CAPA
PONTO DE PARTIDA
Entre os temas desta edição, detaca-se um debate sobre alimentos transgênicos
ENTREVISTA
Norman Gall: "O Brasil tolera muito a bagunça nas instituições públicas"
CRÔNICA
Uso subcutâneo, intramuscular, tópico...
BIOÉTICA
Medicina Fetal - Muito além do binômio
SINTONIA
Ressonância: Prêmio Nobel Magnetizado
DEBATE
Alimentos Transgênicos
450 anos de São Paulo
Pelas Ruas da Cidade
CONJUNTURA
Crianças trabalhadoras. Adultos desempregados
COM A PALAVRA
Duas Guerras
HISTÓRIA DA MEDICINA
O Código Sanitário de 1918 e a Gripe Espanhola
MÉDICO EM FOCO
Navegar é preciso
LIVRO DE CABECEIRA
Proust não é tempo perdido
CARTAS E NOTAS
Dr. Manoel (Dias) de Abreu e Dr. (Manoel de Abreu) Campanario
POESIA
Carlos Drumond de Andrade
GALERIA DE FOTOS
ENTREVISTA
Norman Gall: "O Brasil tolera muito a bagunça nas instituições públicas"
Norman Gall é jornalista, diretor executivo e um dos fundadores do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. Também é editor correspondente da revista Forbes em São Paulo e foi consultor da Exxon Corporation, do Banco Mundial e das Nações Unidas. Nasceu em Nova York, morou em Porto Rico, Venezuela e desde 1977 reside no Brasil. Conduziu pesquisas para American Universities Field Staff (AUFS) no Peru, Venezuela, República Dominicana, Colômbia, Bolívia, Chile e Brasil. Desenvolveu estudos sobre o crescimento do Brasil como força do hemisfério para o Carnegie Endowment for International Peace. Tem reportagens publicadas no New York Times, Wall Street Journal, Washington Post, The Economist, The Observer (Londres), Le Monde, Die Zeit e O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, entre outros jornais europeus e latino-americanos.
SER MÉDICO. Em uma palestra sobre Imprensa e Democracia, durante um encontro no Peru em novembro do ano passado, o sr. falou que a América Latina "é uma das regiões mais privilegiadas do mundo, com abundância de recursos e forte sentido de justiça social, porque não tem grandes conflitos étnicos ou religiosos". Por que, então, essa região não dá certo?
NORMAN GALL. O principal problema é que as instituições são fracas. Não vejo a América Latina como um fracasso, mas em plena evolução. Porém, as lideranças insurgentes têm pouca paciência. É costume dizer que tudo é fracasso, seja em eleições ou revoluções. O Lula disse que todos os presidentes anteriores eram covardes, que não fizeram nada. Sabemos que isso não é verdade, que há um processo em evolução. Nosso Instituto está fazendo uma pesquisa sobre padrões de consumo na periferia de São Paulo e, desde o fim da inflação crônica, compra-se mais e há melhorias na qualidade de vida da população. Acredito que o ódio é tão necessário à psique humana como o amor, mas as coisas têm de se manter enquadradas na realidade. Às vezes, o discurso político vai muito além da realidade.
SER. O senhor está falando de que instituições?
GALL. Estou falando do ensino público, do Poder Judiciário, da Polícia, da Segurança Pública, dos sistemas elétrico, de saúde, de eleições e dos partidos políticos. Todos têm problemas institucionais muito sérios.
SER. Quem tem esse forte sentido de justiça social? O povo?
GALL. Sim, existe um grau de compaixão para com o pobre que não existe na Índia, na África, na China. Esse sentido de justiça que tem o latino-americano é ainda mais extraordinário no povo brasileiro, com sua história de escravidão, seu atraso em educação e em outras áreas. O problema está no exagero dos direitos adquiridos que impedem o investimento na sociedade.
SER. O sr. poderia exemplificar esses exageros?
GALL. Por exemplo, o Brasil gasta em Previdência 12% do Produto Interno Bruto (PIB), o mesmo que gasta um país europeu com uma população muito mais velha. Gasta, ainda, 8,6% do PIB em juros da dívida pública e transfere 6% para Estados e municípios. Muitos dos cinco mil e tantos municípios brasileiros não deveriam existir porque não tributam e dependem de transferências de Brasília. Então, não há como investir no futuro ou em educação. Se em vez dos 12% do PIB gastos na Previdência, o Brasil gastasse 1% menos e colocasse o dinheiro no ensino público, isso poderia significar um investimento em educação da ordem dos 25 ou 30%. No Nordeste, gasta-se cerca de 150 dólares por aluno/ano; em São Paulo e Rio de Janeiro, de 400 a 500 dólares. O que se pode fazer com essa mixaria? O Brasil precisa investir mais em sua gente. O Lula, com cinco anos de escola primária, poderia virar o grande presidente educador do país, porque deveria ter essa sensibilidade social, mas ele vive viajando. O problema do Lula vai começar depois de ter visitado os 140 países das Nações Unidas e tiver de enfrentar a realidade e conviver com as dificuldades da Reforma Tributária. Para os padrões da América Latina, os impostos brasileiros são altos, muitos são maiores que dos EUA e do Japão. O problema é que se gasta muito mal e em coisas frívolas. O Brasil tolera muito a bagunça nas instituições públicas.
