CAPA
EDITORIAL (pág.1)
Ponto de Partida - Novo Código de Ética Médica reafirma o respeito ao ser humano
ENTREVISTA (pág. 4)
Uma conversa com o introdutor do ensino de Nutrologia nas escolas médicas do país
EM DEBATE (pág. 9)
Abortamento espontâneo: entender porque ocorre reduz o estresse associado à perda
CRÔNICA (pág. 12)
Ruy Castro e a biografia que escreveu sobre a "pequena notável"...
SAÚDE NO MUNDO (pág. 14)
O sistema de saúde português garante a melhoria significativa de saúde da população
AMBIENTE (pág. 18)
Conheça a rede mundial Saúde Sem Dano: mais de 50 países participam
SINTONIA (pág. 21)
Indústria de alimentos deve estimular o consumo de produtos saudáveis
EM FOCO (pág. 23)
Forças Armadas do Brasil e Força Expedicionária Brasileira
GIRAMUNDO (pág. 26)
Curiosidades da ciência e da história
PONTO COM (pág. 28)
Canal de atualização com as novidades do mundo digital
HISTÓRIA (pág.30)
A assepsia das mãos na prática médica
GOURMET (pág. 33)
Acompanhe a preparação de uma receita especial para a macarronada do domingo...
CULTURA (pág. 36)
Tide Hellmeister: artista de técnicas variadas, deixou obras expostas no Cremesp
TURISMO (pág. 40)
Registro de um passeio inesquecível pelos vilarejos franceses
CABECEIRA (pág. 46)
Confira as sugestões de leitura do médico cardiologista Adib Jatene
CARTAS (pág. 47)
Versões digitais do JC e da SM facilitam acesso e leitura
POESIA(pág. 48)
Explicación, de Pablo Neruda, no livro Barcarola (1967)
GALERIA DE FOTOS
TURISMO (pág. 40)
Registro de um passeio inesquecível pelos vilarejos franceses
La Roque-Gageoc
Dordogne: em busca do tempo perdido
Região francesa guarda o charme de antigamente em dezenas de vilarejos medievais, com direito a foie-gras, inacreditáveis escarpas e desfiladeiros cheios de bosques e cachoeira
Texto e fotos: Rodrigo Magrini*
Longe do glamour de Paris, a França guarda uma infinidade de cidades e vilarejos a serem explorados por quem não tem medo de se perder e experimentar um turismo diferente daquele divulgado pelas agências de viagem. Existe, sim, uma França aberta ao turista brasileiro e somos muito bem recebidos naquele país, que deve ser “saboreado” lentamente, acompanhado de um bom cálice de vinho e – por que não? – de suas maravilhosas águas minerais.
Sarlat-la-Canéda
Como se trata de um país pequeno, existem milhares de minúsculas cidades separadas por curtas distâncias. Na Dordogne, aconselho fazer um roteiro escolhendo as cidades maiores, o que nessa região significa, no máximo, 10 mil habitantes, para servirem de base por dois ou três dias, em razão da facilidade de encontrar hotéis. Uma vez tendo a base, pode-se alugar uma bicicleta para explorar os vilarejos vizinhos. Acostumada ao turismo, outra grande vantagem da França é a existência, em todas as localidades, de postos que dão orientações sobre hotéis e pontos de interesse histórico e de aventuras, com mapas detalhados e muitas dicas. Às vezes, em um dia, eu chegava a visitar cinco cidades tão pequenas que uma parada de 30 minutos era suficiente para conhecê-las. Outras vezes, era necessário ficar um dia inteiro perambulando, literalmente batendo pernas, por parques, jardins e pequenas fazendas abertas à visitação.
Em se tratando de foie-gras e nozes, fica difícil competir com Sarlat-la-Canéda ou simplesmente Sarlat. Com o maior número de fachadas medievais, renascentistas e do século XVII preservadas da Europa, é quase impossível não notar as inúmeras lojas dedicadas a essas iguarias espalhadas por suas ruas estreitas, pontuadas de cafés charmosos e restaurantes. Neles, o vai-e-vem dos garçons parece ser a única coisa que muda a rotina lenta dessa cidade de 10 mil habitantes, localizada no Sudoeste da França, mais precisamente no departamento de Dordogne, região de Aquitaine, também conhecida como Périgord.
Rocamandour
Sarlat ou Salers?
