CAPA
PONTO DE PARTIDA (SM pág.1)
Editorial de Henrique Carlos Gonçalves aborda conflito de interesses da propaganda na Medicina
ENTREVISTA (SM pág. 4)
Fernando Reinach, premiado pesquisador, fala sobre biodiversidade em entrevista à SM
CRÔNICA (SM pág. 8)
Ignácio de Loyola Brandão descreve - com humor - a visita do médico para uma consulta doméstica...
SINTONIA (SM pág. 10)
A história da evolução do planeta está nas "mãos" dos micro-organismos, segundo o médico infectologista Stefan Ujvari
SOCIAL (SM pág. 15)
O esporte abre as portas para a cidadania e a dignidade de várias crianças e adolescentes carentes da Fundação Casa
CONJUNTURA (SM pág. 18)
Crianças obesas apresentam maiores riscos do excesso de peso também na vida adulta
DEBATE (SM pág. 21)
Paulo Seixas (SES) e Renato Antunes (Ameresp) discutem o papel da Residência Médica no país
SAÚDE (SM pág. 28)
O setor de saúde francês, público e privado, no atendimento da população e no exercício da Medicina
HISTÓRIA (SM pág. 31)
Embora tenha deixado de ser ditadura há quase três décadas, o Brasil não deve esquecer os horrores da época
CULTURA (SM pág. 36)
Doenças e sofrimento moldaram o conjunto da obra do pintor norueguês Edward Munch
HOBBY (SM pág. 40)
As telas do cirurgião Rubens Coelho Machado mostram todo seu talento e paixão também na arte do pincel
TURISMO (SM pág. 43)
Convidamos você a dar uma volta fantástica ao passado, viajando conosco ao sudeste asiático
CARTAS (SM pág. 47)
Acompanhe os comentários dos leitores sobre a edição anterior da Ser Médico
POESIA
Texto de Luís Vaz de Camões encerra esta edição da SM com emoção e realismo
GALERIA DE FOTOS
CRÔNICA (SM pág. 8)
Ignácio de Loyola Brandão descreve - com humor - a visita do médico para uma consulta doméstica...
A visita do médico, um ritual
Por Ignácio de Loyola Brandão*
Meu pai colocava paletó e gravata e saia a pé. Claro, não tínhamos carro, poucos tinham, a não ser os ricos, que não eram muitos. Os médicos tinham, mas pela necessidade, para poder visitar pacientes. Só se visitava paciente muito velho, que não podia ir ao consultório, ou muito mal de saúde (claro). Ou então importantes como o juiz, o prefeito, o padre, o promotor, algum professor da faculdade de odontologia. Não era para todos que o médico usava o carro. Em geral, caso do meu pai, combinava-se um táxi, ou carro de aluguel, para levá-lo à casa. Maneira de se economizar gasolina, em tempos difíceis. A guerra tinha terminado há pouco na Europa, mas por aqui ainda havia consequências, como dizia meu pai. E eu não sabia o que consequências queria dizer.
Se houvesse alguém em consulta, meu pai esperava, às vezes demorava, depois ele entrava, acertava a visita e ia ao ponto marcar o táxi. Nenhum problema, em dois minutos o carro conduzia o médico a minha casa. Mas até ele chegar, em casa havia uma série de providências que envolviam minha mãe, eu e meu irmão e alguma vizinha. Era a preparação da casa. Abriam-se todas as janelas, menos a do quarto do doente. Doentes não podiam ficar sujeitos a golpes de vento ou a uma súbita corrente gelada. Como entender correntes geladas numa cidade como Araraquara, onde as temperaturas oscilavam entre 30 e 35 graus normalmente? Luz também fazia mal, portanto, o quarto ficava na penumbra. Fechava-se a porta para os barulhos da casa não incomodarem. Hoje fico imaginando aquele ar parado, infectado de germes ou bactérias ou seja lá o que fosse.
Limpava-se o chão, encerava-se com escovão, lavavam-se as janelas, limpava-se todo o pó, colocavam-se toalhinhas sobre os móveis, o rádio, os criados-mudos e um vaso de flores sobre a mesa. Todos tinham jardins com rosas, camélias, margaridas, dálias e crisandálias. Em casa havia uma flor rara, a magnólia, menina dos olhos de minha mãe. Quando o médico vinha, ela se dignava a cortar uma, para colocar num vaso e exibir na sala de visitas, a de entrada, a principal de todas as casas. As salas de visita desapareceram da arquitetura moderna. Os pobres colocavam nos vasos maria-sem-vergonha, peido-de-velha (uma flor do campo, amarela, bonita, fedidinha) ou cravo-de-defunto, que é o que dava no mato, de graça.
No quarto, a melhor cadeira da casa, para o doutor se sentar. Uma bacia de ágate, uma toalha de rosto limpa e sabonete Gessy ou Palmolive, que se abria na hora, para ele ver que não era usado. Havia médicos que iam até o banheiro lavar as mãos na torneira, preferiam água corrente. Outros desfrutavam a mordomia (palavra que nem se sonhava existir na época) da bacia para deixar clara a diferença entre médicos e mortais. Alguns eram mesmo mortais, estavam à beira do abismo, mais para lá do que para cá.
As crianças eram retiradas das proximidades, o momento era sério. Iam para o quintal, para a casa de uma vizinha solícita ou para a casa da avó. A gente preferia correr para a rua, momento de liberdade. Fugíamos porque havia a possibilidade de o médico querer dar injeção na gente. Sei lá, sempre pensávamos nisso em relação a eles. Os médicos tinham uma maletinha de formato curioso, diferente. Dela retiravam uma jaqueta, muito parecida com os guarda-pós usados em viagens de automóvel ou de trem. E um palito de sorvete para examinar a garganta, coisa que eu odiava, me fazia vomitar. O mais importante era o estetoscópio para ouvir. Naquele tempo eu não sabia para ouvir o quê, mas ele conferia ao médico um mistério e um poder enormes. Então, vinha a receita, o lavar as mãos, o café com bolo, os cuidados a se tomar. O carro de aluguel estava esperando para levar o doutor embora, enquanto meu pai corria à farmácia para aviar a receita. Sempre achei curiosa essa palavra aviar. Tinha algo a ver com ave. Eu ia junto, sempre esperava poder olhar a gaveta de camisinhas, coisa que me excitava, já que só eram vendidas aos maiores e num canto, meio escondido.
Mas o melhor da profissão da medicina era quando as meninas topavam brincar de médico. Elas eram as pacientes e a gente fazia um estetoscópio com barbante ou fio de ferro e duas latinhas de massa de tomate. Mandávamos que tirassem o vestido, e algumas tiravam, outras só levantavam a saia. Examinávamos atentamente, éramos profissionais conscientes, víamos com muito cuidado as coxas, os peitinhos que ainda não davam sinais de crescer, a bundinha na qual aplicávamos, de mentira, uma injeção demorada com a agulha de tricô roubada de uma tia velha. As pacientes, muito doentes, adoravam as injeções. E não é que saravam?
Ignácio de Loyola Brandão é escritor e jornalista e tem 31 livros publicados entre romances, contos, crônicas, viagem e infantis. Ganhou o Prêmio Jabuti como o melhor livro de ficção de 2008 com O Menino Que Vendia Palavras. Escreve no jornal O Estado de S. Paulo.