CAPA
PONTO DE PARTIDA
Entre os temas desta edição, detaca-se um debate sobre alimentos transgênicos
ENTREVISTA
Norman Gall: "O Brasil tolera muito a bagunça nas instituições públicas"
CRÔNICA
Uso subcutâneo, intramuscular, tópico...
BIOÉTICA
Medicina Fetal - Muito além do binômio
SINTONIA
Ressonância: Prêmio Nobel Magnetizado
DEBATE
Alimentos Transgênicos
450 anos de São Paulo
Pelas Ruas da Cidade
CONJUNTURA
Crianças trabalhadoras. Adultos desempregados
COM A PALAVRA
Duas Guerras
HISTÓRIA DA MEDICINA
O Código Sanitário de 1918 e a Gripe Espanhola
MÉDICO EM FOCO
Navegar é preciso
LIVRO DE CABECEIRA
Proust não é tempo perdido
CARTAS E NOTAS
Dr. Manoel (Dias) de Abreu e Dr. (Manoel de Abreu) Campanario
POESIA
Carlos Drumond de Andrade
GALERIA DE FOTOS
HISTÓRIA DA MEDICINA
O Código Sanitário de 1918 e a Gripe Espanhola
Ivomar Gomes Duarte*
Em 9 de abril de 1918, pelo Decreto Estadual nº 2918, o então governador do Estado de São Paulo, Altino Arantes, promulgava o novo Código Sanitário do Estado, com 800 artigos e de nítida inspiração no modelo de política médica praticado na Alemanha nos séculos XVIII e XIX, conforme descreve Rosen. O Código de 1918 foi o mais abrangente, detalhista e prescritivo de todos os instrumentos legais à disposição dos órgãos de fiscalização e controle das atividades relacionadas à saúde. Foi também o que vigorou durante o maior período de tempo - até 1970 -, depositário das melhores intenções e do mais avançado conhecimento da prática médico-sanitária disponível à época. Apesar disso, não conseguiu passar incólume durante uma calamidade ocorrida menos de seis meses após entrar em vigor. Entre outubro e dezembro de 1918, o país assistiu a uma grave epidemia de gripe, na verdade uma pandemia, denominada Gripe Espanhola, devido à origem e foco inicial da doença ter ocorrido naquele país.
Minha mãe, à época com 13 anos e residindo à rua Conselheiro Cotegipe, no bairro do Belenzinho, contou que uma das cenas mais chocantes de que tinha lembrança era de uma família da vizinhança em que todos os membros morreram atingidos pela Gripe Espanhola. Cessaram os ruídos e movimentos na casa e, passados alguns dias, vieram os agentes do Serviço Sanitário recolher os corpos, embrulhando-os em lençóis e empilhando-os numa carroça. Depois, veio outra carroça do Serviço de Desinfecção, recolheram como lixo alguns pertences e borrifaram alguma substância desinfetante. Por fim, pregaram várias tábuas lacrando portas e janelas da residência.
Dos acontecimentos relacionados e conseqüentes da epidemia, destaca-se a desorganização provocada na sociedade paulista de então, alterando significativamente rotinas, hábitos e costumes, inclusive tornando impraticáveis muitas das determinações do Código Sanitário vigente. A Medicina acadêmica tradicional e a estrutura e organização do Serviço Sanitário do Estado mostraram-se incapazes de responder à altura desse desafio epidêmico. E, segundo Bier, dado o estágio da ciência à época, o agente etiológico - um vírus - só foi descrito em 1931, aproximadamente 11 anos após o término da pandemia. Para comparação, o vírus da Sars, recente ameaça epidêmica, foi descrito em aproximadamente 120 dias.
Como a gripe gerou grande necessidade de médicos e profissionais para cuidar dos doentes - muitas vezes ocorria de toda uma família estar simultaneamente enferma -, as regulamentações referentes ao exercício das profissões de saúde, rigorosamente seguidas desde a origem do Serviço Sanitário, foram temporariamente esquecidas. O aparecimento de curandeiros, práticos e benzedeiras não só foi tolerado, como tacitamente passaram a ser bem-vindos principalmente para o atendimento aos mais pobres, pois o corpo médico da cidade e a estrutura sanitária oficial não davam conta de atender todos os doentes.
