CAPA
EDITORIAL
Ponto de Partida
ENTREVISTA
Esmeralda Ortiz
CRÔNICA
Ruy Castro*
SINTONIA 1
Reutillização de Descartáveis
SINTONIA 2
Entre Paris e a roça
CONJUNTURA
Anabolizanres: perfil do usuário
POLÍTICA DE SAÚDE
Crise de Identidade na Saúde
EM FOCO
Arte nos hospitais
HISTÓRIA DA MEDICINA
A globalização das epidemias
CULTURA
Lasar Segall
LIVRO DE CABECEIRA
Moacyr Scliar e Renato Nalini
TURISMO
São Francisco do Sul
CARTAS & NOTAS
Destaque para nova gestão Cremesp e referências bibliográficas consultadas
CREMESP EM FOCO
Flamínio Fávero
POESIA
Trecho de "A Máquina Fotográfica"
GALERIA DE FOTOS
POLÍTICA DE SAÚDE
Crise de Identidade na Saúde
Saúde em Crise de Identidade
"Pouco a pouco e de repente o mundo se faz grande e pequeno, homogêneo e plural, composto e multiforme. Simultaneamente à globalização, os pontos de referência se dispersam dando a impressão de que se movem, flutuam, se perdem". (Ianni, 1999)
Edmundo Gandra*
Em muitos setores ouve-se declarações de que um novo mundo está se configurando, acontecimento que se denomina globalização. É importante diferenciar, conforme propõe Ulrich Beck (1998), os termos globalidade, globalismo e globalização.
Globalidade significa que "vivemos em uma sociedade mundial, onde 'mundial' significa 'diferença e pluralidade', enquanto 'sociedade', significa estado de 'não-integração', razão pela qual se pode entender a globalidade como 'pluralidade sem unidade'".
Beck entende por globalismo "a concepção pela qual o mercado mundial desaloja ou substitui a atividade política". Por último, globalização constitui "os processos em razão dos quais as nações soberanas se interrelacionam e se interconectam por meio de agentes transnacionais".
Como esta sociedade politicamente multidimensional, policêntrica e contigente emergiu? Não existe consenso. Castells sustenta que "teve origem na coincidência histórica de três processos independentes: a revolução da tecnologia da informática; a crise econômica tanto do capitalismo como do modelo estatal e sua conseqüente reestruturação; e o aparecimento de movimentos sócioculturais como o liberalismo, o feminismo, o ambientalismo e o de direitos humanos. A interação entre esses processos deu luz à sociedade de rede, à economia informacional/global e à cultura da realidade virtual" (Castells, 1998). Este novo mundo tem impactos profundos sobre a teoria e a prática da saúde coletiva.
A conjuntura atual requer da saúde coletiva um pensamento suficientemente amplo para interpretar e explicar a situação dos seus serviços; apoiar a melhoria das condições de vida, cada vez mais deterioradas, da maioria das populações; promover e fortalecer expressões individuais e coletivas que dêem impulso à saúde e à construção de um estado democrático coerente com essas necessidades e direitos. Ao mesmo tempo, deve ser capaz de criar redes de cooperação internacional nesse campo.
Parece que as bases filosóficas e teóricas que sustentaram o percurso da saúde pública durante o século XX não têm forças para suportar o embate atual do globalismo. Em efeito, a saúde pública que guiou nosso pensamento e ação na América Latina durante o século XX se sustentou em um tripé constituído:
o Pela causa filosófica-teórica da doença e pela morte como ponto de partida para a compreensão da saúde;
o Pelo método positivista como base para explicar a "verdade" sobre o risco e pelo funcionamento estrutural como eixo de compreensão da sociedade;
o Pela aceitação do poder do Estado como força privilegiada para calcular o risco e garantir a prevenção.
O sanitarista, então, tornou-se um agente do Estado e da ciência. Um interventor técnico-normativo que conseguia efetivar o poder do Estado nas instituições de atenção médica e na população, além de executar a "verdade" da ideologia científico-tecnológica positivista com a finalidade de prevenir os riscos de doenças da população ? transformada, por meio de seus atos, em objeto.
