enfrentam essa mesma dificuldade. Quero enfatizar a importância de não se perder os cenários social e econômico e o sistema de saúde como grandes instrumentos de progresso.
Caio: E as transmissões recentes, que ocorrem ainda na fase aguda – e em grande número –, não seriam um obstáculo ao tratamento como prevenção?
Esper: É mais um claro exemplo de que é preciso prevenir a fonte da infecção. Agora, será que a profilaxia para exposição desse indivíduo que acabou de contrair o HIV poderia quebrar a cadeia de transmissão para vários outros? Há a necessidade de oferecer às pessoas diversas possibilidades. Se você tem vários momentos de atuação nessa rede, consegue diminuir a força da transmissão. Mesmo um sistema de saúde ideal, que ofereça maior assistência às pessoas, não será capaz de controlar a epidemia com a situação atual de medidas de prevenção.
Paulo: Só um dado pitoresco: logo após a Revolução Chinesa, em um país que tinha 700 milhões de habitantes, foram erradicadas as doenças sexualmente transmissíveis. Como isso foi feito? Com um mutirão nacional, com um levantamento domiciliar. Claro que teve um componente autoritário muito grande.
Esper: O nosso sistema de liberdade social e sexual não permite uma ação autoritária. Nada pode ser compulsório e a autonomia das pessoas deve ser preservada.