CAPA
PONTO DE PARTIDA (SM pág. 1)
Cremesp e Uniad, à frente do Movimento Propaganda Sem Bebida, levam à Brasília 600 mil assinaturas pela aprovação do PL 2733
ENTREVISTA (SM pág. 04)
Acompanhe uma conversa franca e informal com o presidente do CNPq, Marco Antonio Zago
CRÔNICA (SM pág. 08)
A síndrome da hipocondríase dos terceiranistas de Medicina comprovadamente existe... por Moacyr Scliar
MEIO AMBIENTE (SM pág. 10)
A (difícil) convivência da nossa saúde - física e mental - com o trânsito caótico da cidade
SINTONIA (SM pág. 15)
A omissão terapêutica a pacientes terminais sob o ponto de vista jurídico
DEBATE (SM pág. 18)
Em discussão a relação do médico com o adolescente. Convidadas: Maria Ignez Saito e Albertina Duarte
COM A PALAVRA (SM pág. 26)
Chamado de bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis é analisado por José Marques Filho
HISTÓRIA (SM pág. 30)
Arquivo histórico da Unifesp: acervo surpreende pela diversidade de peças e documentos
ACONTECE (SM pág. 32)
Engenhocas de muita utilidade e outras nem tanto assim... confira as idéias patenteadas do Museu das Invenções. Ele existe!
CULTURA (SM pág. 35)
Exposição de Pets gigantes às margens do Rio Tietê conscientiza sobre preservação da água
GOURMET (SM pág. 38)
Prepare a mesa: você vai saborear um cuscuz marroquino fácil (mesmo!) de fazer
TURISMO (SM pág. 42)
Tranquilidade, coqueiros à beira-mar, belas praias e paisagens. Agende sua próxima viagem de férias para este paraíso...
POESIA
Gregorio Marañon, médico e escritor espanhol, fecha esta edição com simplicidade e emoção...
GALERIA DE FOTOS
DEBATE (SM pág. 18)
Em discussão a relação do médico com o adolescente. Convidadas: Maria Ignez Saito e Albertina Duarte
Medicina do adolescente
Segurança, autonomia, privacidade e confidencialidade no atendimento aos jovens
A relação médico-paciente adolescente envolve aspectos complexos do desenvolvimento biopsicossocial, próprios dessa etapa da vida em que as pessoas passam por profundas mudanças. A assistência implica uma abordagem diferenciada em relação à prevenção que irá moldar as posturas de cuidados com a saúde para o resto de suas vidas. A atenção médica envolve questões delicadas como a gravidez precoce, o direito do adolescente capaz à confidencialidade, a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e o uso de drogas, entre outras. No Estado de São Paulo os serviços especializados começaram a se estruturar na década de 1970 e, hoje, há uma rede de trabalho considerável, embora muito ainda precise ser feito, tanto para garantir maior cobertura quanto para buscar mudanças no âmbito da legislação que promovam a proteção da saúde dos adolescentes.
Para discutir estes e outros aspectos do atendimento, reunimos neste debate a Livre Docente pelo Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da USP e coordenadora da Unidade de Adolescentes do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas, Maria Ignez Saito; e a coordenadora do Programa do Adolescente da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo e, também, do Ambulatório de Ginecologia da Adolescência do Hospital das Clínicas, Albertina Duarte Takiuti. O encontro foi coordenado pelo pediatra Clóvis Francisco Constantino, conselheiro do Conselho Federal de Medicina (CFM) por São Paulo e do Cremesp, presidente do departamento de Bioética da Sociedade Brasileira de Pediatria e médico do Hospital do Mandaqui.
Clóvis Constantino entre Albertina Duarte e Maria Ignez Saito
Veja a seguir os principais pontos discutidos sobre o tema:
Clóvis Constantino: Hoje, no âmbito da saúde, a adolescência se caracteriza como um período da vida de grande vulnerabilidade, merecendo, portanto, atenção multiprofissional e serviços especializados. Inicialmente, como podemos definir a adolescência ou o adolescente?
