CAPA
EDITORIAL
Ponto de Partida
ENTREVISTA
Lygia da Veiga Pereira
CRÔNICA
Heloísa Seixas
CONJUNTURA
Hélio Sader
COM A PALAVRA
Carlos Alberto Pessoa Rosa
EM FOCO
Cremesp cria Centro de Bioética
DEBATE
Medicina Defensiva
LIVRO DE CABECEIRA
A Morte de Ivan Ilitch e O Livro de San Michele
CULTURA
Adriana Bertini
HISTÓRIA DA MEDICINA
Egito Antigo
TURISMO
Patagônia: terra de contrastes
POESIA
Carlos Vogt
GALERIA DE FOTOS
DEBATE
Medicina Defensiva
Em defesa de quem?Baseada em uma tese polêmica, a medicina defensiva sugere que o médico veja em todo paciente um potencial inimigo que pode processá-lo a qualquer momento. Para evitar problemas, o médico deve usar todos os meios ao seu alcance, inclusive pedir exames desnecessários que possam salvaguardá-lo. Por outro lado, o alto número de reclamações de pacientes contra médicos em várias instâncias como o Cremesp e a Justiça indicam que a medicina vai mal. Mas, nesse contexto, a medicina defensiva é problema ou solução? Para discutir esse assunto, Ser Médico reuniu o autor do Guia de Medicina Defensiva e conselheiro do Cremers, Martinho Álvares da Silva, e o pro-fes-sor titular de Clínica Geral da Faculdade de Medicina da USP, Milton de Arruda Martins neste debate, coordenado pelo conselheiro do Cremesp, Enidio Ilário.
Enidio Ilário. O espaço de trabalho dos médicos é reduzido por meio de mecanismos como contenção de custos e aumento dos lucros, especialmente na medicina supletiva. Como fica a situação dos médicos diante das reclamações de pacien-tes em várias instâncias judiciais e nos Conselhos de Ética?
Martinho. A Constituição de 1988 e o Código do Consumidor deram ao cidadão maior reconhecimento de seus direitos. Frente à Medicina, ele começou a buscar direitos e a cobrar deveres do Estado em relação à assistência. A precariedade dos recursos aliada à consciência cidadã, hoje mais fortalecida, conduzem à discussão do dito “erro médico”, expressão que caracteriza pré-julgamento e que pessoalmente não uso. A interferência, tanto do sistema privado como do público, que não permite ao paciente escolher seu médico, impede que a relação transcorra tranqüilamente, favorecendo o clima de desconfiança. Regra geral, os usuários de Planos de Saúde só conhecem seus médicos ou nas filas dos ambulatórios ou nas emergências.
Milton. O reflexo do crescimento da cidadania na postura do paciente tem aspectos muito positivos. O paciente quer participar e ser informado, cada vez mais, colocando os médicos sob um novo desafio: o de negociar. Esse caminho é fundamental para enfrentar, justamente, o problema de desconfiança e para fortalecer a relação médico-paciente.
Enidio. Qual o significado do termo medicina defensiva, afinal de contas?
Martinho. A medicina defensiva é uma nova postura do médico para responder ao desafio de negociar, reconhecendo os direitos do paciente e cobrando os nossos direitos. Dos 145 artigos do nosso Código de Ética, somente nove tratam de direitos dos médicos. É justamente em relação aos nove artigos que compete nossa orientação aos colegas. Ao fazer cumprir o artigo 23: recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar o paciente — estaremos defendendo a integridade do paciente e melhoria do atendimento. Mas também devemos conhecer os outros artigos, que reduzem nossa onipotência.
Enidio. A boa prática médica, na opinião dos srs. não é a verdadeira medicina defensiva?
Milton. O termo medicina defensiva — adotado em especial pelos Estados Unidos — não é simpático. O Manual de Medicina Defensiva sugere que o médico solicite uma série de exames subsidiários que possam evitar que ele seja legalmente acionado, para se proteger. A maior parte dos pacien-tes com cefaléia não precisa de exame para o diagnóstico, mas de uma anamnese bem feita. Segundo o manual, devemos solicitar uma tomografia e uma ressonância magnética para esse paciente. Não concordo com essa postura. A melhor medicina é a exercida com competência e responsabilidade ética, que solicita os exames necessários para aquele caso, podendo ser um ou 20, mas que tenha base científica. Nos EUA, essa prática não protegeu o médico, pelo contrário, encareceu brutalmente a medicina. E quem paga a conta? A sociedade, o Estado e os pacientes, dependendo do tipo de acesso que têm ao sistema de saúde.
