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Crônica


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Conjuntura


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Edição 84 - Julho/Agosto/Setembro de 2018

PÁGINA 10 e 11

Crônica

Concília Ortona*

A assustadora história da mochila, em Londres


Qual é a situação mais apavorante em uma viagem ao exterior? A bagagem extraviar?
Fichinha. Passar mal e não saber como se explicar ao médico turco, grego... norte americano? ... argentino? Dá-se um jeito. Perder o cartão de crédito? Está ficando quente, mas multiplique isso por quinze: que tal perder “a mochila”? Não uma caríssima, vagabunda mesmo.

Como assim?

Filosofando como faz quem descreve uma pessoa... assim... sem atributos físicos: o valor está no conteúdo. No caso, nos passaportes de todos os viajantes, além dos (parcos) euros, e das (minguadas) libras.

Explicando do começo. Como sempre, minha pequena família tira férias do tipo “pague por dois e leve três”. Com o dinheiro pra lá de contado, pareceu boa ideia percorrer, de trem, o trajeto até o aeroporto secundário de onde saem voos low cost de Londres até Edimburgo, rumo à nossa pousada já paga pela internet e, depois, para Paris.

Sejamos francos: até então, o paizão havia protegido com a própria vida “a mochila” do
nosso destino. Mas, por estar distraído com a (costumeira) mala enorme, ou por culpa daquela loira que lhe deu uma piscada britânica – melhor esquecer –, ao descer do trem, nem notou estar mais leve.

Milésimos de segundos depois, meu espírito sinalizou algo errado – Cadê a mochila? (grito). Três pares de olhos em direção às portas semicerrando do trem e, em seguida, o doloroso aviso sonoro em beep – que, se traduzido, significaria “ferrou”.

– Mãe, o que houve? Silêncio. O pai, quase um metro e noventa, desabado no chão, em lágrimas.

A mim coube enviar ao cérebro os comandos: respire fundo. Pense. Pernas, controlem
o tremor... Procure agora algum funcionário da estação disposto a nos ajudar a encontrar a mochila e a vossa fluência em inglês – aliás, a primeira a sumir.

Foi quando  o conheci. Ele. Saint David, para quem, aliás, até hoje dirijo minhas orações. Tá bem: não sei bem qual era o cargo do moreno de bigodes e uniforme da estação. Devia ser importante, pois, rápido, passou a mexer seus pauzinhos (sorry, é um Santo!) para socorrer os brasileiros apavorados. Fez isso, porém, não sem antes soltar um compreensível e incrédulo “uau”! Passports, as well? Oh, no!

Pragmático, David disparou: relax. Let’s forget the fly, ok? Continuou: “em que vagão estavam?” – Se os canhotos das passagens não estivessem na mochila, seria mais fácil responder. “Frente, meio, atrás?” – Well...

Quando nada parecia funcionar, nosso David traçou sua estratégia sombria: como o trem era intermunicipal, nada poderia ser feito até que chegasse à próxima cidade, ou na outra, right? “Ainda que sua bag esteja no lugar que nem sabemos qual, nada garante que as coisas estejam lá dentro”. Alright ?

A essa altura, já estávamos todos em estado de inércia mental, pós-grandes sustos. Em – eterna- meia-hora, David voltou animadinho, well, para o padrão londoner de ser. “Acharam a mochila em um bagageiro para bolsas”.

Sem energia para comemorar, fizemos menção de nos levantar do chão, mas, após olhar para a filha, com cara de “não, ainda não entendi” e para o marido, ainda em prantos (se aprume, homem!), sugeriu: “que tal só a senhora ir buscar?”.

E lá fui eu, rezando, até ver de longe o colega carrancudo do David, duas estações depois, com a mochila entre as pernas – e jeito de poucos amigos. No melhor estilo Scotland Yard, perguntou tudo o que havia dentro dela, inclusive, as frutas acondicionadas – no caso, uvas. “Orange? Banana? Apple? Hello, não é mais simples confirmar se sou eu, no passaporte?”

Enfim. Nem vou me prolongar no fato de que, para irmos a Edimburgo (ou dormir na Trafalgar Square e forget Paris), precisamos retornar à Victória Station e ir em pé, por seis horas, no último trem de linha da sexta-feira, recheado por alcoolizados torcedores de futebol americano (juro!) do Newcastle.

Basta dizer que, ao abrir a mochila, tudo estava lá: os passaportes e o restante dos documentos, bem como, as libras e os euros, contados e enrolados em papel celofane.

A última coisa que disse a São David foi um irônico “se fosse no Brasil...”, ao que ele riu alto e respondeu “não esquenta, não roubaram sua mochila porque imaginaram que tivesse uma bomba dentro”.

É... cada um com seus problemas...

*Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp


 


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