Maria Ignez Saito: Os olhares para essa definição são muitos, desde o da Medicina, passando pelo Direito, Filosofia e Antropologia. Para a Antropologia, a adolescência está relacionada aos ritos de passagem; já para o Direito, à maioridade e minoridade. Para a área da saúde pode ser definida como uma época de profundas transformações biopsicossociais sujeitas a grande vulnerabilidade e, portanto, a riscos. Enquanto médicos, nos pautamos pela indicação da Organização Mundial da Saúde (OMS) que considera adolescentes os indivíduos entre 10 e 20 anos incompletos. No Direito, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, suas propostas se iniciam aos 12 e terminam aos 18 anos.
Albertina Duarte: Nessa fase a pessoa passa por profundas mudanças na diferenciação entre o corpo infantil e o adulto. É fundamental que o adolescente goste da auto-imagem, pois se ele tiver dificuldades nesse sentido já temos uma situação de risco. Na construção de novos relacionamentos, o adolescente entrará em situações de conflito e vulnerabilidade. Para a entrada no mundo adulto, ele perde a imagem infantil. Há uma mudança na visão que ele tem dos pais infantis, que passam a ser vistos como adultos. O adolescente deve possuir instrumentos para desenvolver sua entrada neste mundo novo, com um corpo novo e relacionamentos novos. Ele vai enfrentar grandes desafios sociais, sendo necessário ter esperança de futuro para não sofrer tantos impactos em relação aos riscos. Temos de trabalhar multiprofissional e intersetorialmente dentro de uma visão sobre o que o adolescente perdeu, o quanto ficou vulnerável e o que encontrou e ganhou nesse novo mundo.
Clóvis: Por séculos, os adolescentes constituíram um grupo ao qual não se dedicava muita atenção a sua saúde. Somente a partir do século XIX começaram a ser criados, na Europa, alguns serviços especializados até chegar a uma proposta de assistência integral. Em nosso país, com a pioneira colaboração das senhoras, os serviços começaram a se formar de maneira sistematizada e, hoje, a adolescência constitui uma grande área da Medicina. Quais são as situações mais delicadas em relação à abordagem da assistência multiprofissional aos adolescentes?
Maria Ignez: Por um lado existem os riscos e, por outro, toda uma proposta de construção do sujeito definitivo a partir da adolescência. Os distúrbios que se evidenciam nessa fase como a obesidade, por exemplo, podem vir da infância, mas se cristalizam na adolescência. Os distúrbios emocionais e a questão da Aids tornaram-se importantes questões de saúde. A adolescência começou a ser estudada com o psicanalista Stanley Hall, o primeiro autor a descrever as tensões próprias da adolescência, como a questão da sexualidade e da criminalidade juvenil. Uma premissa básica é a de que a adolescência vem antes de qualquer doença e não podemos, de nenhuma forma, desestruturar o indivíduo ou separá-lo em alguns sintomas ou doenças. A assistência no Brasil se consolidou de forma multiprofissional, pois muitos serviços surgiram ligados às universidades. É importante que o atendimento seja dado frente a rígidos princípios éticos, baseados no respeito à autonomia, à privacidade e à confidencialidade da relação, conforme preceitua o Código de Ética Médica. Devemos enfocar a prevenção, embora esta não deva ser voltada apenas à atenção primária.
Albertina: A adolescência é um momento de sonhos, esperanças e mudanças nos quais a prevenção é fundamental. É preciso uma proposta coletiva de acolhimento, pois a família e a escola já não bastam. São necessários espaços onde ele possa exercitar um processo de discussão e de relacionamento. O adolescente precisa de grupos de referência para confidenciar, trocar e ser acolhido. E não cabe no espaço de acolhimento, público ou privado, nenhuma forma de censura e julgamento. As políticas de atendimento devem ter uma relação ética de confidencialidade, desde que não haja riscos. A vertente atual de acolhimento é entender o adolescente nas mudanças físicas, nas quais ele tem necessidades de apoio: na obesidade ou anorexia; no desenvolvimento e crescimento; na pele que ele não gosta e não aceita; na imagem que tem de si e questiona; na política do corpo que faz com que sinta-se profundamente infeliz, ou porque é baixo ou porque é alto. E, no relacionamento sexual, temos que trabalhar os desafios e cobranças que eles enfrentam. Acolher o adolescente é mostrar uma rede de opções, na medida em que ele tem vínculos com a família, a escola e os grupos sociais. Assim, ele tece uma rede de proteção. Mas quando ele se sente sozinho ou atrelado a uma única pessoa ou objeto – seja a namorada, ou um único amigo, ou o computador –, torna-se escravo.
Clóvis: Essas características de o adolescente ser um grande sonhador, pleno de emoções e de vontade de conhecer novas sensações, de se arriscar – que os levam a ter a sensação de indestrutíveis – teriam uma base biológica neuro-hormonal?
Maria Ignez: A consideração dos sonhos e emoções dos adolescentes é fundamental em nosso dia-a-dia de atendimento. A famosa síndrome da adolescência normal é característica desta fase – pois as pessoas que as mantêm, por exemplo, aos 50 anos, não são normais. A busca de identidade, a indestrutibilidade, o não pensar no amanhã, a vinculação ao grupo, a evolução da sexualidade, a flutuação de humor e a proposta de amanhecer místico e dormir ateu fazem parte desse quadro. Porém, nem sempre o adolescente é sonhador: por vezes, as descrições dos livros não se encaixam com a do adolescente que chega aos serviços. Ele pode estar absolutamente esmagado pela necessidade de sobrevivência. As necessidades são tão imediatas que não há tempo de sonhar.
Clóvis: Esses adolescentes também se sentem indestrutíveis?
Maria Ignez: Sim, também, e isto pode estar vinculado à violência como um caminho. O adolescente pichador, quando está de ponta cabeça no 23º andar, acha que é indestrutível. Quando ele está vinculado às drogas, acredita que conserva sua autonomia e que pode largar na hora que quiser. Quando participa de um assalto, também se acha indestrutível. Uma coisa é o sonho e, outra, é para onde ele é conduzido por erros incomensuráveis, inclusive, da visão política e social que se tem do adolescente. O Brasil tem 38 milhões de adolescentes e a área da saúde tem responsabilidade direta sobre o momento presente desses jovens. A área de saúde não modifica a política de um país, mas denuncia sua condição nutricional, de vulnerabilidade e os riscos existentes. Muitas vezes o setor de saúde acaba encarregado da reconstrução e orientação. Quem está educando hoje é a mídia. As famílias se olvidaram e a escola é muito informativa, quando deveria ser formativa. Por isso, é importante o profissional ter uma atitude ética sobre até onde o adolescente pode ir. Não vamos só colocar limites, mas também não vamos aplaudir ou ser coniventes; vamos ser parceiros, porque não existe liberdade sem responsabilidade e isso eles precisam aprender.
Clóvis: Como se estabelece a relação de confiança mútua?
Maria Ignez: A confidencialidade é um contrato. A privacidade não é uma dádiva, mas uma conquista desse momento.
Clóvis: A confidencialidade é um contrato que, eventualmente, pode ser desfeito na relação médico-paciente com o adolescente. Quando e em quais situações pode-se quebrar a confidencialidade com sólidas bases éticas e legais?
Albertina: Há situações que apresentam risco de vida e, outras, que não. Uma cena comum do atendimento é a adolescente grávida que diz: “não quero que ninguém fique sabendo”. Então, conversamos com ela e, considerando que dentro de algum tempo todos vão saber, procuramos identificar se há algum adulto cuidador que poderá saber. Em breve, ela mesma percebe e consente que se chame alguém. Outra situação comum: a adolescente chega sangrando em processo de abortamento porque tomou alguma medicação e não pode ser internada sem um adulto cuidador. E aí perguntamos: o que vamos fazer com você? A postura do médico é tão real que o adolescente percebe o quanto o profissional está vinculado à realidade daquele momento. E eles costumam perguntar “a senhora vai ficar junto comigo para que eu possa contar?” Eles pedem ajuda! Em 37 anos de atendimento, vejo que em geral elas pedem para que o profissional fique junto. Nas situações em que a adolescente tem vida sexual e toma anticoncepcional, mas não quer que ninguém saiba, fazemos um pacto com ela para manter esse vínculo de confidencialidade. Uma doença sexual como corrimento pode ser discutida com ela e, inclusive, com o parceiro ou parceiros. Existe um cotidiano de problemas ginecológicos envolvendo a vida sexual e o fato de a adolescente não ser mais virgem. Mesmo que a família queira saber detalhes da assistência, nós temos um contrato de confidencialidade com a adolescente. Alguns pais teriam infarto se soubessem o que está ocorrendo com seus filhos.