SER. A tolerância com a bagunça institucional não contraria o sentido de justiça social que o sr. diz que o brasileiro tem? Sentido de justiça também não significa cobrar da instituição?
GALL. Existe muita ambivalência. A ambivalência faz parte da bagunça. Por exemplo, um professor no Estado de São Paulo legalmente tem direito a faltar 30% dos dias do calendário escolar. A Assembléia Legislativa aprovou uma Lei dando direito ao professor, além dos 30% dos dias, de faltar quando quiser, se apresentar um atestado médico. Quando falta um professor, a escola vira uma bagunça. Os corredores ficam cheios de alunos que fazem barulho e outros professores não conseguem dar aula. Isso se multiplica na periferia. O brasileiro tem sentido de justiça social, mas também tem grande tolerância com a bagunça. Uma grande parte das pessoas que vivem na periferia é boa, nasceu em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, possivelmente completou dois ou três anos de ensino numa escola rural e não tem como cobrar desempenho da escola ou do posto de saúde. Elas aceitam a situação porque sempre tiveram esse papel na vida. Isso prejudica a qualidade do ensino, do atendimento médico. Os políticos não acham isso importante. A cidade de São Paulo tem 55 vereadores, eleitos em meio de 10 milhões de pessoas. Cada um deles tem direito a 21 assessores mas não tem nenhuma responsabilidade em representar um grupo específico da população. Eles passeiam pela periferia em época de eleições e, depois, não aparecem mais. Essa população que tem escolas fracas, postos médicos que não dão serviços e com muitas filas, não tem onde reclamar, porque não há instância de responsabilidade.
SER. O senhor lançou a idéia de criar um novo Estado dentro da Grande São Paulo.
GALL. Alguns amigos meus gostam dessa idéia, mas não a apóiam publicamente. Na região metropolitana de São Paulo há 18 milhões de habitantes, número igual ao da população da Venezuela. Esse regime metropolitano é um oceano incoerente e deve se dividir em municípios que tenham seus próprios vereadores e suas linhas de responsabilidade política. Devem também formar um Estado da Federação, cobrar e receber ICMS, ter direito a três senadores, aumentando sua representação no Parlamento, para que a população possa cobrar deles. Não adianta fazer da região metropolitana de São Paulo uma grande sopa, tem de dividir em distritos. Capão Redondo e Guaianazes não são distritos, não têm fronteiras, estrutura administrativa ou linhas de responsabilidade. Isso é parte da bagunça de que estamos falando. O Brasil teria um grande futuro se enfrentasse esses problemas para estruturar-se melhor.
SER. O Instituto Fernand Braudel, que o sr. preside, desenvolve um trabalho para redução da violência e criminalidade no município de Diadema, financiado pelo Banco Mundial.
GALL. Estamos fazendo um Fórum de Segurança Pública em Diadema que foi financiado pelo Banco Mundial, há alguns anos, mas continuamos com nossos próprios recursos e ultimamente com a ajuda da Prefeitura local. Em três anos, esse programa conseguiu reduzir o número de homicídios em 50% no município. A média mensal era 40 homicídios. Em novembro de 2003 houve só cinco.
SER. Como foi esse trabalho?
GALL. Diadema apresentava uma das taxas de homicídios mais altas do planeta - cerca de 140 por 100 mil habitantes. Alguns políticos argumentavam que o município era usado para desova de cadáveres; que matavam gente em São Paulo e jogavam em Diadema. Mas fizemos uma pesquisa, contratamos estagiários estudantes de Direito para examinar os inquéritos da polícia, um por um. Conseguimos provar que eram pessoas de Diadema, principalmente, que estavam sendo assassinadas. Então, os vereadores, a Prefeitura e os grupos cívicos da cidade assumiram essa responsabilidade e tomaram medidas. Houve grande ajuda da comunidade da Favela Naval, onde filmaram a polícia matando. O Governo do Estado mandou um delegado da Polícia Civil e um coronel da Polícia Militar excelentes. Nos reunimos com eles mensalmente na Câmara dos Vereadores e discutimos o que fazer. Depois de muitos debates, a Câmara e a Prefeitura aprovaram uma Lei que fecha os bares às 11 horas da noite. Os bares eram palcos de grande parte dos homicídios. No mês de novembro de 2003, só cinco homicídios foram registrados na cidade. Em anos anteriores a média era de 40. Isso mostra que a população local está consciente e lutando para resolver o problema.
