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    21-03-2016

    Especial

    Professor emérito da Faculdade de Medicina de Botucatu enfatiza a importância do ensino da Bioética no país

     

    “Bioeticista precisa ter caráter”
     

    “Bioética não é só vedetismo, panfletagem: temos
    a responsabilidade de formar futuros bioeticistas”

     

    Sinônimo de Bioética no Brasil, William Saad Hossne encabeçou marcos da história da área, como a criação da primeira norma ética sobre participação de seres humanos em pesquisas – dando origem à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), além da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB). Buscou ainda a inclusão do tema nas diretrizes curriculares das áreas de Saúde.

    Mas, quem considera que o professor emérito da Faculdade de Medicina de Botucatu, de 89 anos, acomoda-se sobre as glórias do passado, se engana: continua a refletir (e muito) sobre quaisquer assuntos bioéticos: “ninguém, particularmente aqueles bem de saúde, tem o direito de levantar angústia e dar as costas”, disse ao jornal O Estado de São Paulo, em relação a grávidas e ao Zika vírus.

     

    O senhor trabalha com Bioética antes de esta ser formalmente reconhecida. Como foi esse interesse?

    No início da década de 70, Potter (Van Rensselaer, autor de Bioética: Ponte para o Futuro) deu início à Bioética no sentido em que ela é entendida atualmente. Quando chegou ao Brasil, cerca de uma década depois, eu e Sônia Vieira, professora de Metodologia Científica, escrevemos o livro Experimentação com seres humanos. Não usávamos muito a palavra Bioética, mas traçamos um histórico, mostrando como ainda ocorriam abusos na área médica em vários países.  Opinamos que deveriam existir diretrizes éticas na pesquisa brasileira, a serem praticadas por equipes multidisciplinares. Esse livro foi parar no Conselho Nacional de Saúde (CNS, subordinado ao Ministério da Saúde) e, imagino, pesou na decisão de criar a Resolução CNS n° 196/96 (revogada pela Resolução CNS nº 466/2012), primeira em defesa dos participantes de pesquisas. Desde sua concepção até o conteúdo e operacionalização, é uma peça de Bioética, pois cria um sistema de controle social não só voltadoà Ética em Pesquisa.

    No início da década de 90, eu e mais seis colegas criamos a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) – coisa que muitos países haviam feito antes, inclusive, na América do Sul. Uma das razões pela demora: vínhamos de uma ditadura e qualquer mecanismo que coíba e impeça opções é incompatível com a ética. Não há como se cultivar o espírito de liberdade.

     

    Quando o debate se estendeu?

    Desde a década de 1960, publicações científicas como o New England Journal of Medicine, trouxeram artigos relatando abusos inaceitáveis, cometidos em seres humanos. Um deles referia-se à situação de centenas de homens de uma pequena cidade do Alabama (EUA), que, por quarenta anos – até 1972 – foram deixados sem tratamento contra a sífilis, para que se conhecesse “o desenvolvimento natural da doença”, ainda que a penicilina já tivesse sido descoberta. Esse estudo, como muitos outros, contaram com a participação de médicos, mas só foi interrompido depois de denúncia da mídia e do clamor da sociedade. Enfim, a população exigiu do governo uma atitude contra os desmandos. Criou-se, naquele país, uma comissão mul­tiprofissional, cujo objetivo foi identificar os princípios éticos básicos que deveriam conduzir experimentações com seres humanos. Em 1978, foi publicado o Relatório Belmont, que apontava três princípios: Autonomia, Justiça e Não-Maleficência (encampando a Beneficência). O filósofo Tom Beauchamp fez parte desta equipe e depois escreveu, ao lado de James Childress, o clássico Princípios da Ética Biomédica. O livro não fala exatamente em Bioética – palavra mencionada só duas vezes na obra – mas foi importante para sustentar o que estava nascendo: como não tinha corpo doutrinado, a Bioética se incorporou a esses princípios pelo vácuo. Tinha de dar respostas, deliberar e os princípios caíram muito bem, embora não tenha sido discutido se eram princípios ou não.

     

    É por isso que o senhor defende o estudo da Bioética por referenciais, em vez de princípios?

    Posso colocar o problema de outra forma: Autonomia para mim é um direito. Não-Maleficência, um dever. Beneficência e Justiça correspondem a um direito e a um dever.  Em uma reflexão ética que use deveres e direitos, não há espaço para opções. Os princípios, portanto, são reducionistas e insuficientes. São necessários outros subsídios. Ao propor a reflexão por referenciais, não entro na discussão de se constituírem em princí­pios ou não. A Autonomia, por exemplo, é um ótimo referencial para discussão, ao lado de outros, como Dignidade, Espiritualidade, Prudência, Vulnerabilidade, Equidade, Privacidade, entre outros.

    Logo que a ideia de Vulnerabilidade começou a ser levantada, especialistas de nações desenvolvidas pensaram: “precisamos fazer normas para países pobres e vulneráveis” – como se na casa deles não existissem vulneráveis: trata-se, enfim, de um estado, uma situação, não algo definitivo. Entenda: posso ser autônomo, mas vulnerável, dependendo do sistema em que estou inserido.

     

    Quais são as características que devem estar presentes em bioeticistas?

    Vamos raciocinar um pouco pelo absurdo? Alguém contrataria um cirurgião que não tivesse os braços? Admitiria um cego para fazer diagnóstico por imagem? Então, posso aceitar bioeticista mau caráter?  Bioética não é só vedetismo, panfletagem: temos a responsabilidade de formar futuros bioeticistas. Nossa obrigação é alicerçar essa matriz, que vai se multiplicar e se tornar uma comunidade não restrita às informações que vêm de fora.

     

    Então é possível concluir que o ensino da Bioética é importante?

    Quando presidi a Comissão de Especialistas de Ensino Médico (CEEM, Ministério da Educação), eu e outros colegas propusemos que a Bioética estivesse nas diretrizes curriculares nas áreas da Saúde e da Biologia – e não apenas em um momento específico. Criamos as condições, que ainda não estejam sendo aproveitadas. A ideia é que o aluno entre no primeiro ano e passe a discutir a ética dos cadáveres, nas aulas de anatomia; ética da relação professor-aluno; ética do aborto, junto com docentes de Ginecologia e Obstetrícia.  Isso se faz com pós-graduação em Bioética, processo que vai crescer e fornecer massa crítica a quem possa formar e informar – porque, em algumas escolas, propaga-se uma visão estreita, relacio­nada mais à deontologia, legislação, códigos. Com os “quatro princípios”, acham que a Bioética já está resolvida.



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    Tags: bioéticabioeticistaéticaentrevistaHossnecaráterJornal do Cremespensino.

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