Clóvis: A preservação da privacidade do adolescente a qualquer custo é um dever do médico para continuar ajudando seu paciente. A nossa ação diminui ou se neutraliza, se a relação for quebrada. É desejável que o adolescente seja estimulado a envolver a família, mas se não quiser e não se caracterizar uma situação de risco para ele ou terceiros, mantém-se o contrato da confidencialidade. Porém, o contrato é tácito na relação médico-paciente. Essas condições de quebra de contrato e a possibilidade de exposição do adolescente devem ser colocadas antes para ele?
Maria Ignez: Quando falamos em confidencialidade, não colocamos a exclusão da família. Sempre estimulamos o adolescente a ter diálogo com os pais. Porém, às vezes ele não teve diálogo nem na infância. Devemos lembrar que a adolescência vem depois da infância, ocasião em que as mães são as interlocutoras do pediatra. E, de repente, o adolescente passa a entrar sozinho na consulta. Mas quando ele quiser que a mãe o acompanhe, vamos respeitar a sua autonomia. Por outro lado, é importante que a família saiba da situação de atendimento e que serão garantidas ao adolescente as condições de privacidade e confidencialidade. Não tivemos recusa desse tipo de proposta.
Agora, há situações em que o sigilo vai ser quebrado, como no caso da gravidez diante da violência e abuso sexual será feita denúncia às varas de infância e adolescência, conselhos tutelares etc. Muitas vezes o adolescente tem medo do agressor. É importante que profissionais de sexo oposto ao do paciente que atendam vítimas de abuso tenham alguém acompanhando a consulta na sala para que possa se proteger de eventuais denúncias da família. Observamos que a família tende a proteger o agressor, que na maioria das vezes é um membro da mesma – o pai biológico, em primeiro lugar; o padrasto, avô ou outra figura que deveria ser responsável pelo adolescente. Essa situação perdura durante anos porque se sustenta no silêncio da família. Também haverá quebra de sigilo por exposição a riscos de adolescente que perdeu a crítica, por exemplo, no caso de adição à droga. Como ele já não tem sentido crítico e não pode decidir, então, a família saberá. Em caso de Aids também é recomendável contar. Quem pode receber um diagnóstico de Aids em qualquer idade sozinho? Mesmo o adulto tem dificuldade. Como um adolescente faz o tratamento de HIV? Nesses casos temos que fazer uma negociação mostrando como é importante ter apoio da família, mesmo quando ele já tem 18 anos.
Clóvis: O comportamento aditivo que envolve substâncias químicas deve ser abordado dessa forma não só com os adolescentes, mas também com os indivíduos adultos capazes, porque não é possível tratar nenhum ser humano com comportamento aditivo sem que haja um movimento de apoio de seus familiares.
Albertina: Cerca de 70% dos adolescentes que atendemos no programa chega sozinho – esse é um diferencial entre o consultório particular e o serviço público. No ambulatório temos, às terças-feiras, a “Balada da Saúde”, das 17 às 21 horas, em que, de 100 adolescentes, 30 estão acompanhados da mãe. Isso demonstra que os adolescentes estão sozinhos na rua, no atendimento e na escola. Esclarecemos a questão do sigilo e da privacidade para a família, mas muitas vezes temos que chamá-la para informar sobre essa questão porque ela não está presente.
Maria Ignez: É importante que as famílias sejam notificadas de que seus filhos estão sendo atendidos em algum lugar; mas a ausência dos familiares não impede a matrícula. Temos uma diversidade de situações e procuramos garantir o direito à confidencialidade aos adolescentes. Em algumas situações não notificamos, por exemplo, na experimentação de drogas ou atividade sexual. Porém, o adolescente que experimentou apenas uma vez, exige muito mais cuidado e responsabilidade do profissional que o atendeu. Aquele que experimentou está mais vulnerável do que aquele que recusou. E o que recusou é um pouco mais vulnerável do que aquele a quem ninguém nunca ofereceu, porque o traficante é um grande “psicólogo” da alma humana e sabe a quem oferecer. Mas em relação à atividade sexual, na minha experiência, aos 10 anos falta capacidade de discernimento, que também pode faltar para alguns de 11 ou 12. Entre 10 e 12 anos é um limite complicado.
