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Assédio Moral
Assédio MoralAto deliberado de humilhação ou uma "política da empresa" para livrar-se de trabalhadores indesejados.
Margarida Barreto*
As mudanças nas formas de produzir e organizar o trabalho marcaram as duas últimas décadas do século passado, trazendo conseqüências como a quebra de direitos sociais, reformas no contrato laboral, terceirizações e quarteirizações, crescimento do setor informal, aumento do subemprego, precarização do trabalho, desemprego massivo e aumento da miséria urbana. As repercussões na vida dos trabalhadores foram imediatas, passando a exigir mais eficiência técnica, espírito competitivo e agressivo, flexibilidade e polifuncionalidade. A reestruturação e conseqüente enxugamento da máquina empresarial exige trabalhar mais com menos pessoas. Nesse contexto, aparece o assédio moral que transversa toda a jornada, em íntima relação com os pensamentos, emoções e afetos.
Assediar significa uma “operação” ou conjunto de sinais que estabelece um cerco com a finalidade de exercer o domínio. Conhecido também como violência moral ou tortura psicológica, envolve atos e comportamentos agressivos, na maioria das vezes, por parte de um superior hierárquico contra uma ou mais pessoas. Visa desqualificá-la e desmoralizá-la profissionalmente, além de desestabilizá-la emocionalmente, tornando o ambiente de trabalho desagradável e hostil, para forçá-la a pedir demissão. Pressupõe exposição — prolongada e repetitiva — a condições de trabalho que vão sendo degradadas ao longo da jornada. Predominam relações desumanas e aéticas, marcadas por manipulações contra um trabalhador ou, mais raramente, entre os próprios pares.
Os mediadores da agressão podem praticá-la como ato individual deliberado ou por constituir uma “política da empresa”, visando livrar-se dos trabalhadores inconvenientes. Na lista dos agredidos estão os adoecidos, sindicalizados, aqueles em final de estabilidade pós-acidente do trabalho ou pós-parto, os acima de 40 anos, os com altos salários, os criativos, os com alto senso de justiça e sensíveis ao sofrimento alheio; os questionadores das políticas de metas inatingíveis e da expropriação do tempo com a família; aqueles que fazem amizades facilmente e dominam as informações no coletivo.
Despidos de culpa, os agressores pensam que estão cumprindo da melhor forma possível seu dever de “comandantes”. Além de ameaças e gritos, também utilizam-se de práticas cruéis se o subordinado detém maior conhecimento que o seu. Outras vezes usam estratégias de sedução, cooptação e pequenas corrupções. Os que contestam sua ordem passam a ser perseguidos até mesmo após a demissão, quando solicitam referências para um novo emprego.
Ser assediado moralmente constitui uma experiência subjetiva que interfere em sentimentos e emoções, altera o comportamento, que agrava ou desencadeia doenças podendo, inclusive, culminar com a morte da vítima. O cerco contra um trabalhador ou uma equipe pode ser explícito ou não, manifestando-se em risos, comentários maldosos, apelidos estigmatizantes, agressões verbais, ameaças, empurrões, humilhações, constrangimentos e coações públicas, que ferem a dignidade e identidade do outro.
O trabalhador pode ser isolado, suas tarefas passam a ser subestimadas e desqualificadas minando, aos poucos, a sua autoconfiança. Se a vítima passa a sentir-se culpada e se isola, a ira do agressor aumenta, justificando atos mais explícitos. O trabalhador passa a ouvir “conselhos” de que o melhor a fazer é pedir demissão.
Risco invisível
No Brasil, a discussão do assédio moral é recente, mas vem dando visibilidade ao que até então aparecia como “risco invisível” no mundo do trabalho. Uma tese de mestrado defendida em maio de 2000 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), Departamento de Psicologia Social, denominada “Uma jornada de humilhações” (Barreto, 2000), realizou pesquisa de campo sobre o assunto. Entre março de 1996 e julho 1998, foram entrevistadas 2.072 pessoas (1.311 homens e 761 mulheres). Realizada junto ao Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas, Plásticas, Farmacêuticas e Simi-lares de São Paulo, abrangeu trabalhadores de 97 empresas de grande e médio porte, incluindo multinacionais. Do universo pesquisado, 42% (494 mulheres e 376 homens) relataram experiências de humilhações, constrangimentos e situações vexatórias repetitivas no local de trabalho.
