

CAPA

EDITORIAL
Análise sobre Urgência e Emergência e entrevista com Tom Zé: destaques desta edição

ENTREVISTA
Tom Zé: "Persistindo os médicos, os sintomas deverão ser consultados"

CRÔNICA
Entre a saudade e a nostalgia - Tebni P. Saavedra

BIOÉTICA
Debate discute pesquisas com seres humanos

ENSINO
Renato Sabbatini aborda a reciclagem profissional de qualidade

SINTONIA
"A Teoria do Caos e a Medicina", por Moacir Fernandes de Godoy

ESPECIAL
Urgência e Emergência: situação crítica no sistema público de saúde

EM FOCO
Memórias de cárceres: Luiz Guedes e Eleonora Menicucci

COM A PALAVRA
Artigo do cardiologista Luiz Carlos Pires Gabriel

LIVRO DE CABECEIRA
Destaques: A Conquista da Felicidade e O Físico

CULTURA
Michelangelo - Lição de Anatomia

HISTÓRIA DA MEDICINA
A Medicina islâmica em Córdoba e Toledo

GALERIA DE FOTOS

COM A PALAVRA
Artigo do cardiologista Luiz Carlos Pires Gabriel
Era feliz e não sabia
Luiz Carlos Pires Gabriel* O ano de 1964 corria bem, seria o ano da nossa formatura, novos horizontes, nova vida e muito mais responsabilidades. Deixaríamos para trás as boinas amarelas, as festinhas e o glamour, para renascermos no mundo real, desigual e cruel. Mal começou o ano letivo e já temos uma Revolução!!! Repressão, cavalaria nas ruas, professores e alunos presos, centro acadêmico sob extrema vigilância. Quebraram nossas colunas do porvir igual, do pensamento livre e a opinião anulada.
Foi neste clima incerto, com responsabilidades já vindas e por vir, que chegou o dia 18 de dezembro. O dia em que de fato e por direito iríamos nos formar. Nos tornaríamos médicos, cidadãos brasileiros. Como sempre, sem dinheiro, pouca festa, sem futuro e pouco sono, mas com muita vontade de vencer e colocar em prática a teoria aprendida nos bancos da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP. Ótima escola, ótimos professores, plantões e mais plantões... de pediatria, de obstetrícia, geral, muito trabalho... e agora???
Voltaria para minhas origens?
Voltaria para casa?
Foi assim, depois de prolongar os estudos por mais seis meses, que comecei a exercer a profissão em Taquaritinga, sede do Município onde nasci e onde estudei até os 17 anos.
Éramos em sete colegas. Não tinha nenhum colega anestesiologista e nem cardiologista. Como havia concluído o curso intensivo de clínica cardiológica e eletrocardiografia no Instituto do Coração (SP) e como fizera exames de proficiência em anestesiologia, tornado-me membro efetivo da SBA e da SAESP, resolvi iniciar meu trabalho como anestesista e clínico geral.
Como seria meu futuro? Esposa grávida e perspectiva de ganho para o aluguel da casa nada animadora.
Foi aí, nesse começo de vida profissional, que Deus resolveu me mostrar que o futuro só a Ele pertence. Quem trabalha consegue, quem estuda pode e, realmente, “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Os casos graves começaram a ser resolvidos (ou não) com a minha participação. Na resolução dos casos cirúrgicos eletivos, nas urgências cirúrgicas ou não, o anestesista e o clínico têm uma grande importância. E, em certos casos, fundamental.
Lembro-me, como se fosse hoje, quando fui chamado, às pressas, na Santa Casa, para aplicar uma anestesia em um baleado – dois tiros no tórax e três no abdome. Paciente chocado, Takaoka (cebolão) na mão, banco de sangue precário, sem oxímetro, sem capimógrafo e sem cardioscópio no primeiro mês de exercício profissional...
Estávamos ali: o paciente, os médicos – cirurgião, auxiliar e anestesista – e a morte. Nessa primeira batalha vencemos a morte, e o paciente ajudou bastante, porque tinha um coração de deus olímpico.
A morte não sabia que do lado contrário a ela estavam bons profissionais da Medicina. De minha parte, havia, como escudo à morte do paciente, a juventude, a fé em Deus e o aprendizado adquirido na FMRP/USP.
