CAPA
PONTO DE PARTIDA
Editorial, com Isac Jorge Filho
ENTREVISTA
Nosso convidado é Diego Gracia, um dos papas da Bioética na Europa
CRÔNICA
Acompanhe texto bem-humorado de Tufik Bauab, médico radiologista
CONJUNTURA
Uma análise da história da hanseníase no país
BIOÉTICA
A situação sombria das mulheres indianas
MÉDICAS EM FOCO
Marilza Rudge e Mary Ângela Parpinelli contam suas trajetórias profissionais
DEBATE
A quebra das patentes dos medicamentos no Brasil
FOTOLEGENDA
Harold Pinter, prêmio Nobel de Literatura, e a política externa dos EUA
SINTONIA
Hospital expõe fotos tiradas por crianças e adolescentes internados
LIVRO DE CABECEIRA
Totalidade e Infinito - Emmanuel Lévinas
CULTURA
Faculdade de Medicina da Bahia: 1ª instituição do ensino superior do país
TURISMO
O crescimento - prazeroso - do turismo rural no Brasil
HOBBY DE MÉDICO
Quando a partitura se transforma em instrumento de trabalho...
POESIA
Entre o Sono e o Sonho - Fernando Pessoa
GALERIA DE FOTOS
CONJUNTURA
Uma análise da história da hanseníase no país
O êxodo invertido
Remanescentes dos últimos hospitais de confinamento para portadores de hanseníase – antes conhecida como lepra –, levam familiares para morar com eles nos antigos “leprosários”. Após a descoberta da cura da doença e da abertura dos portões, muitos saíram, mas voltaram. A vida fora das colônias não era fácil para uma população de ex-doentes que perdeu vínculos familiares e sociais quando foi “presa”. Além disso, a doença foi vencida, mas o preconceito e o estigma sobre um mal biblicamente associado ao pecado e à impureza persistem. Benefícios como aposentadoria por invalidez, moradia gratuita e cesta básica tornam essas ex-cidades malditas um paraíso, quando comparadas ao mundo extra-muros.
Cerca de 33 hospitais-colônia continuam parcialmente ativos no Brasil. No passado, eram verdadeiras cidades, com cinema, igreja, teatro, salão de bailes, quadra de esportes, comércio, cemitério, delegacia, cadeia, prefeitura, escola, campo de futebol e até cassino. Quando cometiam algum delito, os confinados eram julgados e condenados – normalmente era o prefeito quem estabelecia a pena. A equipe de reportagem da Ser Médico visitou a antiga colônia do Sanatório Santo Ângelo em Mogi das Cruzes (atual Hospital Dr. Arnaldo Pezutti Cavalcanti). Alguns ex-doentes vivem hoje no local com parentes. Outros moram em quartos individuais chamados carvilles e fazem as refeições no refeitório coletivo. Aqueles que precisam de cuidados de enfermagem ficam no pavilhão de moradia coletiva. Os que necessitam de contínua atenção médica e de enfermagem ficam numa ala de internação permanente. Há, inclusive, alguns questionamentos jurídicos em torno do direito à posse definitiva das casas pelos ex-doentes.
No final da década de 20, havia no país uma pandemia de hanseníase, doença então sem cura. Marginalizados, seus portadores não podiam trabalhar e, sem subsistência, mendigavam pelas ruas. Zenaide Lázara Lessa, mestra em Saúde Pública com tese sobre a hanseníase e conselheira da Fundação Paulista Contra a Hanseníase, diz que havia um ambiente de pânico social com relação aos doentes. A Lei Estadual nº 2.416 de 1929, abolida 33 anos depois, determinou o isolamento compulsório, permitindo a criação de uma rede de localização e retenção de doentes. Entre 1928 e 1936, os infectados foram alijados da sociedade paulatinamente. Mas quando se concluiu a rede asilar do país, o isolamento foi em massa. Na época, o governo de Getúlio Vargas fez uma propaganda oficial que mostrava colônias “maravilhosas” para persuadir os doentes à internação voluntária.
A propaganda não contava que as colônias ficavam em locais de difícil acesso, tinham muros, cerca de arames, portões trancados e um corpo de guardas sanitários para capturar fugitivos e novos doentes.
