CAPA
PONTO DE PARTIDA (SM pág. 1)
Cremesp e Uniad, à frente do Movimento Propaganda Sem Bebida, levam à Brasília 600 mil assinaturas pela aprovação do PL 2733
ENTREVISTA (SM pág. 04)
Acompanhe uma conversa franca e informal com o presidente do CNPq, Marco Antonio Zago
CRÔNICA (SM pág. 08)
A síndrome da hipocondríase dos terceiranistas de Medicina comprovadamente existe... por Moacyr Scliar
MEIO AMBIENTE (SM pág. 10)
A (difícil) convivência da nossa saúde - física e mental - com o trânsito caótico da cidade
SINTONIA (SM pág. 15)
A omissão terapêutica a pacientes terminais sob o ponto de vista jurídico
DEBATE (SM pág. 18)
Em discussão a relação do médico com o adolescente. Convidadas: Maria Ignez Saito e Albertina Duarte
COM A PALAVRA (SM pág. 26)
Chamado de bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis é analisado por José Marques Filho
HISTÓRIA (SM pág. 30)
Arquivo histórico da Unifesp: acervo surpreende pela diversidade de peças e documentos
ACONTECE (SM pág. 32)
Engenhocas de muita utilidade e outras nem tanto assim... confira as idéias patenteadas do Museu das Invenções. Ele existe!
CULTURA (SM pág. 35)
Exposição de Pets gigantes às margens do Rio Tietê conscientiza sobre preservação da água
GOURMET (SM pág. 38)
Prepare a mesa: você vai saborear um cuscuz marroquino fácil (mesmo!) de fazer
TURISMO (SM pág. 42)
Tranquilidade, coqueiros à beira-mar, belas praias e paisagens. Agende sua próxima viagem de férias para este paraíso...
POESIA
Gregorio Marañon, médico e escritor espanhol, fecha esta edição com simplicidade e emoção...
GALERIA DE FOTOS
COM A PALAVRA (SM pág. 26)
Chamado de bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis é analisado por José Marques Filho
Machado de Assis
As doenças do bruxo do Cosme Velho
Por José Marques Filho*
Uma personalidade literária universal do porte de Machado de Assis motivou, a partir da sua morte, rios de páginas sobre suas doenças e as influências que elas tiveram em sua obra. Diversos autores, incluindo médicos, freqüentemente extraem citações sobre doenças e medicina de seus contos e romances.
Machado de Assis faleceu na madrugada de 29 de setembro de 1908, cercado por Mario de Alencar, José Veríssimo, Euclides da Cunha, Coelho Neto, Raimundo Correia e Rodrigo Otávio, seus companheiros mais chegados. Consta como causa da sua morte uma lesão neoplásica em sua língua. Foi decretado luto oficial no país. Depois de embalsamado pelo professor de medicina legal, Afrânio Peixoto, e tirada a máscara de gesso pelo pintor Rodolfo Bernadelli, o corpo permaneceu primeiro na sala de visitas da casa no Cosme Velho e, a partir das 19h30, na Academia Brasileira de Letras, por onde passou uma multidão. Durante o enterro, na tarde do dia seguinte, Rui Barbosa fez o discurso de despedida.
Joaquim Maria Machado de Assis, nasceu em 21 de junho de 1839, filho de um humilde pintor e dourador, e de uma lavadeira portuguesa. Nasceu no Morro do Livramento, no agonizante período regencial brasileiro de transição política e agitações. O Rio de Janeiro era uma pequena cidade suja, com suas ruas estreitas, raramente calçadas, e lampiões a gás. Entre as casas humildes destacavam-se com imponência colonial as grandes quintas dos senhores do Império. Na quinta da viúva Maria José de Mendonça Barroso, sua madrinha e protetora, o mulato pobre Joaquim Maria passaria boa parte da primeira infância. Do contraste entre o sobradão e a casa humilde dos pais nasceu a inclinação à fidalguia presente em sua obra e o desprezo à pobreza, a ponto de procurar esconder as origens vida afora.
Teve uma vida de liberdade e de rondas pelos bairros cariocas, até casar-se em 1869 com a portuguesa Carolina de Novais, irmã de seu amigo e poeta Faustino Xavier de Novais. Sua vida transcorreu metódica: leitura e trabalho intelectual, além do burocrático como funcionário público. Atormentado por problemas de saúde e pelo complexo de inferioridade devido a sua origem, fez da literatura uma válvula de escape.
Todos os seus biógrafos fizeram “diagnóstico” de epilepsia, cujas crises freqüentes foram testemunhadas por alguns amigos, sendo um dos episódios registrados por um fotógrafo do Rio antigo. Provavelmente a epilepsia teve início na infância, fato declarado pelo próprio escritor, quando do primeiro ataque depois do casamento – uma crise generalizada tônico-clônica. Ele disse sentir quando criança “umas coisas esquisitas” que não haviam se repetido até aquela data. É possível, segundo o médico e escritor Peregrino Júnior, que Machado de Assis não tivesse tido até então uma crise típica. O episódio na idade adulta iniciou uma tortura em sua vida. Ele descreveu suas crises epilépticas como “fenômenos nervosos”, “ausências” ou “minha doença”.
O jornalista e poeta Carlos de Laet assistiu a uma crise e a descreveu: “... quando de nós se acercou o Machado e dirigiu-me palavras em que não percebi nexo. Encarei-o surpreso e achei-lhe demudada a fisionomia. Sabendo que de tempos em tempos o salteavam incômodos nervosos, despedi-me do outro cavalheiro, dei o braço ao amigo enfermo, fi-lo tomar um cordial na mais próxima farmácia e só o deixei no bonde das Laranjeiras, quando o vi de todo restabelecido, a proibir-me que o acompanhasse até em casa”. O médico e professor da Unicamp, Carlos Alberto Mantovani Guerreiro, utilizando conceitos atuais, refere que as crises de Machado de Assis cursavam com alterações de consciência, automatismos e confusão pós-crítica. E, baseado na associação da emissão de palavras sem nexo, sugeriu o diagnóstico de crises parciais complexas, secundariamente generalizadas, provavelmente originadas no lobo temporal direito.
Há referências de que Machado de Assis consultou Miguel Couto, grande clínico e professor carioca, e que tomou brometo de potássio – droga utilizada à época para tratamento da epilepsia. Parece que a droga não foi eficaz, causando efeitos indesejáveis, e por isso descontinuou o tratamento. Mas ele raramente aludia à doença e nunca escrevia seu nome, ocultando-a até de amigos íntimos. A fobia pela palavra epilepsia era tanta que a excluiu de Memórias Póstumas de Brás Cubas, embora a tenha deixado escapar na primeira edição da obra, ao descrever o padecimento de Virgília diante da morte do amante: “Não digo que se carpisse; não digo que se deixa-se rolar pelo chão, epiléptica...”. Nas edições seguintes a frase foi substituída por: “Não digo que se carpisse; não digo que se deixa-se rolar pelo chão, convulsa...”. Quando alguém notou certa vez a dificuldade com que ele falava devido a mordeduras na língua, procurou justificá-la como “estas aftas! estas aftas!”
O temperamento do bruxo do Cosme Velho pode ser explicado pela personalidade epileptóide. Embora nem sempre irritado, o epiléptico mostra-se freqüentemente apático, deprimido e triste, com plena consciência de suas dificuldades sociais. Moacyr Scliar afirma que há numerosas referências a problemas mentais na obra machadiana, grande parte dela escrita com as “tintas da melancolia”. Machado de Assis sofria também de gagueira e de um distúrbio intestinal, referido por biógrafos como colite crônica, com associação a distúrbios psicológicos. Com o agravamento da enfermidade, acentuaram-se nas obras da última fase algumas características psicológicas do autor: negativismo, espírito de destruição, tristeza e melancolia. A tendência à depressão pode ter se pronunciado nos últimos anos devido à perda visual, provavelmente por retinite, além da morte de sua esposa, em 1904.
Durante séculos foram atribuídas à epilepsia características psíquicas de anormalidade. Entre os preconceitos que sobrevivem acerca da doença, há a opinião que o epiléptico tem uma personalidade mórbida. Mas grandes nomes portadores de epilepsia se destacaram nas artes, política, religião, filosofia, demonstrando que a doença não afeta a inteligência ou a capacidade criativa. Mas identificam-se características comuns como depressão, ansiedade, pessimismo e sintomas visuais. Manifestações epileptiformes interferiram (ou contribuíram!) nas obras de artistas como o pintor Van Gogh e o escritor Dostoiévski e, de forma mais sutil, em Flaubert e Machado de Assis. A literatura parece ser a atividade artística onde a epilepsia encontra terreno mais fértil. Nas obras de Dostoiévski há mais dados sobre a personalidade epiléptica do que em muitas monografias feitas com questionários, testes e correlações estatísticas. Em suas cartas, romances e novelas o escritor russo descreveu várias características da doença como, por exemplo, o estado de sonho, a percepção anormal do tempo, múltiplas nuances de déjá vu, atividades automáticas prodrômicas, tremor pós-crítico, pensamento forçado, fuga de idéias e o sentido de se tornar psicótico.
A loucura machadiana
Machado de Assis aborda o tema da loucura de maneira mais específica na curtísima obra O Alienista, de 1882. O conto tem como cenário a cidadezinha de Itaguaí, em “tempos remotos”, na qual chega o doutor Simão Bacamarte. Lá ele funda um estabelecimento para alienados, que começa logo a receber hóspedes. Bacamarte dedica-se a rotular as doenças de que são portadores os pacientes, mas seu objetivo é descobrir a causa última da enfermidade mental e o “remédio universal” para a mesma. Ele constata que o problema da loucura é maior do que pensava: “A loucura, como objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”. O poder do alienista chega ao máximo: interna dezenas de pessoas, inclusive a própria esposa. Mas um perturbador raciocínio lhe ocorre: se a loucura é tão disseminada, o hospício deveria ser reservado, não para os enfermos, mas para os sãos.
Para Adalberto Trapicchio, Machado de Assis faz nesse conto uma sátira ao saber médico e psiquiátrico. Além de possuir valor literário inestimável, O Alienista pode ser considerado como a primeira obra da antipsiquiatria brasileira. O escritor também percorre a loucura nos contos A segunda vida, O enfermeiro e A causa secreta, entre outros. Encarnação de uma loucura particular, flagrante exemplo de uma personalidade dividida é o personagem do conto O espelho, cujo subtítulo é Esboço de uma nova teoria da alma humana.
Profundo conhecedor do coração humano, Machado de Assis desenha seus retratos imortais com diferentes tons e matizes. Suas obras caracterizam-se por um triste e velado humor, delicada sondagem psicológica e o requinte de expressão. O conto machadiano é uma arte de pormenores sutis, em que há o encaixe da simplicidade, do humor e da reflexão. Assim como Simão Bacamarte, o maior escritor brasileiro morreu sem filhos. Deixou o legado de seus escritos imortais! Eternos como a Academia Brasileira de Letras e ele próprio, “o bruxo do Cosme Velho”.
Frases
Atormentado por problemas de saúde e pelo complexo de inferioridade devido a sua origem, fez da literatura uma válvula de escape.
O conto machadiano é uma arte de pormenores sutis, em que há o encaixe da simplicidade, do humor e da reflexão
* José Marques Filho é reumatologista e conselheiro do Cremesp