Martinho. Também não acho o termo simpático, mas não encontramos nada melhor para substituí-lo. medicina defensiva é a responsabilização do médico pelos seus atos, mas também a cobrança de seus direitos plenos. Na medicina, formula-se a responsabilidade do médico pela culpa. E culpa não é cometer imperícia, imprudência e negligência; esses são vieses que a caracterizam. Culpa é o descumprimento de regimentos legais, éticos, sociais, criminais ou cíveis. Por exemplo, até recentemente o Conselho Federal de Medicina mandava guardar prontuário e documentos médicos por 10 anos e o Código Civil por 20 anos, mas os hospitais guardavam por cinco. A medicina defensiva prega que o médico seja cuidadoso com o conjunto das regras. Esse cuidado concorre para melhorar o atendimento e não chega ao ponto de pedir exames em excesso.
Milton. O manual diz textualmente para evitar o olho clínico: ...muitos médicos são alertados a diagnosticar e prescrever pelo simples exame clínico. Essa prática é motivo de orgulho profissional, mas não contribui em nada para resguardar o médico de processos. A que olho clínico o livro se refere? Da Medicina Baseada em Evidências ou não? Estudos científicos provam que, em muitas situações, o exame clínico é soberano. O texto continua dizendo o seguinte: os exames laboratoriais e de diagnóstico por máquina existem para facilitar e dar segurança à constatação clínica. O médico não deve poupá-los, são sua defesa. É preferível que o paciente gaste para confirmar um diagnóstico já elaborado pelo médico com um simples exame clínico, do que, mesmo com probabilidade remota, o diagnóstico feito sem exames laboratoriais seja desmentido depois. Esse texto está propondo, sim, radiografia e ressonância magnética para toda cefaléia. O exame laboratorial tem outra função. Um exame para resguardar o médico de um processo significa desperdício de dinheiro e desconforto para o paciente, que, inclusive, falta ao trabalho para fazê-lo. Em caso de um eventual problema, esse exame desnecessário pode motivar, isso sim, um processo contra o médico. Não concordo com eles.
Martinho. O olho clínico não freqüenta tribunal, mas sim fatos e provas. A palavra escrita do médico tem fé no tribunal, mas a verbal não. O fato de o médico omitir os poucos recursos que a medicina lhe dispõe em seu local de trabalho significa que está sendo negligente na ótica das pessoas que vão julgá-lo. Esse conjunto de regras é para o universo de colegas. O sr. trabalha no Hospital das Clínicas de São Paulo e não em uma pequena cidade do interior do Brasil com poucos habitantes e que dispõem, por exemplo, de somente um antigo aparelho de RX. Trabalho em três hospitais de ponta em Porto Alegre. É covardia me comparar com o colega daquela pequena cidade.
Milton. Mas parece que essas regras servem para todos. Defendo que todos os médicos solicitem apenas os exames necessários e não aqueles que o juiz pode cobrar no tribunal. Essa defesa pode ser feita pela literatura médica.
Martinho. Pela literatura médica, posso defender qualquer ponto de vista absurdo, que vou encontrar um trabalho que lhe dê embasamento. O médico tem de documentar tudo, fazer um prontuário correto etc. Ele tem de produzir provas enquanto está exercendo a medicina para dar perfeita juridicidade ao seu trabalho.
Milton. Quando formamos médicos, insistimos em que é importante registrar todas as informações, os exames, as hipóteses diagnósticas; que o prontuário deve conter toda a lógica do raciocí-nio médico e por que foi tomada aquela conduta. Não pensamos nos eventuais juízos, o registro adequado é do máximo interesse do paciente.
Enidio. Nos tribunais de Ética Médica sabemos que o registro adequado dos dados no prontuário é fundamental para a defesa do médico. Tal assertiva se aplica também na área cível e criminal?
Martinho. O colega deve se documentar e saber que está fazendo algo que pode ser visto no futuro por outras pessoas. Nós somos desleixados, o povo do Brasil é indulgente em não nos processar mais! Num hospital que trabalho, os prontuá-rios preenchidos pelos colegas são vergonhosos. O médico passa para fazer uma avaliação clínica no pré-operatório e escreve: ok para a cirurgia amanhã! Isso é avaliação médica? O que o juiz vai dizer se daquele caso chegar uma demanda judicial? Não há mais lugar para a onipotência e prepotência do médico. Estamos inseridos em um processo mais amplo. Aquele gesto médico absoluto e inquestionável acabou, mas os colegas não perceberam, porque trabalham demais; ganham pouco e não são bem informados. Tudo isso concorre para nossa obtusidade profissional.
Enidio. O Cremesp publicou a Resolução nº 90/2000, sobre a saúde ocupacional dos médicos, que trata da melhoria nas condições do plantão: limitações, conforto, condições de iluminação etc. Esse tipo de intervenção pode prevenir conflitos geradores de contenciosos judiciais?
Milton. A participação das entidades é tão importante quanto a conscientização dos próprios médicos. Muitas vezes, os médicos não usam seu poder de agente transformador da realidade e de cidadão no local de trabalho. É comum o médico se acomodar numa situação de trabalho que é ruim para ele e para pacientes.
Martinho. O artigo 24 do Código de Ética diz que se pode suspender as atividades, individual ou coletivamente, quando a instituição não oferecer condições mínimas para o exercício profissional. Ao constatar tal situação, o médico deve chamar o plantão administrativo do hospital, fazer registro das ocorrências, não se afastar do ambiente de trabalho e, se possível, comunicar à Promotoria Pública, pois se houver algum problema com o paciente nesse hospital, regra geral público, ninguém vai querer saber se foi decorrente das péssimas condições de trabalho.
Enidio. A medicina defensiva no contexto internacional reflete um aspecto muito negativo em relação ao assédio das companhias seguradoras e também de advogados especializados na “indústria do erro médico”. De quem é a culpa por essa situação?
Martinho. Nos Estados Unidos, o médico tem autonomia para dizer ao paciente: “pode me processar, a seguradora paga. No Brasil, o médico que atende uma consulta a menos de dez reais vai su-portar o pagamento de seguros? Nos EUA, um cirurgião cardíaco paga duzentos mil dólares anuais de seguro. Que cirurgião brasileiro ganha isso por ano? Será que a seguradora indenizará o paciente, o equivalente a uma consulta de R$ 6,00 ou R$ 8,00. Jamais trilharemos esse caminho, mesmo com a insistência das seguradoras ou de algum colega mais afobado que já fez seguro. No Rio Grande do Sul, recebíamos pelo menos 30 comunicações mensais de colegas processados, com pedidos de indenizações de até cinco milhões de reais. Criamos um Fórum Permanente em que discutíamos com a comunidade, o Ministério Público Estadual e Federal, Tribunal de Justiça, Sindicato Médico, Conselho Regional. Levávamos ao conhecimento dos para o desem-bargadores, dos juízes, dos defensores públicos o que é medicina e também tomávamos conhecimento das coisas que são do mundo real deles.
Milton. A indústria do erro médico nos EUA serviu para enriquecer várias pessoas, mas basicamente para encarecer a Medicina e não trouxe nenhum benefício a médicos e pacientes. Dificilmente um médico é processado se estabelece uma relação médico-paciente adequada e um bom relacionamento com a família. Um dos grandes problemas aqui é a excessiva ênfase dada ao “erro médico” por alguns veículos, seguindo interesses das seguradoras e criando um clima de desconfiança. Outro receio que tenho: o termo medicina defensiva supõe que o médico está se defendendo de quem? Do paciente? O médico tem de defender o pacien-te. Uma função importante das entidades e das lideranças médicas é aprofundar a discussão em torno do erro médico, esclarecer à sociedade que, em medicina, o profissional tem de tomar decisões sempre arriscadas; que nem sempre há certeza, mas uma alta probabilidade. O risco é diminuído pela base científica e pela capacidade do médico. Ao fazer quimioterapia para um câncer com 90% de chances de sobrevida, aqueles que não sobreviveram não foram vítimas de erro médico. Isso é diferente das situações de incompetência, imprudência e imperícia. Claro que também existem maus profissionais e a população não pode deixar de ser informada sobre isso.
Martinho. Temos que achar um outro nome mais adequado para que se entenda que medicina defensiva significa cidadania para o médico. Temos de nos precaver no âmbito legal. Por exemplo, no Consentimento Informado deve constar que o paciente está nos declarando a verdade. Em muitas circunstâncias, o paciente tem interesse em se dizer sadio quando não o é.
Milton. No Manual de Medicina Defensiva há con-selhos para o médico evitar o paciente de risco, dentre eles os seguintes: pacientes que recusam determinadas terapias por razões éticas ou religiosas como os Testemunhas de Jeová! Não considero ética essa recomendação. Se todos os médicos fizerem isso, quem vai atender a esses pacientes? Procuro ensinar aos meus alunos o contrário. O médico deve ter respeito profundo à diversidade religiosa, de opção sexual ou política. Isso é característico de uma sociedade democrática e uma das grandes responsabilidades do médico.
Martinho. Esse item foi escrito por um advogado. Concordo com o sr. em parte. Pacientes fumantes ou aqueles que não cumprem as prescrições do médico são problemas. Hi-pó-crates não vale mais! Estamos vivendo outro tipo de medicina.
Milton. Mas, e o paciente obeso que não consegue emagrecer? E o fumante que não consegue parar de fumar?
Martinho. Uma cirurgia estética em paciente que fuma quarenta cigarros por dia é problema na certa. Se ele não consegue parar de fumar, o médico tem direito de não operar.