Segundo Bertolli Filho, "desacreditada a ideologia e a racionalidade das ciências da vida, que se tornaram praticamente impotentes diante dessa nova problemática, o saber leigo despontou enquanto possibilidade de intervenção na crise sanitária."
As normas previstas no Código Sanitário referentes ao funcionamento de leitos hospitalares de isolamento e as regras para instalação e funcionamento de hospitais, foram abandonadas momentaneamente. Dada a urgente necessidade de leitos, a Hospedaria dos Imigrantes, situada no bairro do Brás, reservou mil leitos para os atingidos pela gripe. De modo similar o Clube Paulistano, o Clube Germania, o Clube Palestra Itália, o Mosteiro de São Bento, o Ginásio do Carmo, o Liceu Coração de Jesus, o Colégio N. Sra. de Sion, o Colégio Mackenzie, o Colégio Jesuíta São Luiz, o Grupo Escolar do Ypiranga, o Grupo Escolar da Barra Funda, o Grupo Escolar da Penha, entre outros, foram transformados da noite para o dia em "hospitais provisórios de isolamento" (aproximadamente 30 em toda a cidade), com seus funcionários e professores não atingidos pela doença e ainda grupos de voluntários, passando a auxiliar no cuidado dos enfermos. Médicos e acadêmicos de Medicina foram destacados pelo Serviço Sanitário do Estado para dar assistência aos pacientes internados nesses locais.
A situação foi mais grave em relação ao controle das farmácias e de medicamentos, devido às divergências sobre o agente causal da doença. Inicialmente ocorreram acaloradas discussões entre os médicos homeopatas e alopatas. No seio da Medicina acadêmica tanto em São Paulo como na capital, Rio de Janeiro, os decanos da Medicina e da ciência não chegavam a um acordo sobre a etiologia da doença, que alguns atribuíam ao Bacilo de Pfeiffer e outros não aceitavam a tese. Também discordavam sobre as melhores ou possíveis terapêuticas, permitindo as mais variadas especulações sobre o tratamento. Diante disso multiplicaram-se as receitas, muitas sérias e algumas milagrosas, proliferaram tônicos e fórmulas especiais para a cura e prevenção da Gripe Espanhola, divulgadas inclusive pela imprensa leiga, as quais eram preparadas em laboratórios improvisados, boticas e até em residências, apesar de expressamente proibidos pelo artigo 161 do Código Sanitário de 1918.
Segundo memorialistas da época, os controles da alimentação pública e do abastecimento de gêneros alimentícios ficaram em situação muito crítica e os poucos que existiam anteriormente deixaram de ser executados. A produção e o transporte ficaram caóticos durante os meses da epidemia, caracterizando uma crise no abastecimento de gêneros alimentícios, principalmente pela falta de alho, cebola, canela, cravo, limão e outros produtos considerados terapêuticos pela população. Devido à desorganização distributiva, alguns comerciantes aproveitaram para subir os preços dos produtos escassos. Não haviam cocheiros em número suficiente para distribuição dos gêneros, uma vez que as carroças estavam sendo utilizadas na remoção de cadáveres e muitos carroceiros estavam gripados. Muitas lojas e armazéns foram fechados por causa da doença ou até mesmo da morte de seus empregados e proprietários.
Segundo Bertolli Filho, a análise de documentos da época permite destacar dois aspectos muito importantes: a negação do fenômeno por parte das autoridades sanitárias nos primeiros dias de sua eclosão e a contradição entre os vários números referentes aos mortos e atingidos pela epidemia. A Repartição de Estatística Demografo-Sanitária, sentindo-se incapaz de atuar com seus poucos funcionários durante a crise de 1918, apelou para o trabalho voluntário de jovens da Associação dos Escoteiros do Brasil na coleta de dados de morbidade e mortalidade gripal. Destaque-se que, passados 85 anos, nos vários estudos sobre essa epidemia, ainda persistem dúvidas sobre o real número de óbitos decorrentes da gripe espanhola em São Paulo.
