

CAPA

PONTO DE PARTIDA
Editorial de Isac Jorge Filho: Pequenas Mudanças

POESIA
Miguel Carlos Vitalino, escritor e médico pneumologista

ENTREVISTA
A psiquiatra Carmita Abdo é a convidada especial desta edição

CRÔNICA
Ser filho de médico - José Simão

SINTONIA
Gravidez na adolescência

CONJUNTURA
Medicina Esportiva

DEBATE
Reprodução assistida para portadores de HIV

MEIO AMBIENTE
Compostos químicos e a saúde

COM A PALAVRA
A inveja não é só ruim - Carlos Amadeu Botelho Byington

HOBBY DE MÉDICO
Xadrez - No tabuleiro do doutor

HISTÓRIA DA MEDICINA
Tempo de criação 1951-1956

TURISMO
São Luiz do Paraitinga - Histórica, caipira e festeira

CULTURA
Corpos Pintados: mostra já percorreu 32 museus do mundo

CARTAS & NOTAS
Novo projeto gráfico da sua revista

LIVRO DE CABECEIRA
A Viagem Vertical - Enrique Vila-Matas

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LIVRO DE CABECEIRA
A Viagem Vertical - Enrique Vila-Matas
A viagem vertical
Maria Helena de Souza Fontes*
A viagem vertical de Frederico Mayol, personagem desse livro, começa no dia seguinte à comemoração de suas bodas de ouro, aos 77 anos. Sem nenhuma evidência anterior, sua mulher o manda embora de casa. Ela precisa descobrir quem é ou quem teria sido, se não tivesse ocupado a sua vida cuidando dele. Mayol busca o apoio dos filhos, mas estes nada podem fazer. Perplexo, vê-se profundamente perdido. A princípio, imagina que deveria mudar de personalidade ou viajar para lugares familiares, seguindo um conselho de um amigo que lhe diz que ele permanecerá vivo enquanto não viajar para cidades que não conhece. Pensa inventar uma outra identidade, fingir ser um jogador profissional de pôquer, assumir a identidade de um amigo morto.
Pensa na morte, mas decide enfrentar a realidade e procurar uma fresta por onde escapar dessa situação inusitada - obrigar-se a recomeçar a viver, começando do zero, nesse mundo de sutilezas e ciladas que é o mundo dos sentimentos humanos.
Interroga-se sobre quem ele é e percebe nada saber a seu respeito. A fresta buscada parece surgir de um pensamento - “porque temos com tanta
facilidade o detestável hábito de ser infelizes?”. Visitando o cemitério onde estão enterrados seus pais, uma série de insights lhe ocorre: não pode viver de memórias, pois lhe seria sempre impossível recuperar a infância. Pensar nas lembranças é modificá-las fatalmente - as lembranças são uma invenção do presente, na medida em que sofrem transformações do vivido.
Decide não tentar parecer-se com ninguém. Seria ele próprio. Deixa Barcelona, cidade onde construiu uma bem sucedida empresa de Seguros e viaja sem nenhum propósito, em direção ao nada, à incerteza. A busca de sentido para a sua vida converte-se na reinvenção de si mesmo. É esse processo que o autor descreve através de uma narrativa leve, perpassada pelo humor, levando o leitor a uma deliciosa viagem, na qual acompanha o personagem pelos acontecimentos vividos no caminho de sua transformação.
A aventura de Mayol assemelha-se ao processo de construção de identidade do adolescente. Esquecemos a idade do personagem quando o vemos transgredir normas e comportar-se de modo inimaginável a um “senhor de Barcelona”, imagem lisonjeira que tinha de si mesmo. Transgressões, comportamento irresponsável, onipotência e destemor constituem-se no ritual inicial de Mayol, transformando-o em uma espécie de Holden Caulfield, personagem de Salinger em “O Apanhador no Campo de Centeio”.
Adolescentes em geral elegem o pai como alvo do desafio que têm de vencer, para merecer a entrada no mundo dos homens. Mayol escolhe o filho Julian, pintor e intelectual que, na festa das bodas, o acusara de ter uma inteligência natural, mas de não ser culto. Esta afirmação põe o dedo na ferida de sua vida: sentia-se inferiorizado em relação a seus amigos que freqüentaram a Universidade. Devido à guerra civil espanhola tivera que interromper sua educação. É com Julian que ele dialoga todo o tempo em sua viagem que, ao final, se converte em uma busca para o conhecimento. Para a capacidade de pensar por ele próprio, para deixar-se penetrar por uma cultura livre e indisciplinada: pensada exclusivamente por ele e para ele.
A viagem é, desde sempre, nas sagas históricas, nos mitos, na literatura e no cinema a metáfora da viagem para dentro de si mesmo, para a busca de sentido da vida e descoberta de uma identidade. Esse é o sentido da viagem de Ulisses na Odisséia. Mas enquanto a meta de Ulisses é retornar a Ítaca, a viagem de Mayol não tem retorno. Em busca do seu Porto Metafísico, título de uma tela de Julian, Mayol mergulha na Atlântida, o continente desaparecido, símbolo do universo submerso de seu mundo interior.
“A viagem vertical” impressiona pela descrição do processo de descoberta de si mesmo, possível em qualquer idade. Aventurar-se para lugares distantes simboliza a rejeição do imobilismo, dos mecanismos que desenvolvemos para negar a percepção “da boca do abismo de escuridão que está sob nós, em toda parte. Não é preciso um terremoto para quebrá-la, basta apoiar o pé”.
Deixar-se levar por essa viagem sem resistir é o que nos propõe o autor, através dos versos do médico e poeta William Carlos Williams: A descida seduz/ como seduziu a subida./ Nunca a derrota é só derrota, pois/ o mundo que ela abre é sempre uma parada/ antes/ insuspeitada.
Obra: A viagem vertical
Autor: Enrique Vila-Matas
Tradução: Laura Janina Hosiasson
Editora: Cosac Naify
* Maria Helena de Souza Fontes é médica psicanalista e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.