Clóvis: Como está estabelecida a abordagem dos adolescentes entre 14, mais ou menos 12 e, por último, em torno dos 16 anos?
Maria Ignez: A proposta legal às vezes está distanciada a priori da ética. Já esteve mais distanciada, o Estatuto da Criança e do Adolescente aproximou a questão ética da legal e isso deve ser considerado nas ações de saúde. Há uma lei, que ainda não foi revogada, caracterizando a atividade sexual abaixo dos 14 anos como violência presumida. Isso causa aos colegas grande preocupação: ao receitar um anticoncepcional, ele está acobertando uma ilegalidade? Na tentativa de resolver essas questões fizemos, em 2002, o Fórum Adolescência, Contracepção e Ética, em que a palavra dos juízes e advogados presentes foi importante para nós. Está no estatuto que crianças de 12 anos decidem com quem querem morar em caso de separação dos pais e se vão ser adotados ou não. Então, abaixo de 14 e a partir de 12 anos, ficou claro no fórum que o médico deveria escrever no prontuário do paciente que aquele fato era uma relação consentida. Caso contrário, a grande maioria dos nossos adolescentes seria de estupradores, considerando que a atividade sexual ocorre cada vez mais cedo. Estupro ainda é crime hediondo, inafiançável. Ao escrever no prontuário, o médico também se preserva de outras questões. Às vezes, as famílias sabem da atividade sexual e não estão preocupadas com isso até que a adolescente engravida. Então, dizem: “doutora, minha filha foi estuprada e tem menos de 14 anos, a senhora pode fazer uma carta?” A mãe sabe que é “consentido”, mas se for caracterizado estupro, a adolescente terá direito ao aborto legal. O grande limbo está entre 10 e 12 anos, aí cada caso é um caso. Quanto mais próximo dos 10 anos, mais difícil, inclusive, diferenciar se é ou não estupro. Porque estupro não é apenas a violência à força, pode ser a sedução, a proposta de um vestido ou um brinquedo novo.
Clóvis: Partindo do princípio de que as normas deverão ser sempre precedidas de uma reflexão ética, especialmente desde 1970, deveria haver uma alteração na legislação no que se refere ao adolescente brasileiro?
Albertina: O estatuto foi um grande colaborador para garantir os direitos do adolescente. Hoje, as estatísticas mostram que a atividade sexual ocorre em torno de 14 anos para meninas e, para meninos, entre 13 anos e meio. O primeiro namoro está ocorrendo entre 13 e 14 anos e, dois a três meses depois, acontece a primeira relação. E o que devemos fazer? As leis tendem a sofrer alterações depois de muitos fatos ocorridos evidenciarem a sua necessidade. O fato de o Cremesp ter uma postura já há 12 ou 15 anos, permitiu que no Estado de São Paulo pudéssemos, por meio de capacitações e discussões, fazer com que os profissionais ficassem mais sensibilizados e livres para esse acolhimento. Há 20 anos a discussão nos congressos era “será que uma pessoa com menos de 17 pode ser atendida dessa forma?”. Hoje as adolescentes de 12 ou 13 anos estão tomando anticoncepcional oral sem conhecimento da família. Algumas chegam ao serviço depois de usar a anticoncepção de emergência injetável! As famílias estão distantes desse processo, que muitas vezes chega ao profissional como uma situação em andamento. Já atendi adolescentes com 14 anos que queriam usar o DIU. Já tinham usado camisinha convencional, camisinha feminina e anticoncepção de emergência que não deram certo e queriam o DIU.
Uma pesquisa de 1995 mostrou que 90% dos adolescentes conhecem os métodos anticoncepcionais. Estamos trabalhando com conhecimento e agora é preciso negociar com os adolescentes uma atitude de prevenção. E se a legislação não possibilitar a negociação, ela deve ser mudada. Nós trabalhamos com prevenção e sabemos que é necessário uma lei que possa proteger os adolescentes, porque eles vão usar anticoncepcional aos 12 ou 14 anos em altíssimas dosagens se nós não receitarmos. Concordo com a Maria Ignez que de 10 a 12 anos é uma situação limítrofe em que cada caso é um caso. Em alguns é importante ter a psicóloga e a assistente social conosco, porque é no período entre 10 e 12 que a adolescente tem coragem de denunciar o abusador, por exemplo.