Vencemos e, com a vitória, veio a fama. E com a fama, o trabalho. E com ele, mais responsabilidades.
Trabalho e mais trabalho, 24 horas por dia, noites sem dormir, dias de angústia. Foi assim que conseguimos reanimar aquele garoto traquina atropelado pelo fusca vermelho. Com parada respiratória, traumatismo craniano, faltando energia na Santa Casa. Entubamos o rapazote e colocamos o respirador para funcionar (BIRD 7).
E agora? O que fazer?
Telefonei para a escola, a 80 quilômetros de distância, em Ribeirão Preto, onde deixei grandes amigos e ótimos profissionais, e solicitei um neurocirurgião. Duas horas e meia de espera, até que o eminente professor Doutor Norteli chegou. Tudo fora feito corretamente.“Assim que o edema cerebral desaparecer o menino irá acordar” – palavras do professor. E assim foi... Dessa maneira, em cidade pequena, as novas se espalham como penas ao vento.
Lembro-me bem daquela parturiente, primigesta, submetida a cesariana programada. Quando o cirurgião estava suturando a pele, houve parada cardíaca. Motivo por mim ignorado. A paciente era eutrófica, do ponto de vista cardiológico. Imediatamente foram feitas as manobras de reanimação. Como não houvera sucesso, o cirurgião abriu o tórax, o auxiliar afastou as costelas e eu fiz massagens diretamente sobre o coração. Êxito total, nem febre apresentou a paciente no pós-operatório.
Depois disso, aquela senhora teve mais seis filhos.
Quantos apuros passamos para pegar veia de R.M. desidratado, para dar anestesia nos casos de amigdalectomia, com a criança sentada.
Até que um dia uma criança sofreu parada cardíaca, mas a recuperamos totalmente, e hoje, esta é chefe de família, aqui mesmo na “terrinha”.
Como foi difícil mudar
Aos poucos fizemos o serviço de anestesiologia da Santa Casa, e durante 17 anos estive comandando sozinho o serviço. Com a vinda de outro colega a melhora foi nítida. Hoje, esse serviço é exemplo para toda região. Ao mesmo tempo nascia o serviço de Cardiologia e Eletrocardiografia. Logo vieram outros colegas cardiologistas e o serviço cresceu e melhorou.
Atualmente, é excelente, com vários cardiologistas.
Novos colegas, novas demandas. Como Diretor Clínico resolvi fazer o Pronto-Socorro funcionar 24 horas. E o primeiro passo foi dado com a colaboração dos acadêmicos do 6º ano de Medicina – naturais aqui de Taquaritinga – aos finais de semana. Hoje, o PS não é mais da Santa Casa, tornou-se municipal e funciona durante 24 horas, o ano todo.
Vitórias e fracassos
A morte será sempre a grande vencedora.
Aos de hoje, foi dado o privilégio de afastá-la temporariamente da vitória final. É isso que nos aproxima mais e mais dos nossos irmãos pacientes e é isso que nos leva diante do Criador com o pensamento do dever cumprido.
Os fracassos também devem ser recordados, para que nos coloquemos em nossos devidos lugares de pobres seres humanos. Fracasso e angústia foi o que senti ao assistir a morte prematura de dois colegas de infância desde o grupo escolar. Um com meningite e outro com melanoma. Pediam, imploravam ao amigo feito médico, que na sua pequenez nada podia fazer. E a morte é traiçoeira, não dá aviso.
Não me deu nenhuma chance na morte acidental de meu filho querido. Talvez tenha sido a forja, feita com o tempero da vida. Hoje, tenho orgulho de ser temente a Deus, de ter consciência de saber que nada sei. Que não sou o dono da vida ou da morte, e que recebi como talento divino o poder de sanar as dores do corpo e do espírito humano. Exercendo até hoje a arte de Hipócrates, como um Xamã moderno. A medicina mudou; melhorou muito e muito, mas o essencial para o exercício profissional, a relação médico-paciente, piora dia a dia.
Ah! Como eu era feliz e não sabia.
* Luiz Carlos Pires Gabriel é cardiologista