A mais célebre das vítimas da epidemia foi o presidente da República eleito, o conselheiro Rodrigues Alves, ex-governador do Estado de São Paulo, que deveria tomar posse em 15 de novembro de 1918, porém foi acometido pela gripe no final de outubro. Por conta de seu frágil estado de saúde, o Congresso Nacional adiou a posse para 15 de dezembro e posteriomente para 20 de janeiro, mas o presidente eleito faleceu em 16 de janeiro de 1919, numa sequência de episódios que guardam incrível semelhança com a história recente de Tancredo Neves.
Código inclui a Influenza
Passada a crise e a cidade lentamente retornando à vida normal, o artigo 562 do Código Sanitário que trata das doenças de notificação compulsória, foi alterado com a inclusão da "Influenza". Por resolução do diretor geral do Serviço Sanitário do Estado, publicada em 19 de março de 1919, São Paulo passou a se interessar pela doença, agora sob vigilância por força de lei.
Apesar da Gripe Espanhola ter posto em cheque o Código Sanitário de 1918, ele consolidou-se com o passar dos anos, introduzindo muitas novidades no campo da saúde pública. Com os anos, seu texto sofreu múltiplas emendas até 1970, quando foi revogado.
Conseqüente à epidemia de gripe nos últimos meses de 1918 e por não existirem à época leis de amparo social como seguro-doença, seguro-desemprego ou licença-médica remunerada, nos primeiros meses de 1919 a economia de São Paulo estava de tal modo desorganizada que acabou gerando uma "epidemia de calotes, falências, desemprego e inadimplências", mas isso é assunto para a história da economia.
Código Sanitário
O Código Sanitário de 1918 sistematizava as ações de profilaxia geral das doenças transmissíveis, como a notificação, o isolamento, a desinfecção e a vigilância médica. Alguns itens do Título IV, Da Prophilaxia Geral das Doenças Transmissíveis, constantes dos artigos 554 ao 613 detalhavam essa sistematização, embora não mencionasse a Influenza.
Da notificação
Artigo 555 - Ocorrendo um caso de doença transmissível, será o facto levado immediatamente ao conhecimento da auctoridade sanitária ou do Prefeito Municipal, sendo obrigado a fazer esta notificação:
a) o responsável pela casa;
b) o proprietário da habitação coletiva;
c) o médico que prestou cuidados à pessoa acommetida.
Artigo 562 - São consideradas doenças de notificação compulsória: a varíola, a escarlatina e as febres eruptivas; a peste; a cholera; a febre amarella; a diphteria; a febre typhoide e as doenças paratyphicas; a tuberculose aberta; a lepra; o impaludismo; a ancylostomose; a ophtalmia granulosa (trachoma) e a conjuntivite purulenta; as dysenterias; a paralisia infantil ou Doença de Heine Medin; a meningite cérebro-espinhal epidêmica; a coqueluche e a parotidite nos collégios, asylos e habitações collectivas; e, as epizotias que se transmitem ao homem.
Do isolamento
Artigo 569 - É obrigatório o isolamento do enfermo de qualquer das doenças comprehendidas no artigo 562 com excepção da ancylostomose, dysenteria e trachoma.
Da desinfecção
Artigo 588 - Ordenada a desinfecção pela auctoridade sanitária, ninguém poderá della se eximir, nem embaraçar, perturbar ou impedir sua execução, sob pena de multa de duzentos réis, podendo a auctoridade sanitária requisitar auxílio da polícia para que se execute a operação sanitária.
Da vigilância médica
Artigo 604 - As pessoas sujeitas à vigilância médica poderão retirar-se do prédio ou localidade em que se acharem desde que indiquem à auctoridade sanitária o seu ponto de destino e obtenham a necessária auctorização.
*Ivomar Gomes Duarte é especialista em Saúde Pública pela USP e médico sanitarista da Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo.