CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Renato Azevedo Júnior - presidente do Cremesp
ENTREVISTA (pág. 4)
Mia Couto, biólogo e jornalista moçambicano
CRÔNICA (pág. 8)
Homenagem a Moacyr Scliar, médico e escritor, falecido em janeiro deste ano
SINTONIA (pág. 10)
Surge um novo conceito de doença e de saúde
CONJUNTURA (pág. 13)
Identificação possível
SAÚDE NO MUNDO (pág. 14)
Saúde Global versus Saúde Internacional
DEBATE (pág. 17)
A qualidade das embalagens comercializadas no país
GIRAMUNDO (págs. 22/23)
Curiosidades da ciência e tecnologia, da história e da atualidade
PONTO COM (pág. 24)
Acompanhe as novidades que agitam o mundo digital
EM FOCO (pág. 26)
Transtornos afetivos na infância
LIVRO DE CABECEIRA (pág. 29)
Confira a indicação de leitura de Caio Rosenthal*
CULTURA (pág. 30)
José Marques Filho*
GOURMET (pág. 36)
Uma receita especial de Debora Handfas Gejer e Geni Worcman Beznos
TURISMO (pág. 40)
A "suíça brasileira" bem ali, na Serra da Mantiqueira...
CARTAS & NOTAS (pág. 47)
Diretores e conselheiros da terceira gestão 2008-2013
POESIA( pág. 48)
Mia Couto em “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”
GALERIA DE FOTOS
SINTONIA (pág. 10)
Surge um novo conceito de doença e de saúde
Tratamento das incertezas em medicina
A lógica fuzzy pode contribuir muito com áreas em que é necessário lidar com a subjetividade e o desconhecimento
Eduardo Massad*
Várias são as ferramentas quantitativas disponíveis para o tratamento das incertezas. A análise bayesiana e a teoria das evidências de Dempster-Schaffer são abordagens consideradas clássicas, mas há também uma técnica alternativa, a da lógica fuzzy.
A teoria bayesiana é baseada em probabilidades a priori – incondicionais atribuídas a um evento, na falta de conhecimento ou informação que suporte sua ocorrência ou ausência – e em a posteriori – condicionais de um evento, devido a alguma evidência. Dessa forma, a probabilidade a priori de um indivíduo ter certa enfermidade considera o número de pessoas com a doença, dividido pelo de pessoas no domínio de interesse. A probabilidade a posteriori considera o conjunto de sintomas. Também conhecido como Teorema de Bayes, a probabilidade a posteriori considera o número de pessoas que tanto possui a doença como os sintomas, dividido pelo total de indivíduos com os sintomas – também equivalente ao Valor Preditivo Positivo (VPP) de um teste diagnóstico. A abordagem bayesiana tem ampla aplicação em processos diagnósticos, inclusive na construção de sistemas especialistas, sendo bem conhecida na literatura científica.
Com frequência, a incerteza é resultado da combinação entre falta de evidências com as limitações das regras heurísticas e do conhecimento. A teoria das evidências de Dempster-Shafer considera um conjunto de proposições e atribui a cada uma delas um intervalo que contenha certo grau subjetivo de crença no evento. A medida de crença varia de 0 (sem evidências) a 1 (certeza). Seu complemento é chamado de plausibilidade e também varia de 0 a 1. A teoria de Dempster-Shafer é a de que a medida da incerteza pode ser inferida pela distinção entre falta de certeza e ignorância. As funções de crença permitem usar o conhecimento para atribuir valores de probabilidades a eventos. Assim obtêm-se graus de crença a partir de probabilidades subjetivas, pelo uso de regras de combinação baseadas em itens independentes de evidência. Ao supor que certo paciente tenha ou tuberculose ou pneumonia ou gripe, temos de associar as medidas de crença com os conjuntos de hipóteses. As evidências não precisam dar suporte a hipóteses individuais de modo exclusivo. Assim, a presença de febre levaria a três hipóteses simultaneamente. Por outro lado, evidências a favor de uma delas podem afetar a crença nas outras. A etapa seguinte consiste na definição de uma “função de densidade de probabilidades” para todos os subconjuntos do conjunto.
A teoria da lógica fuzzy foi apresentada, em 1964, por Lotfi Zadeh, professor no Departamento de Engenharia Elétrica e Ciências da Computação da Universidade da Califórnia, em Berkeley, quando procurava classificar conjuntos que não possuíam fronteiras definidas. O termo fuzzy significa nebuloso, difuso em referência à falta, em muitos casos, de conhecimento completo dos sistemas analisados. Em inúmeras situações, a relação de pertinência não é bem definida e não sabemos com exatidão se o elemento pertence ou não a um determinado conjunto. A intenção de Zadeh foi flexibilizar, criando a ideia de grau de pertinência. Dessa forma, um elemento poderia pertencer parcialmente a um dado conjunto. A fuzzy difere da lógica clássica porque admite valores intermediários entre o completamente falso (0) e o completamente verdadeiro (1), como o talvez (0,5). Essa extensão da função característica da lógica clássica para o intervalo (0,1) originou os conjuntos fuzzy e possibilitou, entre outras coisas, a utilização de variáveis linguísticas, permitindo a exploração do conhecimento humano no desenvolvimento de muitos sistemas.
