"A Gestão do SUS não pode continuar a depender, principalmente, dos prefeitos e dos municípios”
O Programa Mais Médicos foi lançado em julho pelo governo federal, com a intenção de suprir a carência de médicos nas periferias dos grandes centros urbanos e em regiões longínquas e de difícil acesso. A medida provocou polêmica na classe médica, principalmente devido à vinda de estrangeiros –incluindo 4 mil cubanos – sem a devida revalidação de diploma e submetidos a condições ilegais e precárias de trabalho. Esse contingente de profissionais deve permanecer, no mínimo, três anos na região para a qual foi designado, entre as 701 cidades que não despertaram interesse de nenhum brasileiro na primeira fase do programa. Para discutir o alcance dessas medidas e suas consequências para a assistência à população, o Jornal do Cremesp ouviu Gastão Wagner de Sousa Campos, professor titular de Saúde Coletiva da FCM/Unicamp.
A pesquisa Demografia Médica no Brasil, do Cremesp e CFM, demonstrou que a má distribuição de médicos causa desassistência em muitos pequenos municípios, nas periferias dos grandes centros e em vários serviços do SUS. O Programa Mais Médicos conseguirá suprir essa carência?
De imediato, e em alguma medida, sim. É evidente que em médio e longo prazos, não. A má distribuição de médicos não é somente territorial. É igualmente grave o dado, nessa pesquisa, de que há 1,9 posto de trabalho médico para cada mil usuários do SUS (75% da população brasileira) e 7,8 por mil para os 25% que possuem seguro saúde ou recursos próprios para custear atenção médica. Essa situação reflete o descaso, o descuido e a ausência de uma política de recursos humanos para o SUS.
A MP 621/2013 diz que os participantes serão considerados médicos-estudantes e não poderão assumir, sozinhos, a responsabilidade pelos atendimentos, sendo necessária a presença do tutor ou preceptor brasileiro. Essas regras são viáveis na prática?
Sim, são possíveis se forem realmente implementadas e se houver recursos adicionais e gestão competente. Medidas semelhantes serão necessárias para os dois anos de residência obrigatória na atenção primária, caso seja aprovada a proposta do governo.
Como avalia a vinda de médicos estrangeiros sem a devida revalidação de diplomas, como propõe o governo federal?
Como regra geral, sou a favor do Revalida. Acredito que deverá ser aperfeiçoado e desburocratizado. Defendo que essa prova de proficiência seja cogerida entre universidades, Ministérios da Educação e da Saúde e representantes de entidades médicas. Em situações de emergência, autoridades podem convocar profissionais estrangeiros. Os cubanos têm boa formação em atenção primária: sabem sobre clínica geral e medidas de prevenção e promoção à saúde. O tipo de supervisão que necessitarão não será, portanto, o mesmo da Residência. Há 14 anos, a região de Campinas recebeu cinco médicos cubanos para nos apoiar na construção da estratégia de saúde da família e não houve nenhum problema. Depois do período de três anos, quatro retornaram e um permaneceu no Brasil.
O Programa prevê mais 11 mil vagas em graduação e de 12 mil em Residência. Como avalia essa proposta, uma vez que enfrentamos problemas na formação dos alunos e carência de docentes em Medicina?
A carência de docentes se resolverá com concursos públicos para as universidades federais e estaduais. Há fila de profissionais interessados na carreira docente. Em algumas especialidades haverá problemas, como já acontece. Nesses casos, em geral especialidades que valorizam mais a prática médica no mercado, a solução serão os contratos em tempo parcial. Na realidade, não precisamos formar mais de 10 mil médicos por ano. Ao cruzar dados do crescimento populacional e dos novos serviços no SUS e no setor privado com vagas nos cursos médico, constata-se a necessidade de apenas mais 2 mil a 3 mil ao ano. Já as 12 mil novas vagas para residentes serão bem-vindas, particularmente naquelas especialidades que o setor privado quase eliminou: Medicina Interna, Pediatria Geral, Cirurgia Geral e Saúde da Família; e naquelas em que houve controle corporativo e omissão do MEC e do MS de vagas para a Residência: Anestesia e Psiquiatria, entre outras.
O SUS está subfinanciado (o governo destina apenas 3,6% do PIB) e não conta com Plano de Carreira de Estado. Até que ponto a falta de médicos é responsável pela situação do sistema?
Os problemas do SUS são amplos e interconectados. O subfinanciamento impede política e gestão de pessoal adequadas e quem sofre, além dos profissionais, são os usuários. Brasileiros continuam morrendo por causas evitáveis. Por outro lado, há problemas para contratação de pessoal, inclusive com os médicos.
A imprensa identificou cidades que pretendem fazer demissões para receber as equipes do governo federal. Essa substituição significa economia pela prefeitura – já que a bolsa de R$ 10 mil do Mais Médicos é totalmente custeada pela União – e o fim da alta rotatividade.Em que medida essa distorção pode prejudicar o Mais Médicos?
A gestão do SUS não pode continuar a depender, principalmente, dos prefeitos e dos municípios. Há que se cobrar maior envolvimento da União e dos Estados. Eu defendo a criação de uma carreira no SUS como um todo; não uma federal, 27 estaduais e milhares municipais. Isto nunca irá acontecer. A carreira no SUS deve criar responsabilidade e financiamento federal, estadual e municipal. Os profissionais seriam do SUS. Os concursos, feitos por Estado da federação, trariam cargos com possibilidade de remanejamento e de promoção, cursos para completar formação e possibilidade de trabalho na atenção básica, dar plantões, assistir em enfermarias etc.
Entrevista concedida ao Jornal do Cremesp, edição 307 - setembro 2013.
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