Começar a explorar essa região da França por Sarlat teria sido maravilhoso se não tivesse eu, devido ao péssimo francês – para não dizer ausente – , ter confundido a mim mesmo e às pessoas pedindo informações sobre Salers, outra cidade medieval.
Tudo bem. Acostumado a viajar por lugares ditos exóticos, como Laos, Indonésia e Camboja, achei que uns dias na civilizada e bem sinalizada França seria fácil e sem problemas. Mas o idioma... Depois de horas dirigindo, acabei encontrando Salers, cidade parada no tempo e cujo céu, forrado de nuvens carregadas, dava a impressão de se estar em um set de filmagem do século XIV. Com construções de pedra vulcânica, e sua característica cor negra, essa simpática cidadela acabou sendo o meu ponto de descanso no primeiro dia na Dordogne.
Após uma noite bem dormida, acordei, bem cedinho, com o barulho da chuva e me dei de presente uma caminhada com um velho guarda-chuva encontrado na portaria da hospedaria. A cidade minúscula com suas ruas tortuosas e escorregadias – e 500 habitantes sorteados pelo destino – esbanja charme e delicadeza. No meio da caminhada, ao avistar uma boulangerie (pequena padaria tipicamente francesa), parei e tive meu primeiro café com direito a pain au chocolat (massa de croissant com chocolate ao meio), olhando a chuva torrencial que lavava as ruas ainda escuras. Foram duas horas de espera, sentado numa velha banqueta de madeira desgastada, olhando as ruas através da vitrine. Foram duas horas, dois pains au chocolat, um pedaço de bolo de amêndoas e, vamos falar a verdade, uma fatia de pain au levain (pão artesanal à moda antiga, feito com fermento biológico) quentinho, com manteiga. Nunca agradeci tanto por ter chovido logo no início de um primeiro dia de viagem.
Optei por pegar a estrada rumo àquela que deveria ser minha porta de entrada na França: Sarlat! Doce ilusão... As estradas bem conservadas, cheias de curvas e bifurcações tentadoras, são muito bem sinalizadas. Com os guias de viagem na mão e uma curiosidade incalculável na cabeça, fui conhecendo dezenas de pequenas vilas medievais com inacreditáveis 200, 500, 1.000 habitantes, localizadas em escarpas e desfiladeiros cheios de bosques e cachoeiras. Essa região da França perde parte de sua população, todos os anos, devido à falta de oportunidades para os jovens. Foi assim que descobri a pequena Saint-Cirq-Lapopie. Equilibrada em um penhasco dando para o vale do Rio Lot, essa minúscula cidade de 200 habitantes localiza-se em torno da sua igreja medieval, cujas portas ficam abertas 24 horas por dia e os sinos despertam os habitantes para um novo dia – como vem ocorrendo há séculos, sem nenhuma mudança. Fiquei hospedado em um quarto na casa de uma senhora de Paris, que trabalhava no mercado financeiro e fez a opção de se mudar para a Dordogne.
Cultivando velhos hábitos: pão à moda antiga pode ser encontrado nas boulangeries, as simpáticas padarias francesas
Novos velhos hábitos
Enquanto me servia o café da manhã numa pequena varanda, ao som de Edith Piaf, sentada ao meu lado, a senhora explicava, com seu cigarro no canto da boca, como as cidades medievais daquela região estavam se tornando uma alternativa aos franceses que procuram paz, mudança de estilo de vida e preços baixos. Morar em cidade histórica tem lá suas vantagens e prazeres: conhecer gente nova, cultivar velhos hábitos, como hortas orgânicas, e produzir suas próprias comidas e compotas. Resgata, para essa parcela da população, um prazer que seus próprios familiares tiveram séculos atrás.
Sarlat-la-Canéda: maior número de fachadas medievais e renascentistas da Europa
Em um passeio de trinta minutos que fizemos pela cidade, ela distribuiu bonjours e sorrisos. Com seu inglês afrancesado, me contava baixinho o antigo emprego das pessoas que cruzavam nosso caminho: entre outros, ex-bancário, ex-engenheiro, ex-fiscal e ex-médica. Ex-médica? Olhei para trás novamente e me perguntei como será meu futuro. Depois, vi a pequena St-Cirq-Lapopie desaparecer pelo retrovisor enquanto minha alma ansiosa procurava a próxima placa em uma bifurcação pelas estradas da Dordogne.