A pesquisa revelou que as mulheres são mais humilhadas que os homens e que as reações são diferentes conforme o gênero. Nas mulheres predominam emoções como ressentimentos, vontade de chorar, isolamento, angústia, ansiedade, alterações do sono e insônia, sonhos freqüentes com o agressor, alterações da memória, distúrbios digestivos e náuseas, diminuição da libido, cefaléia, dores generalizadas, palpitações, hipertensão arterial, tremores e medo ao avistar o agressor, ingestão de bebida alcoólica para esquecer a agressão, pensamentos repetitivos, entre outros. Para os homens, a sensação de fracasso é acentuada e os pensamentos tornam-se confusos e repetitivos. Isolam-se e, por vergonha, evitam comentar o acontecido com a família ou amigos. Aumenta o uso de drogas, principalmente o álcool. Sobressai o sentimento de inutilidade, verbalizadas em expressões como “objeto”, “um ninguém”, “um lixo”,“um zero”, “um fracassado”. Predominam quadros de características depres-sivas, precordialgia, hipertensão arterial, dores generalizadas, dispnéia, isolamento, irritabilidade e suscetibilidade. Todos em algum momento tiveram pensamentos suicidas e 18,3% tentaram suicídio, revelando a dor masculina como desesperadora e devastadora.
Erros Imaginários
Entre os atos do agressor, a pesquisa apontou o predomínio de instruções confusas e imprecisas (65%); bloqueio ao trabalho e referência de erros imaginários (61%); fazer de conta que o outro é invisível ou não existe (55%) e solicitar trabalhos urgentes para posteriormente jogá-los no lixo ou deixá-los na gaveta, sem qualquer utilidade (49%). Outras vezes, faz o trabalhador realizar tarefas abaixo da sua capacidade profissional, como servir cafezinho, limpar banheiro (44%). São freqüentes os comentários maldosos em público (41%), assim como não cumprimentar (38%), impor horários injustificados e forçar o trabalhador a pedir demissão (35%), impedir de almoçar ou conversar com um colega, disseminando boatos que o trabalhador está doente e com problema mental ou familiar (30%). Outra prática comum é a retirada do material necessário à execução do trabalho como fax, computador, telefone, isolando e separando-o do convívio com os colegas.
Médicos na “lista”
Atualmente, a pesquisa está sendo realizada em âmbito nacional, envolvendo trabalhadores de empresas privadas e públicas de diferentes categorias. Dados preliminares apontam para um índice nacional de 33% de assédio moral, com variações segundo a região. Na categoria médica, há relatos de assédio moral a colegas que trabalham em medicina de grupo, empresas privadas, públicas e até mesmo, na academia. Uma médica desviada de funções tinha de carregar malotes de 60 quilos. Um outro colega foi colocado na portaria da empresa para atender pessoas.
Após a divulgação da pesquisa, foram criados mais de 40 projetos de lei que tramitam nas instâncias municipais, estaduais e federal, que pre-v-êem a penalização do agressor. Algumas leis foram sancionadas, sendo o primeiro, o município Iracemápolis, seguido de Cascavel. Desde janeiro deste ano, o município de São Paulo já conta com sua lei. As ações são importantes ferramentas legais, porém, insuficientes para coibir ou erradicar o assédio moral no local de trabalho. É necessário planejar e transformar a atual organização do trabalho. A legislação trabalhista imputa ao empregador o dever de garantir condições de trabalho adequadas a seus trabalhadores.
Nesse sentido, é de sua responsabilidade pen-sar em múltiplas ações que identifiquem as causas da violência, permitindo intervir na organização, visando erradicar ou eliminar suas raízes. Essas ações devem ser planejadas e considerar que as conseqüências da violência moral podem não ser imediatas, mas podem motivar um acompanhamento médico ou psicológico prolongado.
*Margarida Barreto é médica ginecologista e do Trabalho, pesquisadora do Núcleo de Estudos Psicossociais de Exclusão e Inclusão Social (Nexin-PUC/São Paulo), assessora técnica do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas, Plásticas, Farmacêuticas e Similares de São Paulo.