Milton. Isso é a boa prática clínica, mas recusar-se a atender a um paciente que tem convicções religiosas diferentes é outra coisa.
Enidio. Em relação a esse exemplo, qual é sua opinião a respeito dos médicos que expõem a profissão à crítica, por meio de publicidades que oferecem resultados estéticos em cirurgias plásticas, transformando a medicina - que é uma atividade de meio - em atividade de fim?
Martinho. O Código de Ética, que é a nossa Bíblia e deve ser seguido, e a Codame contemplam isso. Uma pergunta aos leitores: o colega abriu o Código de Ética Médica para ler este ano? E no ano passado? O meu netinho não joga o videogame sem saber a regra, mas o médico entra nesse jogo sem conhecer o Código de Ética Médica.
Enidio. Em relação às condições de trabalho como fator determinante do aumento do risco de erro médico, qual seria a causa do grande número de denúncias contra Prontos-Socorros? O risco inerente dos Prontos-Socorros? Ou seria a má-formação e a inexperiência daqueles que estão iniciando a carreira? Porque são justamente esses que vão trabalhar nesses serviços, com os pacientes mais complexos e mais graves.
Martinho. Fato fundamental nos processos contra plantonistas de Prontos-Socorros é a sobrecarga de trabalho, em condições extremas. Regra geral, por serem públicas, essas instituições não estão equipadas corretamente. Certa vez levei a mesa do Tribunal de Justiça do Estado para numa noite visitar o Pronto-Socorro do Hospital de Porto Alegre, há dois anos. Foi uma experiência ímpar! Eles imaginavam que, ao chegar um cidadão com oito perfurações intestinais, o cirurgião fechava seis e deixava duas, por relapso. Porém, mudaram de opinião quando viram o médico fazendo cirurgias, enquanto se formavam as filas da lapa-rotomia, dos queimados, dos traumatizados de tórax. Viram que o médico tem de escolher quem fica no respirador ou, pior, quem sai dele. A realidade brasileira é perversa! É um desgaste, não é uma posição pacífica. Quando chega um paciente com mandado judicial para internar na UTI do hospital, quem deve fazer o enfrentamento da situação é o plantão administrativo e não o médico. Se ele for discutir com o Oficial de Justiça, poderá sair algemado do seu plantão. Para o juiz devemos perguntar o seguinte: quem o senhor quer que eu tire daqui? A sociedade não aparelha seu dispositivo de saúde, mas cobra desempenho do médico. Na Associação Médica do Rio Grande do Sul, ingressamos com meia dúzia de pedidos de sanidade mental de juízes e defensores públicos; pelas prepotências que cometem, eles não devem ser normais!
Enidio. Segundo o Manual de Medicina Defensiva, “o médico pertence a uma classe política desprotegida”. Isso desqualifica os esforços de alianças das entidades médicas com o Procon, com a Defesa do Consumidor, ONGs e com o próprio Ministério Público. Em São Paulo, o Cremesp tem alianças importantes na luta pela melhoria das condições de trabalho para médicos e, evidentemente, de atendimento à população. A propósito desse trabalho, houve uma mudança de paradigma na maneira como a sociedade encara a questão do erro médico. O problema também passou a ser entendido como um erro do sistema de saúde e da organização gerencial. Será que a classe médica é realmente desprotegida ou não utiliza seu potencial de organização?
Martinho. O médico precisa abandonar sua onipotência e aprender a dialogar, mas principalmente, deixar de ser ingênuo nas relações com a comunidade. Se ele ficar trancado no consultório, achando que se basta porque domina alguns conteúdos científicos, estará fragilizando-se cada vez mais. É triste para quem trabalha em associativismo ver que mais da metade dos médicos do Brasil não estão ligados a nenhuma entidade. O médico precisa se conscientizar de que é integrante da sociedade e que aquilo que ele faz ou sofre modifica o comportamento dessa sociedade. E a medicina defensiva, que é uma palavra tosca, tem o mérito de promover essa discussão e de despertar o médico para esse novo paradigma.
Milton. O médico deve utilizar sua capacidade e influência para atuar como agente de transformação. O caminho é buscar parcerias com a sociedade civil, com outras entidades profissionais e com o poder público, por meio das entidades.
Enidio. Em nome do Conselho, agradeço a participação dos três neste debate.
Enidio. Em nome do Conselho, agradeço a participação dos três neste debate.
Enidio Ilário é clínico geral, médico do Trabalho e conselheiro do Cremesp (SP)
Martinho Álvares da Silva é médico anestesiologista, conselheiro do Cremers (RS), diretor do Departamento de Assistência e Previdência (DAP) da Associação Médica Brasileira (AMB), ex-presidente da Associação Médica do Rio Grande do Sul, autor do livro “Medicina Defensiva”
Milton de Arruda Martins é clínico geral, professor titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP)