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Edição 21 - Outubro/Novembro/Dezembro de 2002

COM A PALAVRA

Carlos Alberto Pessoa Rosa

Armadilhas da verdade entre a ciência e o oráculo

“Melhor a mentira e o fingimento que nos oferecem a liberdade de criar, à verdade imposta que possibilita a prática de condutas inadequadas ou mesmo erradas.”

Carlos Alberto Pessoa Rosa*

Intuitivamente ou não, os gregos consideravam a medicina uma arte. Aproximá-la mais da mentira e do fingimento, inclinada mais para o poético que para a matemática, parecia-lhes razoável. No grande hospital de Asclépio, utilizava-se como instrumentos de cura tanto a poe-sia e a música quanto os ungüentos e os banhos. E bem sabiam eles que todo efeito benéfico tem lá seus efeitos colaterais, fosse em medicina ou em política. Havia um casamento quase que ingênuo entre a filosofia, a medicina e as artes.

À beira do leito, com forte senso de observação e uma terapêutica adquirida empiricamente, imbuído de um espírito sempre pronto a fazer o bem, o médico convivia diariamente com sua impotência. Se por um lado os curadores sempre foram olhados de um modo especial pela maioria, por outro, também não se livraram das penas dos filósofos e escritores quando absurdos eram cometidos, tornando-se, muitas vezes, personagens de crônicas jocosas. Apesar de poucos recursos, sabiam os médicos que a resposta à cura estaria no exato conhecimento da natureza humana, o que os tornava estudiosos perseverantes para, assim, atingir a sabedoria.

Os estudos bacteriológicos e genéticos, associados ao desenvolvimento tecnológico, trouxeram instrumentos para que a medicina pudesse ser atuada dentro de premissas mais técnicas, pelo menos no combate às infecções. Eufóricos com os resultados práticos obtidos, os médicos começaram a exigir um status de ciência. Muita petulância, sem dúvida. Alegria demais nos cega, é um fato. Mas era o estado em que nossos colegas se encontravam, envaidecidos com as descobertas. As técnicas conseguidas em pes-quisas biológicas ofereciam aos profissionais um meio para abordarem as doen-ças infecciosas. Porém, nem de longe esse fato nos permitiria imaginar uma medicina como fim, possuidora de uma identidade científica própria. Como desejar a verdade absoluta a partir de conhecimentos fragmentários, se pouco conhecemos do modelo sobre o qual nos debruçamos para tirar conclusões?

Além disso, devemos, como nos ensina Nietzsche, compreender que a verdade, por pretender ser verdadeira, não passa de ilusão ou mentira. Por isso a arte como ilusão, por não querer ser verdadeira, torna-se mais veraz. Melhor a mentira e o fingimento que nos oferecem a liberdade de criar, à verdade imposta que possibilita a prática de condutas inadequadas ou mesmo erradas. A verdade assim entendida nega o que a vida tem de mais rico, a multiplicidade, e tende a engessá-la em uma forma única, risco sempre presente, em todas as áreas.

Compreende-se que a impotência impulsione para a pesquisa, mas a humildade e a temperança devem acompanhar o processo. Saber tudo do nada, fragmentando o corpo humano em subespecialidades, nos distanciará cada vez mais, com certeza, da possibilidade de desvendarmos um modelo. Se atualmente vivemos rodeados de (in)verdades, cada qual acompanhada de vaidades, de feudos detentores do direito de seu uso, também nos defrontamos com o risco real da prática do caudilhismo. Bem que nos alertou Nietzsche... Ele mesmo afirmou que o mundo moderno distanciou pensamento e vida, deseja-se saber a qualquer preço.

O tempo é bom professor, mas nem sempre os alunos são dedicados. A história médica está repleta de exemplos que mostram a fragilidade de suas verdades. Quem não se recorda da verdade absoluta do uso de corticóide no choque séptico? Dos maravilhosos betabloqueadores que surgiram na praça? Dos inotrópicos que vieram substituir os digitálicos? É recente a grande máxima ginecológica da reposição hormonal universal. Algumas verdades foram provadas como mentiras e em seguida reafirmadas como verdadeiras, como ocorreu com o uso de isordil. Que riam de algumas condutas nossas no futuro. Mas deixemos registrado que sabíamos de nossas limitações.

Não corrigiremos a formação médica com a criação de regras. Quando muito elas darão uma falsa sensação de segurança aos profissionais e pacientes. Já presenciamos alguns modelos vestindo o sujeito errado. É o caso, por exemplo, de um paciente com hipotireoidismo não diagnosticado, sendo maravilhosamente bem-tratado de insuficiência cardíaca congestiva. Os conselhos devem primar pela reflexão ampla, não pelo reducionismo, um mal tão freqüente em nossos tempos. Estamos entre a ciência e o oráculo. Precisamos de instrumentos e da sensibilidade do homem. Um cientista poeta conhece o fingimento e as armadilhas das verdades.

Dos gregos aos dias atuais não evoluímos, pelo contrário, precisaremos desconstruir o discurso médico se quisermos crescer com liberdade, aceitando nossa impotência e nossas limitações. Deixar aflorar todo o fingimento e toda a mentira deverá ser nosso objetivo, se quisermos uma verdade não verdadeira a priori, com raízes na simplicidade e no bom senso; não na vaidade. Entristece-me ver a medicina amarrada e o profissional sem liberdade para descobrir que a mentira e o fingimento também curam.

*Carlos Alberto Pessoa Rosa é médico e escritor, membro das Sociedades Brasileiras de Clínica Médica, Cardiologia e de Médicos Escritores, autor dos livros “A cor e a textura de uma folha de papel em branco”, Cepe/1998, “Mortalis: um ensaio sobre a morte”, Livro Aberto/1998, entre outros.

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