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Edição 89 - Outubro// de 2019

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História

Uma pandemia controlada pela ciência

Por Vanessa Truda, Rachel Juliana Sachetti, Simone Tenore, Paulo Roberto Abrão Ferreira e Concília Ortona*

A síndrome da imunodeficiência adquirida (aids) foi descrita pela primeira vez em 5 de junho de 1981, nos Estados Unidos, quando o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), em Atlanta, publicou artigo em seu relatório semanal de morbidade e mortalidade, descrevendo casos de pneumonia por Pneumocystis carinii (hoje Pneumocystis jirovecii) – infecção até então rara – entre cinco homens homossexuais saudáveis de Los Angeles. No mesmo dia, Alvin Friedman-Kien, dermatologista de Nova York, informou ao CDC sobre vários casos de Sarcoma de Kaposi, incomum entre jovens, associados ao enfraquecimento do sistema imunológico, em Nova York e na Califórnia. Em uma semana, esta agência do governo recebeu relatos semelhantes dos quatro cantos do país.

Foi o princípio de uma epidemia sem precedentes, que matou entre 32 e 44 milhões de pessoas no mundo até 2018, segundo a Joint United Nations Program on HIV/
AIDS (Unaids). Previsões até mais sombrias haviam sido esboçadas até o pico de mortes, em 2004, quando o índice caiu em 56%.

Foram fundamentais para o avanço no diagnóstico a identificação do vírus da imunodeficiência adquirida (HIV), em 1983; da molécula CD4 como receptor primário usado pelo HIV para atingir os linfócitos T, suas principais células- alvo, em 1984; além da introdução do teste sorológico ELISA e do sequenciamento do genoma viral, em 1985.

Assim, as primeiras tentativas de tratamento se iniciaram em 1987, com a aprovação da zidovudina (AZT). Apesar das expectativas de prolongar a sobrevida, sua eficácia clínica não se mostrou tão promissora – embora a droga tenha se mostrado essencial quando inserida, em 1994, na estratégia de prevenção da transmissão vertical.

 


1: Gravura intitulada Ignorance = Fear, Silince = Death (Ignorância = Medo, Silêncio =
Morte), na qual o artista Keith Haring buscou conscientizar a sociedade sobre a aids, nos primeiros anos da epidemia

Uma das grandes “revoluções” em tratamentos correspondeu à chegada da terapia antirretroviral combinada de alta potência (TARV), cujo uso clínico iniciou-se em 1996, reduzindo, em três anos, as taxas de mortalidade, diagnósticos definidores da aids e hospitalizações nos países industrializados, na ordem de 60 a 80%.


ANTIRRETROVIRAIS GENÉRICOS
No Brasil, a TARV passou a ser distribuída pelo SUS, em 1996, a pacientes que preenchiam critérios estipulados. Em 2001, o País começou a produzir e distribuir antirretrovirais genéricos, depois de a Comissão de Direitos Humanos da ONU definir o acesso como “questão de direitos humanos”, levando o País a pressionar multinacionais detentoras das patentes das drogas.


A partir de 2013, o tratamento tornou-se indicado para todos os pacientes com HIV, em
um programa governamental reconhecido mundialmente como um dos mais abrangentes e avançados.


Em relação à prevenção, medidas voltadas a situações e a populações de risco foram adotadas em 2010 e 2017, respectivamente, a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) e Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ao HIV. No entanto, a tão esperada vacina ainda está em fase de pesquisa, em estudos em várias partes do mundo.


Com a disponibilização de uma terapia tolerável e eficaz, a infecção pelo HIV deixou de ser uma doença terminal, com um prognóstico reservado, para tornar-se uma doença crônica. Apesar da ausência de cura, pacientes em uso adequado dos antirretrovirais e sem outras comorbidades significativas podem apresentar uma expectativa de vida semelhante à da população em geral.


Por outro lado, o aumento das comorbidades associadas à idade e à evolução mais precoce nas doenças degenerativas nesta população tornaram as doenças cardíacas, neoplásicas, hepáticas, renais, ósseas e o declínio neurocognitivo uma preocupação mais frequente.


Mesmo com os avanços na ampliação ao acesso às medicações, uma parcela significativa é diagnosticada tardiamente. De acordo com relatório publicado pela Unaids em 2017, 15% da população infectada desconhecem seu estado sorológico e 53% ainda não atingiram a supressão viral.


