CAPA
EDITORIAL
Ponto de Partida
ENTREVISTA
Esmeralda Ortiz
CRÔNICA
Ruy Castro*
SINTONIA 1
Reutillização de Descartáveis
SINTONIA 2
Entre Paris e a roça
CONJUNTURA
Anabolizanres: perfil do usuário
POLÍTICA DE SAÚDE
Crise de Identidade na Saúde
EM FOCO
Arte nos hospitais
HISTÓRIA DA MEDICINA
A globalização das epidemias
CULTURA
Lasar Segall
LIVRO DE CABECEIRA
Moacyr Scliar e Renato Nalini
TURISMO
São Francisco do Sul
CARTAS & NOTAS
Destaque para nova gestão Cremesp e referências bibliográficas consultadas
CREMESP EM FOCO
Flamínio Fávero
POESIA
Trecho de "A Máquina Fotográfica"
GALERIA DE FOTOS
HISTÓRIA DA MEDICINA
A globalização das epidemias
Globalização das Epidemias
Tão antiga quanto progressiva
Stefan Cunha Ujvari*
Neste ano foi possível constatar o quão veloz as epidemias espalham-se pelo planeta. Os aviões espalharam a pneumonia asiática pelos continentes em questão de dias, alarmando sobre os riscos da globalização das epidemias. Porém, uma retrospectiva da história da humanidade, principalmente em relação à história do comércio e dos meios de locomoção, demonstra que esse fenômeno teve início na Roma antiga e vem gradativamente ganhando o globo terrestre.
O Império Romano estendeu suas fronteiras da Inglaterra ao Oriente Médio e norte da África. Suas vias pavimentadas encurtaram as distâncias e suas rotas marítimas fizeram com que estas regiões se interligassem. Literalmente todos os caminhos levavam a Roma e, por estes, transitavam os microrganismos. As rotas romanas trouxeram os vírus da varíola e sarampo para o continente europeu, doenças que foram primeiramente descritas no continente asiático, onde provavelmente os vírus surgiram quando os animais foram domesticados.
Após um período livre de pandemias, durante o feudalismo, a Europa voltou a ver renascer as cidades medievais e suas rotas comerciais. No século XIV, navios genoveses trouxeram a bactéria da peste nas pulgas dos ratos vindos do Mar Negro. As estradas levaram a doença para todo o continente europeu em apenas dois anos. Um terço da população européia morreu da doença, causando a extinção de cidades e vilas inteiras.
América, América
Com o descobrimento da América, as embarcações européias singravam o mar rumo aos territórios recém-descobertos e nelas vieram os microrganismos. Na primeira metade do século XVI chegavam aos índios americanos a varíola, o sarampo, a gripe, a peste e muitas diarréias. Os astecas e os incas foram conquistados com o auxílio das epidemias de varíola e sarampo que dizimaram grande parte de sua população sem imunidade a essas doenças. Os astecas foram reduzidos de 25 milhões para 8 milhões e os incas, de 8 milhões para um milhão. Mais da metade dessas mortes foi atribuída à varíola e ao sarampo.
Uma grande controvérsia ainda persiste sobre a sífilis, se foi ou não trazida da América para a Europa em navios espanhóis, após a descoberta da América. Surgiu na última década do século XV nas cidades portuárias do Mediterrâneo. Com a conquista da cidade de Nápoles (1494) pelo exército francês, seus combatentes mercenários comemoraram a vitória pelos prostíbulos da cidade. Depois, retornaram para suas cidades européias e incumbiram-se de espalhar a doença pelo continente.
Os microrganismos ganhavam nosso planeta por meio das vias marítimas e terrestres construídas pelas mãos do homem. No século XVII chegavam embarcações do tráfico negreiro para a colônia de Barbados e, com elas, o vírus da febre amarela. A doença disseminou-se pelas ilhas caribenhas, onde permaneceu causando epidemias até o início do século XX. De tempos em tempos, a febre amarela atingia as cidades sulinas dos EUA. Em meados do século XIX, os Estados Unidos descobriram suas minas de ouro na Califórnia. As montanhas rochosas e a ausência do canal do Panamá fizeram com que as embarcações americanas partissem do sul da nação, passando pelas ilhas caribenhas e contornando a América do Sul para chegar ao território aurífero. Esses navios trouxeram o vírus da febre amarela para as cidades brasileiras. O Rio de Janeiro conheceu a doença em 1850 e foi acometido por epidemias anuais a cada verão, até o início do século XX, época em que os trabalhos de Oswaldo Cruz puseram fim às epidemias urbanas da febre amarela.
Século após século, os microrganismos foram ganhando o globo terrestre com o auxílio do homem. Com os avanços tecnológicos, a velocidade de disseminação também sofreu um acréscimo considerável. As rotas comerciais terrestres e lamacentas da Idade Média fizeram com que a peste do século XIV demorasse dois anos para tomar todo o continente europeu, matando um terço de toda sua população. Com a revolução industrial do século XIX, as embarcações, agora a vapor, levaram o bacilo da cólera para as Américas. No Brasil, a doença chegou em 1855 e sua alta mortalidade contribuiu para que a população abandonasse o hábito dos enterros nas igrejas, transferindo-os para os cemitérios.
As mesmas embarcações a vapor fizeram com que a peste, iniciada no interior da China e disseminada até Hong Kong, percorresse os mares e fosse levada pelo oceano Pacífico para os Estados Unidos e, pelo oceano Índico, para a Índia e Europa. De Portugal partiu rumo ao Brasil e África. Em pouco mais de um ano partiu de Hong Kong e percorreu o globo terrestre (1899/1900). Já a gripe espanhola de 1918 levou apenas alguns meses para percorrer o mundo e matar mais de 20 milhões de pessoas - mais da metade na Índia. E agora, com a aviação, vimos a pneumonia asiática partir de um hotel de Hong Kong para atingir a América e Europa em questão de dias. O vírus da Aids alastra-se pelos países mais pobres há duas décadas.
Os mosquitos brasileiros foram infectados pelo vírus da dengue que há anos vêm se alastrando a partir do sudeste asiático. Nossas epidemias anuais de dengue são os capítulos finais da globalização lenta dos vírus da doença. Agora, nossos mosquitos esperam a chegada do vírus da encefalite do oeste do Nilo. Esse vírus, originário da África, chegou na cidade de Nova York em 1999. Sua transmissão ao homem ocorre pelos mosquitos, mas as aves migratórias também adoecem e levam o vírus até longas distâncias. Foi assim que a doença foi se espalhando pelos Estados Unidos desde 1999. Ano a ano disseminou-se em direção ao sul e para a costa oeste, até tomar a grande maioria dos Estados americanos. Agora o Brasil é o próximo alvo das aves migratórias que partem dos Estados Unidos em direção ao nosso país.
*Stefan Cunha Ujvari, infectologista do Hospital Carlos Chagas e do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e autor do livro "A História e suas epidemias - a convivência do homem com microrganismos", editora Senac.