Nas proximidades dos asilos, a função de Guarda Sanitário era exercida por portadores da hanseníase em estágio pouco avançado. Com perfil diferenciado, precisavam ser fortes para ir “à caça” de colegas doentes. Alguns andavam armados. O Departamento de Profilaxia da Lepra (DPL) respondia pela identificação dos casos e pela internação compulsória. (Na foto, asilo-colônia Santo Ângelo, clicada na década de 30)
Alcidez Magoga, de 71 anos, chegou ao Sanatório Santo Ângelo de Mogi das Cruzes em 1961, aos 26 anos, procedente de Colina, interior de São Paulo. Ele é um dos 187 ex-hansenianos que ainda vivem na antiga colônia. No hospital tornou-se barbeiro, profissão abandonada em 1977 porque as seqüelas da doença o impediram de manejar tesouras e navalhas. Em 1963 casou-se com a também interna Edith Maria Magoga, de quem separou-se em 1977. A filha do casal, Renata, foi separada dos pais quando nasceu, em 1965. Ela ficou até os 12 anos no Educandário de Jacareí. Segundo a pesquisadora Yara Nogueira Monteiro, coordenadora do Núcleo de Investigação em Memória do Instituto da Saúde da Secretaria Estadual da Saúde, os filhos de hansenianos, que em geral nasciam sadios, eram levados para um dos dois preventórios do Estado, de Jacareí ou de Santa Terezinha, ambos subordinados ao DPL. Renata encontrava seus pais duas vezes por ano – segundo as normas do DPL, uma vez ao ano os pais podiam visitar filhos e vice-versa. “O contato dos pais com as crianças era dificultado ao máximo pelo DPL”, afirmou a pesquisadora. Muitos só viriam a conhecê-los depois dos 18 anos, quando saíam dos preventórios.
Raimunda Juca Viana, de 60 anos, morava com o pai e dois irmãos em Brasília, quando foi levada ao hospital. “Em Brasília, ninguém conseguia diagnosticar minha doença. Então, vim a São Paulo, fui ao médico e, quando voltei para pegar o resultado, me levaram ao DPL para outros exames. Lá, me disseram que deveria ser internada. Não me perguntaram se eu queria ir, apenas fui enviada ao hospital”, conta Raimunda. Chegou à colônia de Mogi em 1973, época em que já era possível sair para passeios, desde que autorizados pela diretoria da instituição. Conta que logo ao chegar ouviu um comentário assustador de outra paciente: “Quando me trouxeram para cá, era limpa como você. Veja como estou hoje”. Raimunda havia perdido o noivo, falecido dois anos antes. “Veio tudo junto, no início eu chorava muito. Quando recebi a primeira visita, queria abraçar meu pai e meus irmãos, mas tinha medo de ser rejeitada. No final, corri e abracei minha família. Eles corresponderam ao meu gesto de carinho”, conta.
Seguindo a tendência mundial, o Brasil começou a pôr fim ao isolamento compulsório na década de 60. São Paulo manteve a política de confinamento até 1967 e um regime de transição semi-aberto até a metade da década de 70. “Depois, abriram as portas, os doentes saíram e descobriram que não tinham condições de sobreviver lá fora. Um paciente internado com 25 anos e ‘libertado’ aos 50, por exemplo, pode encontrar o cônjuge casado com outra pessoa; se teve filhos, estes cresceram. Eles não se reconhecem mais, são estranhos um ao outro”, explica Yara Nogueira. “Os hospitais forçaram a saída, do mesmo jeito que forçaram a entrada. Mas muitos voltaram”, afirma a assistente do Núcleo de Assistência Comunitária da colônia de Mogi das Cruzes, Nanci dos Santos Duarte Cardoso.
No início da década de 90, uma resolução da Secretaria Estadual de Saúde – seguindo orientação do Ministério de Saúde – autorizou o Hospital de Mogi das Cruzes a receber de volta os ex-doentes da própria instituição. “O Estado assumiu a responsabilidade de garantir um final de vida digno por entender que tem uma dívida social com essas pessoas, além de ser uma recomendação oficial do Ministério da Saúde”, explica o médico, ex-diretor do Departamento de Hanseníase do Centro de Vigilância Epidemiológica e vice-presidente da Fundação Paulista contra a Hanseníase, Wagner Nogueira. Alguns moradores, mesmo curados, continuam dependentes de tratamento por causa das seqüelas. (Na foto, hospital-colônia em Mogi)
“No início, havia cinema, teatro, festas, muita coisa. Prefiro hoje, sem essas atividades, mas com nossa liberdade resgatada”, destaca Raimunda. A orientação do Ministério da Saúde permitiu que ela voltasse a morar na colônia depois de ficar dez anos fora. “Na época falei para a assistente social ‘quando me internaram, ninguém me perguntou se eu queria ficar. Agora, quero voltar, quero uma casa”’. Atualmente ela mora com uma amiga ex-hanseniana e dois sobrinhos, de 20 e 17 anos em uma das casas da colônia. “Aqui eles têm um bom padrão de vida, já que as despesas são reduzidas, ganham uma cesta básica e a possibilidade de morar com os familiares”, afirma Nanci. O núcleo de assistência comunitária desenvolve projetos de resgate da cidadania, da auto-estima, além de fisioterapia para atenuar as incapacidades físicas.
