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S E R M É D I C O • 1 3 Logo depois, disse-me que sua mãe havia lhe explicado que não poderiam doar os órgãos, mas que tinha contado ao pai que iria con- versar com suas irmãs mais velhas para pedir que assinassem o do- cumento. Perguntei se as conhe- cia e ele respondeu que não, mas iria pedir mesmo assim. Já havia se passado pouco mais de 24 horas do falecimento, e o curto prazo para a doação de ór- gãos já se aproximava do fim. A assistente social havia solicitado a presença da família “legítima”. Logo, chegaram duas moças, qua- se da mesma idade da esposa do falecido. Eram as filhas, que di- ziam ter tido pouco contato com o pai nos últimos anos. Enquanto lhes explicava os trâmites, percebia que, provavel- mente, aquele era o primeiro con- tato com a última família do pai. Em suas fisionomias, dava para perceber mágoas e ressentimen- tos, mas ao ver Davi ambas sorri- ram discretamente. Com sua maturidade dos nove anos, Davi apresentou-se às duas, e disse que sabia do desejo do pai de ser doador. E, pediu, então, com a meiguice de criança, que as duas conversassem com a mãe delas e solicitassem a autorização de doação. Acho que, neste momento, nem mesmo o porteiro que acompa- nhava de longe o diálogo, conse- guiu se conter. Os três irmãos se abraçaram, e elas disseram que trariam o documento preenchido. Nunca mais vi Davi, e sei que nem era este seu nome. Chamei- -o assim por ver a bravura de um menino tão pequeno frente ao Golias de todos aqueles confli- tos familiares. E Davi venceu sua batalha. Não sei se ele continuou vendo suas irmãs ou se aquele foi o único contato. Mas soube que, cerca de 48 horas depois, nove pacientes se beneficiaram com a doação dos órgãos de seu pai, além da doação de material gené- tico, também realizada. Meses depois, soube também que Davi recebeu uma carta em seu nome, agradecendo seu al- truísmo e amor ao próximo. Tal- vez existam poucos Davis, mas sei que um só valeu a pena para mui- tas pessoas.  * Supervisora do Programa de Residência Médica de Medicina de Emergência do Hospital Santa Marcelina e conselheira do Cremesp ILUSTRAÇÃO: JOÃO LIN

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