SER. Em geral, só medidas como aumento do efetivo de policiais, viaturas, armas ou computadores, não refletem em redução de violência ou maior elucidação dos casos pela polícia. O senhor acha que a polícia deve ser repensada? Fica a impressão de que ela age com idéias antigas e não agrega setores da sociedade que poderiam aportar muito para ajudar a solucionar os problemas.
GALL. Existem problemas no processo penal, nos tribunais e também do corporativismo da polícia, tanto a Civil como a Militar. Acho que tem algo de melhoria nesse padrão de comportamento, mas o problema é muito antigo. Por exemplo, no passado, a polícia do Rio de Janeiro foi paga para castigar os escravos. Os padrões de crueldade da polícia são tradições que vêm de longe, de anos atrás. Essas coisas não mudam de um governo para outro. Pelo menos há um consenso nacional de que é necessário ter uma continuidade institucional, que hoje não existe, nas políticas públicas, tanto da educação quanto da segurança, para que nenhum partido político tente tirar proveito dessa situação.
SER. O que poderia ser feito para quebrar essas estruturas que não são eficientes para aquilo que se propõem, como a polícia?
GALL. Poderíamos melhorar utilizando dados criminalísticos e sistemas de informações dentro das polícias. É necessário profissionalizar a polícia, dar oportunidades e criar um sistema de incentivo para que aquele que entra como soldado tenha possibilidade de subir na vida como muitos policiais no mundo. Existem bons policiais que querem trabalhar direito; tem professores e diretores de escolas que são excelentes e trabalham em condições dificílimas. O problema é que eles estão vetados do resto, porque existe uma isonomia. Sou contra a isonomia, acho que o bom desempenho dever ser premiado, tanto pelo prestígio moral como financeiro. Isso seria inverter os incentivos perversos a que muitas instituições estão vinculadas. O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Sidney Sanchez, esteve em nosso Instituto recentemente e falou que o Judiciário está sobrecarregado de recursos frívolos e desnecessários que os advogados cobram para apresentar aos tribunais. Não se pode apresentar o mesmo pleito milhões de vezes. Enfrentar os incentivos perversos e os direitos adquiridos dos advogados a fazer apelações frívolas que sobrecarregam os tribunais é uma questão de simples racionalidade. Eles cobram para fazer isso e a OAB não faz nada a respeito.
SER. O sr. também defende a idéia de unificar as polícias e criar o Ministério de Segurança.
GALL. Isso é algo que nosso Instituto propõe com muita convicção, porque é impossível para um ministro da Justiça conduzir um programa de segurança pública. Um ministério que cuida de índios, de projetos de lei, de reformas no judiciário, de penitenciárias, de meio ambiente e de muitas outras coisas não pode se concentrar nos problemas mais graves do país. Esse ministério deve ser profissional, apolítico e enfocado ao problema para dar apoio às polícias estaduais. Além disso, propusemos a criação de um Instituto Nacional de Segurança Pública para dar reciclagem e preparo avançado aos policiais de destaque, inclusive, passando um ou dois anos em outros países para entender de técnicas policiais sofisticadas que o Brasil precisa. Isso permitiria utilizar informações de forma inteligente, preparar soldados e oficiais para agir preventivamente, trabalhar com as prefeituras sobre problemas locais e criar uma infra-estrutura efetiva de segurança. Isso não envolve tanto compra de viaturas e computadores. As polícias precisam de uma consciência profissional e uma força institucional que não reproduza o corporativismo.
SER. Como se pode fazer uma segurança pública preventiva?
GALL. Nosso instituto está completando uma pesquisa ambiciosa sobre a tolerância dos homicídios na periferia de São Paulo e a resposta é muito simples: os assassinatos e a violência privados invadem os espaços públicos onde as instituições não existem ou não são efetivas. Eu trabalhei no Peru há muitos anos, desde 1963. Há pouco tempo visitei uma escola pública em Lima que vi ser construída pela comunidade de uma favela, entre 1972 e 1973. Agora a escola é grande e bonita, não tem vandalismo ou invasão de pessoas de fora. Perguntei ao encarregado da Delegacia de Polícia desse bairro, quantos homicídios foram registrados no local no último ano. Ele disse que há dois anos não registram homicídios. É um bairro grande. Em um bairro similar a esse em São Paulo, registra-se 50 a 100 homicídios em um ano. O problema não é só a pobreza, mas principalmente a cooperação institucional entre o Estado e a sociedade.