Clóvis: Como abordar a questão de uma adolescente de 14 anos e meio que não está usando nenhum método de contracepção, mas que chega à presença do médico revelando que pretende ou decidiu iniciar sua atividade sexual com o namorado e gostaria de ter orientação em relação à anticoncepção? Como a senhora aborda essa questão? A senhora toca em assuntos relacionados à importância do amor em relação à sexualidade? Qual é a sua dinâmica nessa situação, que considero ideal, visto que a adolescente não começou ainda a atividade sexual, mas demonstra conhecimento em relação à contracepção. A senhora chama o namorado? Quer conhecer mais a família para tomar a decisão em outro encontro? Ou receita algo já no primeiro contato?
Maria Ignez: O grande resultado do Fórum de Contracepção foi o entendimento do adolescente como sujeito. E a nossa postura de confidencialidade, suporte e respeito o torna mais sujeito ainda. É importante que ele não seja objeto de alguém, que não fique sujeito à escolha do outro e não viva o momento do outro. A pessoa escolhida precisa ser especial. Em minhas explanações, falo de amor, esperança e respeito ao corpo, porque eles têm que se sentir fortalecidos para escolher. O adolescente deve viver o seu momento e isso é válido também para aqueles que têm um fenótipo prejudicado e está até grato por ser escolhido, imaginando que é uma forma de amor. O anticoncepcional é importante e nunca deixo para outra consulta, porque pode ser tarde demais. Quando eles vêm nos procurar já é um pouco tarde... No âmbito da ética, recebemos apoio dos Conselhos, das sociedades de especialidades, das comissões de ética e dos médicos que lidam com a sexualidade, porque a assistência deve, necessariamente, considerar o corpo físico, a puberdade, os hormônios e a genitalidade. De nossos fóruns surgiram, por exemplo, as diretrizes que dão suporte aos profissionais ao considerar que o medicamento de contracepção de emergência não é abortivo, fato que representava outro fantasma para os médicos.
Albertina: Nos anos 90 fizemos parte de uma pesquisa da Organização Panamericana de Saúde que revelou que os adolescentes conheciam os métodos anticoncepcionais mas não faziam uso na primeira nem na segunda relação porque tinham medo de não agradar ao parceiro; o menino também tinha medo de falhar. Então, passamos a trabalhar nos programas que era importante nas relações de gênero que a menina não se sentisse submissa nem obrigada a ceder ao impulso sexual do menino; e que o menino não tinha necessidade de aprovação. É fundamental discutir e mudar a informação por negociação. E, na negociação, expor que o autocuidado é uma forma de carinho. O adolescente não pode ser submisso ao outro; o menino, pressionado socialmente ao papel de atleta sexual não deve se empenhar na primeira relação sem estar absolutamente seguro. O tempo médio de vínculo entre adolescentes é de dois ou três meses, então eles precisam vestir a camisa do autocuidado, além do próprio preservativo.
Clóvis: Quais são os métodos de proteção mais adequados para que os adolescentes estejam seguros e com a saúde preservada na iniciação sexual?
Albertina: A camisinha é o primeiro método e, na proteção dupla, a adolescente pode negociar a camisinha feminina, o que ainda é difícil, porque ela acha que não vai encontrar nos postos e muitas vezes sente-se insegura em fazer essa oferta. É importante insistir na camisinha dele ou dela e no anticoncepcional oral, porque percebemos que deixar só com o outro traz conflitos para a adolescente. Em relação às adolescentes que tiveram filhos, podemos pensar na possibilidade do DIU. Temos um trabalho mostrando que essa adolescente está muito vulnerável: 40% delas são abandonadas ainda na gravidez pelo parceiro. Nesses casos, deve estar aberta a possibilidade de usar um mecanismo mais efetivo como o DIU. Eu colocaria na seguinte ordem: preservativo, pílula de baixa dosagem e, depois, nos casos de adolescentes que tiveram filhos, o DIU. E a anticoncepção de emergência é para ser usada em situação real de emergência.
Clóvis: Eventualmente pode haver o rompimento do preservativo masculino. No caso do feminino também?
Albertina: No feminino, não; e ele tem mais uma vantagem, a adolescente já pode sair de casa com o preservativo.