Fui dirigindo calmamente, sendo ultrapassado por diversos ciclistas, parando de tempos em tempos para apreciar a paisagem ou fazer um piquenique nas diversas áreas de descanso ao longo das estradas. Foi assim que acabei encontrando o mais turístico de todos os vilarejos que visitei nessa temporada, Rocamandour. Com 700 habitantes, em sua maioria donos de lojas e de restaurantes, essa pequena cidade impressiona turistas e peregrinos que, desde o século XII, a visitam por curiosidade ou para pedir algo à Virgem Negra, na capela de Notre Dame. Os peregrinos ainda sobem seus 216 degraus de joelhos, assim como séculos atrás fizeram Carlos Magno, Leonor de Aquitania, Henrique II, da Inglaterra; São Bernardo e São Domingos, dentre outros famosos e anônimos devotos, à procura de uma graça ou perdão, visitando as inúmeras capelas e chegando à abadia beneditina localizada a 120 metros do desfiladeiro.
Vilarejo em St. Cirq-Lapopie
Apesar do cenário, deixei Rocamandour logo após ter subido as suas escadarias e visitado suas capelas. É difícil disputar um momento de paz no meio de tanta gente. Próxima parada: Collonges-la-Rouge, onde as pedras cinzas e pretas características do maciço central da França foram substituídas, nas construções, por arenito vermelho. Ele é que dá a característica das fachadas das casas desse vilarejo de 500 habitantes charmoso e elegante, habitado, em sua maioria, por idosos. Aí, exatamente no restaurante Salette, pude, em paz, saborear meu primeiro foie gras na França, finalizando com um sorvete de vanille. Como era verão, apesar de ser 20 horas, o jantar no pátio do restaurante foi iluminado pelos raios de sol debaixo da sombra de uma antiga árvore. Aqui reside uma maravilha francesa: a arte de se comer bem e lentamente, obedecendo as entradas, os pratos principais e as cerimônias que, naquele país, não estão relacionadas ao ato de ser chique e, sim, ao respeito à boa mesa e aos méritos dos seus incríveis e anônimos cozinheiros.
Je ne regrette rien
O povoado de Conque, de 400 habitantes, erguido em torno de sua fantástica abadia de Ste-Foy, do século XI, é parada obrigatória para quem faz o caminho de Santiago de Compostela pela rota francesa a partir de Le Puy-en-Valey, onde, no ano 962, o bispo local fez a primeira peregrinação àquela cidade espanhola. Curioso nessa cidade é o contraste da seriedade do estilo romanesco da abadia com os vitrais do artista abstrato francês Pierre Soulages, que criou um curioso choque de estilos, provando que é possível existir harmonia entre o antigo e o novo. A nave da igreja se eleva a incríveis 22 metros de altura, cuja circunvolução é possível desde que o turista não seja acrofóbico ou seria melhor dizer ironicamente, nesse caso, abissofobia? O caminho é muito estreito e longo. O mais triste, no meu caso, foi descobrir que, ao chegar ao final da volta da abadia, percorrida literalmente grudado nas paredes, era preciso retornar o caminho inteiro novamente, pois a entrada e a saída são feitas pela mesma porta. Mas vale a experiência e a sensação de estar em um lugar onde, há séculos, peregrinos buscam paz. Terminei a noite na varanda de um restaurante com vista para a igreja, comendo queijo, figos, pão e água, indulgência total ao som, novamente, de Edith Piaf.
Em seguida, fui, agora decididamente, para a cidade de Sarlat, onde cheguei num sábado de manhã, a tempo de aproveitar a feira semanal na Place de la Liberté. Lá, produtos típicos de Périgord, como nozes, alho roxo, fois gras e todo tipo de produto à base de carne de porco, seja fresco, defumado, seco, salgado, frito, assado ou cozido, são disputados pelos locais e pelos muitos turistas que visitam a região para saborear tais iguarias.
Foi com essa visão – e observando francesas desfilarem seus vestidos coloridos ao vento, segurando seus chapéus e cestas cheias, na grande praça medieval da cidade – que sentei a uma mesa. Ao estudar o mapa aberto, notei que durante os últimos dez dias havia passado várias vezes perto dessa cidade e dado voltas e voltas por toda a região. Rindo sozinho, com meus livros e guias, pedi mais uma água e, em vão, que o garçom tocasse na vitrola a música Non, je ne regrette rien (Não, não me arrependo de nada).
*Rodrigo Magrini é dermatologista em Bragança Paulista.