Há dois anos, Raimunda faz parte do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan). “As pessoas têm o direito a um fim de vida digno, é por isso que eu luto”, diz ela. Raimunda ressalta que o preconceito contra a doença é outro ponto a ser combatido. “Hoje vou a todos os lugares e algumas pessoas me perguntam sobre as marcas na minha mão. Quando eu respondo, olham-me diferente. Senti e ainda sinto muita discriminação, mas não me deixo abater”, revela. “Eu tinha uma oficina de costura e uma vida em Brasília quando tudo se desfez. Me tornei auxiliar de enfermagem, refiz minha vida e me curei aqui dentro. Muitos não tiveram essa oportunidade e sofreram mais. São eles que estão nos pavilhões”, lamenta.
Apesar de ter família em Santo André, Alcidez Magoga também diz que seu lar é a colônia. Ele sai regularmente para visitar a filha Renata, a neta de 12 anos e o genro. Sua ex-esposa também continua a viver no hospital – à época da reportagem estava internada por causa de um AVC. Para Nanci, como não há muitas pessoas vivas nessa condição, deveriam garantir moradia aos internados de outros hospitais do Estado em qualquer uma das colônias remanescentes. A colônia de Mogi tinha 217 pacientes no início de 2005; este ano tem 187.
Mudança no perfil de assistência
Quatro hospitais-colônia do Estado de São Paulo – de Mogi das Cruzes, Bauru, Itu e Guarulhos – estão aos poucos mudando o perfil de assistência. No antigo Leprosário de Guarulhos – transformado em Hospital Geral do município e centro de referência em dermatologia sanitária para a Grande São Paulo – internavam-se os doentes de melhor nível econômico, o que favoreceu o retorno às famílias. Poucos ainda vivem no hospital, somente aqueles com seqüelas mais graves. No final da década de 80, o antigo Sanatório Santo Ângelo, que chegou a abrigar 1.200 pacientes, foi transformado no hospital de retaguarda Dr. Arnaldo Pezutti. Além de pacientes com hanseníase, recebe doentes terminais de Aids e câncer, que exigem longa permanência.
Muitas casas da colônia de Mogi foram demolidas na década de 80, período de maior êxodo de confinados. “À medida que eram desocupadas, as casas eram derrubadas para que não houvesse retorno”, informou Nanci. Três pavilhões de habitação coletiva também foram demolidos. O Hospital Lauro Souza de Lima, de Bauru, que na década de 40 chegou a ter 1.200 internos, foi transformado em instituto de pesquisa e centro de referência nacional em atendimentos de casos complexos de hanseníase. O local ainda faz internações, mas o paciente retorna à residência após alta. Segundo o diretor Marcos Virmond, 53 remanescentes da internação compulsória moram no local. “Alguns continuam no hospital porque perderam o vínculo social e o contato com os familiares, que não mais os aceitam, mesmo curados. Eles saem, têm uma vida social normal; mas a casa deles é o hospital”.
Em uma das edificações funciona o Museu Sillas Braga Reis, que conta a história desse hospital-colônia. Em São Paulo, o Museu Emílio Ribas, que deverá ser inaugurado no primeiro semestre deste ano, terá uma sala dedicada à hanseníase. Pela segunda vez, Brasil deixa de cumprir meta da OMS Brasil frustra a meta da Organização Mundial de Saúde (OMS) de reduzir a prevalência de hanseníase para menos de um caso para cada 10 mil habitantes até 2005. A meta, que deveria ser alcançada em 2000, já havia sido prorrogada para 2005 porque nove países não haviam conseguido o feito. Na ocasião, Índia e Brasil apresentavam, respectivamente, maiores prevalências de hanseníase no mundo. A Índia declarou oficialmente que em 2005 registrou menos de 1 caso para cada 10 mil habitantes; e o Brasil, 1,47.
A coordenadora do Programa Nacional de Eliminação da Hanseníase do Ministério da Saúde, Rosa Castália Soares, informou que “era praticamente impossível” cumprir a meta “devido ao ritmo atrasado” do Brasil na ampliação da rede de cobertura de serviço, que cresceu 41% em 2005. O Ministério da Saúde investiu no ano passadoR$ 13,1 milhões no Programa Nacional de Eliminação da Hanseníase. “Se estivéssemos nesse ritmo antes, teríamos alcançado a meta”, informa a coordenadora. A expectativa é atingí-la até o final de 2006.
Segundo Wagner Nogueira, do CVE, o Sul e Sudeste devem puxar os índices nacionais para baixo, enquanto o Centro-Oeste, Norte e Nordeste dificilmente alcançarão a meta em menos de 10 ou 15 anos. No Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo a prevalência já é menor. O Brasil, que chegou a ter 250 mil portadores de hanseníase na década de 80, atualmente concentra 60 mil casos. Pernambuco, Piauí e Bahia concentram 72% dos casos, mas a situação é pior no Mato Grosso (12,67 casos para cada 10 mil habitantes), Tocantins (9,46) e Pará (9,17). A dermatologista Marli Manini, diretora do Centro de Referência em Diagnóstico de Dermatologia Sanitária da Secretaria da Saúde diz que o ensino da hanseníase nas escolas médicas é deficiente. “Os médicos saem da faculdade sem saber diagnosticar e tratar a doença. Como o estigma ainda existe, é difícil conseguir médicos que trabalhem com a hanseníase”.
Período de incubação é longo e a doença avança de forma lenta
Doença infecto-contagiosa de notificação compulsória que atinge a pele e o sistema nervoso, a hanseníase é causada pelo bacilo de Hansen (Mycobacterium leprae) (na foto, em vermelho) – descoberto pelo médico norueguês Gerhard Hansen, em 1873. O período de incubação é longo – de dois a cinco anos entre o contágio e o aparecimento dos primeiros sintomas.
De diagnóstico essencialmente clínico, na forma inicial aparecem manchas esbranquiçadas sobre a pele, com diminuição ou perda total de sensibilidade na área atingida. Avança, de forma lenta, para as formas polarizadas – tuberculóide ou virchowiana. A mancha esbranquiçada torna-se avermelhada, acastanhada ou vinhosa – podendo apresentar edema ou inchaço. A forma tuberculóide acomete pessoas com alta resistência ao bacilo. As lesões são poucas, com ausência de sensibilidade. Ocorrem alterações nos nervos próximos à lesão, podendo causar dor, fraqueza e atrofia muscular. Na virchowiana a imunidade é ausente com acentuada multiplicação do bacilo, anestesia de pés e mãos – favorecendo traumatismos e feridas –, atrofia muscular, inchaço de pernas e surgimento de nódulos na pele. Órgãos internos também são acometidos. O doente pode apresentar vermelhidão e queda de pêlos (sobrancelha, cabelo e regiões genitais). Raramente leva à morte, mas como atinge o sistema nervoso, pode levar à incapacidade física.
O tratamento pela poliquimiotetrapia (PQT) é ambulatorial, permitindo o convívio social sem restrição. Nas formas paucibacilares são utilizados dois medicamentos (Dapsona e Clofazimina) durante seis meses. Os multibacilares fazem o tratamento com três medicamentos (Dapsona, Clofazimina e Rifampicina), por 12 ou 24 meses.
A PQT é doada ao Brasil pela OMS e deve estar disponível em todos os municípios gratuitamente. A hanseníase é transmissível pelo contato íntimo e prolongado com pessoas infectadas – pelas vias aéreas ou pelo contato direto com ferimentos. Não é transmissível na forma inicial e na tuberculóide. O paciente virchowiano deixa de transmitir a doença ao ingerir a primeira dose do medicamento.
Saiba mais
Poucos médicos se dispunham a prestar atendimento aos hansenianos. Por conta do risco, os profissionais recebiam incentivos econômicos – entre eles o passaporte diplomático. Para reduzir o estigma da doença, na década de 70 o médico e professor de Dermatologia da Escola Paulista de Medicina Abrahão Rotberg propôs a mudança de terminologia de lepra para hanseníase. A proposta foi aceita pelo então secretário Estadual da Saúde, Walter Leser, que também foi conselheiro da primeira gestão do Cremesp. Desde então a doença passou a denominar-se hanseníase no âmbito da Secretaria Estadual da Saúde. Em 1995, a Lei 9.010 tornou obrigatório em todo o país o uso da palavra hanseníase em lugar de lepra.
Colaborou com a matéria Rosangela Silva