Dados do Ministério da Saúde apontam que, até 2015, cerca de 20% dos pacientes ainda eram diagnosticados com CD4 abaixo de 200 células/mm³, ou seja, uma apresentação tardia da doença.

 


Foto do projeto The Ward, de Gideon Mendel, iniciado em 1993, que buscou retratar o cotidiano de pacientes com aids nas enfermarias do Middlesex Hospital, em Londres

EQUÍVOCOS E DISCRIMINAÇÃO
Equívocos históricos quanto à transmissão casual do vírus – abraço, picada de
mosquito – foram protagonizados mesmo por especialistas no início da epidemia,
perdidos em meio a uma avalanche de pacientes e à falta de informações sobre a etiologia e o agente causador do que depois se provou ser uma síndrome.


A desinformação levou ao estigma das “populações de risco”, como usuários de
drogas injetáveis, hemofílicos e, em especial, homossexuais masculinos – a primeira
manchete do The New York Times destacou o termo GRID (sigla em inglês para Deficiência Imunológica Relacionada aos Gays) –, e, em decorrência, ao atraso do reconhecimento das mulheres e seus bebês como também expostos ao vírus.


Ainda que, no princípio, a epidemia tenha atingido de maneira majoritária os homossexuais, porta-vozes antes improváveis da causa da aids, como o adolescente
hemofílico Ryan White, de Indiana, EUA – que denunciou discriminação na escola a uma Corte do governo – e o astro do basquete heterossexual Earvin “Magic” Johnson, deixaram claro que o vírus e suas consequências podem atingir qualquer pessoa.

POLÊMICA SOBRE “PATERNIDADE”
Uma das disputas mais acirradas da pesquisa médica envolveu a "paternidade” do vírus HIV entre o ítalo-americano Robert Gallo, do Institute of Human Virology (IHV), em Maryland, EUA, e o francês Luc Montagnier, do Institut Pasteur.


Desde o início dos anos 1980, ambos sabiam que o causador era um retrovírus.
Em princípio, o feito foi atribuído exclusivamente a Robert Gallo. Porém, logo depois a
equipe de Montagnier declarou, de forma efusiva, que a descoberta partira de amostra
encaminhada a Gallo, pelo Institut Pasteur. A troca de amostras é algo frequente em
pesquisa.


Para solucionar o dilema, que ganhou dimensões governamentais envolvendo França
e EUA, o meio científico passou a aceitar que Montagnier, Gallo, e seus respectivos grupos contribuíram na identificação do HIV: o primeiro isolou o vírus antes, enquanto o segundo demonstrou ser aquele o causador da aids, por meio de técnica já desenvolvida no IHV.


Curiosamente, o Comitê do Nobel parece não ter concordado com tal versão, já que, em 2008, laureou Luc Montagnier e sua colaboradora Françoise Barré-Sinoussi com o prêmio em Medicina ou Fisiologia. Apesar de suas grandes e reconhecidas contribuições para esse universo, Gallo foi ignorado.


BATER CEDO E FORTE
O biólogo molecular de origem chinesa David Ho, que estudou Medicina em Harvard,
passou décadas pesquisando a patogênese da infecção pelo HIV – em particular, a
dinâmica da replicação do vírus – até identificar que uma combinação de drogas novas e poderosas, logo no início da infecção, poderia retardar a imunodepressão.

Tal enfoque de tratamento mudou o paradigma da pandemia em 1995, ao ser divulgado em editorial da New England Journal of Medicine (NEJM), sob o título "Time to Hit HIV, Early and Hard" dando origem à Terapia antirretroviral combinada (TARV). Entre outras honrarias, o feito tornou Ho “o Homem do Ano” de 1996, da revista Time.

*Vanessa Truda é médica residente do 3º ano de Infectologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Rachel Juliana Sachetti é médica infectologista, mestre em Ciências da Saúde pela Unifesp e médica assistente no Hospital Santa Marcelina
Simone Tenore é médica infectologista, doutora em Ciências da Saúde pela USP e médica da Unifesp e do CRT DST/aids
Paulo Roberto Abrão Ferreira é professor adjunto da Disciplina de Infectologia da Escola Paulista de Medicina (Unifesp)
Concília Ortona é jornalista do Cremesp

1 Theasis/Istock


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