Devido às suas características, são esperadas enormes contribuições da teoria da lógica fuzzy ao desenvolvimento de modelos em áreas em que é necessário lidar com a imprecisão – como a engenharia e a química – e com a subjetividade e o desconhecimento – como a biologia, a medicina, a epidemiologia, a ecologia, a economia, a psicologia, as ciências sociais e a saúde pública. Ela demonstra grande capacidade de aplicação, ajudando os profissionais a produzir modelos em maior conformidade com suas necessidades e realidades. Os graus de pertinência da abordagem fuzzy possibilitam agrupar elementos de maneira diferente da lógica clássica, permitindo a reinterpretação de seus antigos conceitos.
Saúde e doença, por exemplo, são vistos como conceitos opostos e contraditórios pela comunidade médica – a doença é a ausência de saúde e vice-versa. Mas, na abordagem fuzzy, ambos são antes complementares do que contraditórios. Dessa forma, um novo conceito de doença e de saúde pode ser estabelecido, promovendo transformações na maneira de compreender algumas áreas da medicina, por exemplo, a nosologia.
O diagnóstico de doenças envolve vários níveis de imprecisão e incerteza. Uma única doença pode manifestar-se de forma totalmente diferente em distintos pacientes, com vários graus de severidade. Além disso, um único sintoma pode ser indicativo de variadas doenças; e a presença de outras enfermidades em um mesmo indivíduo pode alterar completamente o padrão sintomático esperado para qualquer uma delas. Esses efeitos costumam ser geradores de muitas incertezas e imprecisões, afetando a interpretação de exames e o diagnóstico. Além disso, as doenças são geralmente descritas por termos linguísticos intrinsecamente vagos; e muitas são as variáveis qualitativas que dificultam a utilização de métodos quantitativos.
Em medicina, a incerteza não se restringe a variações aleatórias e podemos agrupá-la em duas classes: da variabilidade, originada na heterogeneidade da população; e da ignorância parcial, que resulta de erros sistemáticos de medida (imprecisão) ou do desconhecimento de parte do processo (subjetividade). Portanto, variabilidade e ignorância devem ser analisadas por diferentes métodos. No caso da variabilidade, o mais indicado é o da teoria de probabilidades (estatística). Porém, na maioria das vezes, esse método não consegue abordar o problema da ignorância e da subjetividade. Esses últimos podem ser tratados pela análise bayesiana e pela lógica fuzzy.
Poucos são os casos em nosso cotidiano em que temos total certeza sobre os fatos – e faz parte da atividade humana tomar decisões considerando a verdade parcial existente. Nesse sentido, dificilmente podemos considerar um indivíduo completamente doente – algumas funções, ou a maioria delas, permanecem perfeitas. Da mesma forma, poucas vezes podemos considerá-lo completamente saudável, principalmente aquele que vive em grandes centros, quase sempre resfriado, gripado, estressado ou mal alimentado.
Talvez em nenhum outro campo da biociência a necessidade de estruturas matemáticas e computacionais, que possibilitem lidar com imprecisões e incertezas de forma mais crítica e realista, seja tão evidente quanto na medicina. E a aplicação da teoria fuzzy na área médica vem demonstrando grande capacidade para aprimorar e desenvolver tanto equipamentos quanto modelos nas mais diversas atividades hospitalares e de pesquisa.
* Médico, bacharel em Física, doutor em Medicina, professor titular de Informática Médica, chartered mathematician and fellow do Instituto de Matemática Aplicada do Reino Unido, pesquisador do CNPq, professor honorário do Departamento de Doenças Infecciosas e Tropicais da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres e autor de quatro livros.
Leitura recomendada
- A Theory for Brains and Machines. Rocha, A.F. Neural Nets: 1992.
- Medical Informatics: Computer Applications in Health Care and Biomedicine (Health Informatics.), Shortliffe, E.H. (editor). Gio Wiederhold, Leslie E. Perreault, Lawrence M. Fagan; 1990.
- Computer-aided diagnosis of acute abdominal pain. Dombal, F. Leaper, F. D., Staniland, J., et al. 1972, British Medical Journal, 1:376-380.
- The Endangered Medical Record : Ensuring Its Integrity in the Age of Informatics. Slee, V.N.; Slee, D.A.; Schmidt, H.J., Tringa Press; 2000.
- Handbook of Medical Informatics. 1st edition. Springer Verlag; 1997. Bemmel, J.; Van Bemmel, V.; Musen, M.A.
- Health Care Information Systems (Best Practices In series). Davidson, P.L. CRC Press; 1999.
- Fuzzy Logic in Action. Eduardo Massad, Neli Regina Siqueira Ortega, Laércio Carvalho de Barros e Claudio José Struchiner, Springer Verlag, 2008.