CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág.1)
Renato Azevedo Júnior - Presidente do Cremesp
ENTREVISTA (pág. 4)
José Feliciano Delfino Filho
CRÔNICA (pág. 10)
Tufik Bauab*
EM FOCO (pág. 12)
Voluntários do Sertão
SINTONIA (pág. 15)
Emerson Elias Merhy*
DEBATE (pág. 18)
A relação médico-paciente e a internet
GIRAMUNDO (págs. 24 e 25)
Curiosidades da ciência e tecnologia, da história e atualidade
SAÚDE NO MUNDO (pág. 26)
O sistema de saúde público no Japão
HISTÓRIA DA MEDICINA (pág. 30)
Epidemias: os grandes desafios permanecem
CARTAS & NOTAS (pág. 33)
Conexão com o usuário a um clique
HOBBY (pág. 34)
Alexandre Leite de Souza
PONTO COM (págs. 38/39)
Informações do mundo digital
CULTURA (pág. 40)
Imperdíveis exposições da Pinacoteca
TURISMO (pág. 42)
Das flores de Bali ao enxofre do Ijen
LIVRO DE CABECEIRA (pág. 47)
Dica de leitura de Desiré Carlos Callegari *
FOTOPOESIA( pág. 48)
Adélia Prado
GALERIA DE FOTOS
SINTONIA (pág. 15)
Emerson Elias Merhy*
Qual o valor da vida no século 21?
Teremos uma sociedade de clones, ou de indivíduos e coletivos enriquecidos pela produção da diversidade?
Diante da pergunta de como será o médico do “futuro” no século 21, imagina-se que a resposta procure compreender o caminho seguido pelo conhecimento científico produzido pela Medicina atual. A mística das teorias genéticas, das moléculas da vida e das células-tronco – inclusive a existência, já em laboratório, de impressoras de órgãos –, vem alimentando essa imediata construção do pensamento.
Porém, não faz muito tempo, o filósofo Michel Foucault trouxe para a cena a noção de que os problemas que a Medicina toma para si não são, exclusivamente, de sua alçada. Não é o conhecimento científico que lhe dá o perfil prático e tecnológico. Em algumas de suas produções – O poder da psiquiatria e Nascimento da clínica – ele demonstra como a sociedade cria suas questões para definir o humano e a vida, para que o saber as discipline em termos de conhecimento e objeto de ação, no plano do cuidado e da terapêutica.
Nesse sentido, considero que a construção de uma resposta tem de passar pelo esforço de se imaginar o que será a vida e qual o seu valor para os coletivos sociais. Desde sempre, a construção de operadores do cuidado em saúde, sob qualquer forma que adquiram, expressa, de modo efetivo, como certas sociedades e seus grupos sociais imaginam e conduzem sua universalização no mundo social que habitam, ou seja, tornando-o de todos, que é o viver e o sofrimento, individual e coletivo. Quase de primeira hora, a prática médica se coloca à disposição desse processo, em particular desde o século 19, quando a chamada medicalização das questões sociais ganha expressão, ampliada na própria constituição da organização social contemporânea.
Por que, naquele período, isso se avoluma? Talvez pelo fato de que, nas sociedades ocidentais daquela fase, o ordenamento das organizações capitalistas colocasse como uma das principais pautas para as práticas sociais – incluindo as de saúde – a equação do que chamamos de gestão da produção da vida pessoal e populacional. Em épocas anteriores, quando os soberanos eram a própria figura do Estado – na França, o rei Sol dizia: o Estado sou eu –, imperava o poder sobre a morte e não sobre a vida. Por isso, diz-se que eles decidiam se iriam “deixar viver”.
Biopoderes
No entanto, após as transformações sociais que atravessaram o século 18, a mudança sutil e fundamental apontou para a construção dos processos que impactam a produção da vida, os biopoderes. A forte emergência da saúde pública e da Medicina, como práticas do Estado – Polícia Médica, na Alemanha, por exemplo –, corrobora essas transformações e lhe dão respaldo, ou melhor, competência tecnológica para agir e efetivamente produzir controles sobre a dinâmica de produção da vida.
Mas, qual vida? Naquele momento, a produção da vida dos indivíduos e das populações respondia a certos requisitos como: quem é o povo de uma determinada nação, o seu quantitativo cresce ou diminui, quais as causas de mortes que balanceiam esse processo, e como interferir nessa dinâmica populacional. As tecnologias do campo sanitário se desenvolveram de maneira intensa. E as de cuidado indivi¬dual foram para o foco dos processos anátomo-clínicos, atrás de práticas de ação em relação a certas doenças das pessoas, que impactaram esse processo, além da busca incessante de estratégias terapêuticas.