Em tempos de globalização, esse tripé deve ser repensado. Parece que chegamos a algumas conclusões: a) não é possível alcançar a saúde unicamente pelo desconto da doença; b) a aproximação positivista que exclui o sujeito, enquanto promotor de seu próprio conhecimento e ação, também tem sido criticada; c) O Estado, suposto "mago e exorcista do risco e da doença", debilitou-se fortemente em sua autonomia e soberania, transformando-se em um intermediário de interesses distintos, em geral contraditórios; d) surgiram novos poderes, representados por identidades projetivas que defendem aspectos intimamente ligados ao seu mundo, projetando suas ações políticas a outros agentes e setores da sociedade.
Nosso potencial para apontar o fortalecimento da saúde das coletividades, das instituições debilitadas e o próprio desenvolvimento de nossa profissão radica na necessidade de nos transformar em intérpretes-mediadores dessas novas forças que surgem. Isso nos obriga a mudar a forma de ver, interpretar e atuar:
A visão: a saúde pública convencional, que viu a população como objeto a passar por intervenção, agora precisa observar como os seres individuais e coletivos produzem sua saúde no cotidiano.
A interpretação: É fundamental compreender as linguagens da vida natural. Nesse campo, tanto a ecologia como a biologia avançaram na compreensão da vida como rede inter-dependente, sistema complexo etc, avanços estes que, em alguma medida, vão integrando-se à Medicina Social (Almeida, 1999).Também é fundamental mudar a forma de interpretar a vida social. Nesse aspecto, as ciências sociais avançaram e discutem a necessidade de se levar a cabo uma dupla hermenêutica. Uma primeira com a população que forja seu mundo de "verdades", por meio das quais cria representações (metáforas) próprias para explicar sua saúde e doença. Uma segunda, com vistas a enriquecer, com o subsídio da Ciência e da técnica, as formas de vida cotidiana dos grupos sociais.
A ação: procedendo dessa forma conseguiríamos uma maior interconexão da saúde com a vida social. Porém, há necessidade de desenvolver novos instrumentos filosóficos, teóricos, metodológicos e técnicos para levar essa tarefa.
Dessa forma, o tripé tradicional deve transformar-se para dar um passo a algo diferente fundamentado em: a) causa filosófico-teórica da saúde e da vida, sem descuidar a prevenção da doença; b) métodos que integrem e sustentem as teorias sociais e científicas que interpretam e explicam a ação e a estrutura social; c) uma ação que integre diversos poderes e agentes ? indivíduo, movimentos sociais e poder público local ? que promovem a saúde, controlam socialmente o cumprimento dos deveres do Estado, lutam por sua democratização e entram em acordo/desacordo com os poderes supra e infranacionais.
Esse novo tripé resgata os aspectos positivos alcançados pela saúde pública, criticam os negativos. O novo mundo global está produzindo imensas mudanças na vida social, cultural, política e econômica, mas também está abrindo diversos espaços de solidariedade. Recordemos as últimas manifestações massivas de oposição à guerra contra o Iraque. A globalidade dessas manifestações se caracterizam pela variedade de representantes que coligem em um proposta solidária e, ao mesmo tempo, caminhos desconhecidos de união e organização começam a ser percebidos e inventados, os mesmos que nos obrigam a despertar a criatividade, sempre presente na espécie humana. A Medicina Social deve apoiar a criação de poderes e as ações que possibilitem uma glocalização (Roberttson, 1992) mais humana, ou seja, globalizarmos a partir de nossas identidades.
*Edmundo Gândra é membro da Oganização Panamericana de Saúde/Organização Mundial da Saúde no Equador e professor da Universidad Nacional de Loja, Equador.
* Resumo da Conferência "Juan César García VIII Congresso Latinoamericano de Medicina Social".