Clóvis: Em 2006, o Conselho Federal de Medicina, por estímulo do grupo que a professora Maria Ignez reunia desde 2002 – juristas, pediatras, obstetras e outros profissionais especializados em medicina do adolescente – editou a Resolução número 1811/06 que aceita a anticoncepção de emergência. No contexto de seu trabalho de quatro décadas em favor do adolescente, como a senhora considera essa resolução?
Maria Ignez: Foi uma conquista importante. Quando fizemos o fórum de 2005 ainda persistiam questões relacionadas ao medicamento ser abortivo ou não. Mas sabemos que o contraceptivo de emergência não é abortivo e, às vezes, ele é o primeiro contato com um processo de prevenção que vai se estabelecer. Muitas adolescentes nos procuram pelo contraceptivo de emergência, preocupadas porque tiveram uma relação. Nós batalhamos para que a pílula não seja usada apenas no dia seguinte, já que pode ser tomada até o quinto dia. Também trabalhamos para que o uso do contraceptivo de emergência não passe a ser regular, devido à queda de eficácia.
Clóvis: Estamos nos encaminhando para o final deste debate e gostaria de pedir às professoras que fizessem suas considerações em relação aos resultados e às expectativas desse tipo de abordagem para a assistência à saúde dos adolescentes.
Maria Ignez: Houve uma queda significativa de gravidez entre adolescentes de 10 a 14 anos em São Paulo. Mas, no restante do Brasil é uma calamidade. A Unesco fez uma pesquisa em 14 capitais indicando, por exemplo, que em Fortaleza 33% das meninas entre 10 e 14 anos já estiveram grávidas alguma vez. Em nosso ambulatório para filhos de mães adolescentes que se iniciou em 1996 tivemos a sexta menina que dá a luz antes dos 12 anos. E em nenhum caso foi abuso, são todas relações consensuais, inclusive uma delas era noiva desde os 7 anos. Estamos frente à antecipação da puberdade, ao estímulo da mídia como educador, que apenas lança a proposta. Estamos frente a ausência de contraponto de famílias, educadores e, daí, a importância da área médica.
Albertina: Hoje temos 120 serviços em várias cidades – as mais populosas. É uma frente participativa na qual colaboram várias universidades que têm programas relacionados a adolescentes e voluntários que dão aulas sem nenhum honorário. Esse programa não é só da Secretaria da Saúde, mas de uma grande rede de sonhos e esperanças na qual mais de 10 mil pessoas foram capacitadas e sensibilizadas para esse acolhimento. Hoje, em São Paulo, temos que comemorar, pois a gravidez na adolescência vem caindo desde 1998. Foram 148 mil nascimentos em 1998 para 100 mil em 2006, uma queda de 32%. A segunda gravidez também diminuiu 30% no Estado, enquanto que no Brasil apresentou um aumento de 13% no mesmo período. E há um dado que vou divulgar em primeira mão, os casos de Aids de 1998 até 2006, entre 10 e 14 anos, caíram 23%; entre 15 e 19 anos, 66%; e entre 20 e 24 anos, 74%. Isso demonstra que podemos melhorar os indicadores de saúde com esse acolhimento. Não tenho dúvidas de que no Estado de São Paulo estamos construindo uma cultura do atendimento ao adolescente.
Clóvis: Discutimos assuntos relacionados a questões legais, de ordem científica, de políticas públicas e de abordagem do adolescente. Mas, pautamos nossa discussão basicamente na ética profissional do médico e na sua relação com o adolescente, enquanto cidadão e sujeito da ação. Em nome do Conselho, agradeço a prestimosa colaboração das professoras Albertina e Maria Ignez neste debate.
Frases
Por séculos, os adolescentes constituíram um grupo ao qual não se dedicava muita atenção a sua saúde. Somente a partir do século XIX começaram a ser criados, na Europa, alguns serviços especializados, até chegar a uma proposta de assistência integral (Clóvis)
Esclarecemos a questão do sigilo e da privacidade para a família, mas muitas vezes temos que chamá-la para informar sobre essa questão porque ela não está presente (Albertina)
O anticoncepcional é importante e nunca deixo para outra consulta, porque pode ser tarde demais. Quando eles vêm nos procurar já é um pouco tarde (Maria Ignez)