Desenvolveram-se, então, a anatomia patológica, a farmacologia, as técnicas semióticas, as técnicas de leituras do que o corpo biológico “dizia”. O pesquisador Ricardo Bruno Mendes Gonçalves tem estudos primorosos sobre isso – As raízes sociais do trabalho médico e Tecnologia e organização social da prática de saúde –, permitindo-nos ver o que era o médico do século 20, ao mostrar – na pista da professora Maria Cecília Ferro Donnangelo – que questões sociais tomavam conta desses processos e como viravam estas técnico-científicas. E como viravam Medicina e médicos.
No bojo dessa elaboração, pergunto: qual valor da vida o século 21 construirá? Par e passo, o médico também será. A vida enquanto um equivalente melhorado e aprimorado de uma certa robótica biológica? Uma vida dessa ordem, manipulável pelos biocientistas, para a construção de uma sociedade da harmonia burra do consenso e do clone? Se assim for, a Medicina está indo no caminho certo, pois é nisso que vem se tornando: prática de tecnólogos que não suportam a diferença e a diversidade do viver, com suas práticas uniformizadoras, prescritivas e vigilantes. Uma Medicina que não se dá ao luxo de olhar quem vem em seu encalço, que não escuta quem lhe fala, que não dá conta dos processos de singularizações. Ao contrário, que vem andando de mãos dadas com uma sociedade que almeja “cidadãos” disciplinados, poucos desejantes para além do mundo do consumo banal, e com medo de correr o risco de adoecer, como expressão científica da saudabilidade.
Outra possibilidade
Essa Medicina já está aí e pode ter um grande futuro no seu aprofundamento. Entretanto, há a possibilidade de outra, ou melhor, de outras práticas sociais no campo da produção e gestão da vida, se o que vingar, para a frente desses nossos dias, for a emergência de desejos coletivos e sociais de que a vida seja um bem universal da Terra e não só dos “humanos”; de que a vida individual e coletiva enriqueça com a produção da diversidade e não do clone, do igual na diferença e não o identitário rígido, normativo; de que a produção da vida seja a maior riqueza social em si, não monetarizada nem a serviço disso.
Para não ficar na esparrela de uma acusação de que isso é pura ilusão, diria que as disputas hoje são massivas quanto a essas questões em muitos países do mundo e em vários grupos sociais. Além disso, se não for para viver essa multiplicidade que a produção da vida na Terra proporcionou, as coisas perderam sua graça, para o planeta e para todos nós.
Se essa disputa pender para o campo da defesa radical da vida individual e coletiva, e para a noção ética e política de que qualquer forma de vida vale a pena na sua multiplicidade e liberdade, aí a Medicina e os seus médicos terão de ser outros e não esses que estamos mundialmente, ou predominantemente, formando em nossas escolas e nos nossos mundos do trabalho.
A Medicina – como também mostra José Ricardo Ayres em texto do número anterior desta revista – não é uma mera continuidade da evolução de um saber científico sobre a vida e os corpos vivos, que se vai aprimorando cada vez mais. Ela é um biopoder, uma certa maneira de aliar agir tecnológico sobre um determinado modo de se produzir a vida. Sendo assim, o novo médico não poderá ser o tecnólogo atual, cada vez mais especialista e cada vez menos sabido sobre o viver, em geral. Deverá ser um especialista em gente e em coletivos desejantes, especialista em processos vitais de singularização. Especialista em facilitar a gestão das redes de conexões existenciais, que dão sentido aos muitos modos de viver, que cada um de nós experimenta no nosso tempo vital. E seu saber sobre o sofrimento deverá ser disponibilizado para que o outro possa fazer uso disso na sua própria produção.
O novo médico deverá ser um especialista em construção conjunta de projetos terapêuticos com os usuários individuais e coletivos de suas tecnologias de cuidado. Deverá ser parte do trabalhador coletivo de saúde, para poder proporcionar uma Medicina a favor dos modos de viver que favoreçam o que já fazemos: povoar a Terra com 7 bilhões de membros da nossa espécie, dentre os quais não há um igual ao outro, todos se diferenciam nos seus detalhes singulares. Inclusive os chamados “anormais”.
Nesse caminho, temos muitos saberes novos a produzir no campo das tecnologias relacionais. Inclusive para subordinar as produzidas no campo duro e material, a serviço desses movimentos intensos que a produção do encontro exige no mundo de um cuidar, para o qual a produção da vida do outro deverá ser o seu eixo singular e especial de ação.
Sugestão de leitura, além dos autores nominados no texto:
• Semiótica, afecção & cuidado em saúde. Organização: Tulio Batista Franco. São Paulo. Editora Hucitec, 2010.
*Professor associado, aposentado, da Unicamp; e professor da pós-graduação em Clínica Médica da UFRJ