CAPA
PONTO DE PARTIDA (Pág. 1)
Mauro Gomes Aranha de Lima
ENTREVISTA (Pág. 4 a 9)
Maria Elizete Kunkel
CRONICA (Pág. 10 e 11)
Tati Bernardi*
SINTONIA (Pág. 12 a 15)
Literatura & Medicina
DEBATE (Pág. 16 a 22)
Diretivas Antecipadas de Vontade
LIVRO DE CABECEIRA (Pág. 23)
Caio Rosenthal*
EM FOCO (Pág. 24 a 27)
Rodolpho Telarolli Junior*
HISTÓRIA DA MEDICINA - (Pág. 28 a 31)
Edgard Roquette-Pinto
GIRAMUNDO (Pág. 32 e 33)
Avanços da ciência
PONTO COM - (Pág. 34 e 35)
Mundo digital & tecnologia científica
HOBBY (Pág. 36 a 39)
Médico & Fotógrafo
CULTURA (Pág. 40 a 43)
Cultura maia
TURISMO (Pág. 44 a 47)
Uma viagem à capital tcheca
FOTOPOESIA (Pág. 48)
Guilherme de Almeida
GALERIA DE FOTOS
ENTREVISTA (Pág. 4 a 9)
Maria Elizete Kunkel
O fantástico mundo da impressão 3D
Equipe da Unifesp fabrica próteses de mão infantis e desenvolve vários outros projetos, como peça para o tratamento da displasia do quadril infantil; Unicamp e Instituto Biofabris fabricam próteses
para deformidades craniofaciais
Por Fátima Barbosa*
Crianças com amputação de algum membro têm dificuldades para encontrar próteses porque, além do preço alto, com o crescimento, as peças ficam, rapidamente, inadequadas. Para contornar esse obstáculo, uma equipe do Grupo de Pesquisa de Biomecânica e Forense do Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em São José dos Campos, dedica-se à fabricação, em impressora 3D, de próteses de mão infantis de baixo custo, que possam ser trocadas à medida que as crianças crescem. Coordenado pela docente e pesquisadora Maria Elizete Kunkel, o grupo, interdisciplinar, desenvolve também vários outros produtos usando tecnologias tridimensionais como, por exemplo, uma peça para substituir o gesso no tratamento de displasia de quadril infantil e prótese de orelha. Física pela Universidade Federal do Ceará, com mestrado em Bioengenharia na Universidade de São Paulo (USP), e doutorado em Biomecânica na Universidade de Ulm, na Alemanha, Maria Elizete é grande entusiasta da impressão 3D. Nesta entrevista à Ser Médico, a cientista dá detalhes dos projetos e das possibilidades da tecnologia.
Maria Elizete e Leo, 7 anos, uma das primeiras
crianças a utilizar a prótese
Ser Médico – Em que consiste seu trabalho com impressoras 3D na área da Saúde?
Maria Elizete – Nosso grupo de pesquisa tem um programa de extensão denominado “Mao3D”, que visa à produção de próteses por impressão 3D e reabilitação do paciente, principalmente para crianças com falta de membros superiores. Nosso programa é baseado em modelos norte-americanos da ONG E-Nable, que faz e distribui próteses de mão 3D por todo o mundo. A prótese pode ser reproduzida e personalizada de acordo com o corpo da criança, tanto em casos de amputações parciais de mão quanto de braço, e é fixada ao braço com velcro. Cada dedo da peça é preso por um fio de nylon e um elástico, de modo que, apenas com o movimento do punho ou do cotovelo, a criança consiga abrir e fechá-la. Não tem componente eletrônico. Quando a criança faz o movimento para dobrar a mão ou o cotovelo, o dedo é flexionado porque tem o fio que puxa. Quando ela libera, o elástico faz o dedo voltar para o lugar. É parecido com o movimento do tendão da mão que faz o movimento dos dedos. Na prótese, os dedos têm ponteiras de silicone, para que os objetos pegos não escorreguem. Porém, elas são importadas. Ainda não temos o material aqui no Brasil.
SM – Há outros tipos de próteses para crianças no País?
Maria Elizete – Não existem próteses de mão para crianças no mercado brasileiro, pois são muito caras e, como as crianças crescem, logo as perdem. No mundo todo é difícil encontrar empresas que façam esse equipamento exclusivo para crianças. O que fazemos tem um custo muito baixo, em torno de R$ 200, contando apenas a produção do material. Por isso, são ideais para crianças, pois é possível fazer outras próteses à medida que elas vão crescendo.
SM – Como e onde é o processo de impressão?
Maria Elizete – Fazemos a modelagem 3D da prótese no computador, cujo desenho é fatiado por um programa, e a impressora 3D vai construindo a peça, camada por camada, em peças separadas. Depois de montada a peça, colocamos os elásticos e os fios. O material usado é um termoplástico biodegradável – o ácido polilático (PLA) – leve e de fácil adaptação. Ela é produzida no laboratório de Biomecânica e Forense da Unifesp, em S. José dos Campos.
SM – É possível fabricar próteses similares a essa para outros tipos de amputação?
Maria Elizete – Podemos usar o mesmo tipo de próteses para uma amputação em um nível maior, até perto do cotovelo. Com o movimento desse membro, o mesmo sistema permite abrir e fechar os dedos. Estamos desenvolvendo um terceiro modelo – a prótese mioelétrica –, que seria para uma amputação mais difícil de ser protetizada, na qual a articulação do cotovelo não está presente, mas, nesse caso, precisa ser uma prótese automática, que é muito cara e, comercialmente, não compensa fazer para criança. Já o modelo atual é fácil de produzir, leve e barato. E faz uma grande diferença para ela.
SM – O tamanho é proporcional ao da criança, mas o modelo pode ser diferente?
Maria Elizete – Sim, o tamanho é de acordo com o que seria a mão da criança. Ela é fotografada e o sistema reconhece as fotos, reconstruindo seu corpo no computador. A prótese é feita de acordo com esse modelo. Assim, a criança não precisa ficar testando, fazendo medidas, o que é estressante para ela. Além disso, durante o processo de reabilitação, buscamos melhorá-la. Já o modelo da peça é padronizado, mas as cores podem ser diferentes. Podemos fabricá-la de acordo com a cor preferida da criança, para tentar diminuir a rejeição, pois ela tende a não usá-la depois de um tempo. Estamos estudando fazer modelos que lembrem o Super-Homem, Homem-Aranha, Batman, cor de rosa etc., para que estejam em sintonia com a criatividade infantil e seja um objeto lúdico com o qual se possa “brincar”. Isso já vem acontecendo nos Estados Unidos. Lá, as crianças as usam e fazem o maior sucesso na escola. Elas pensam: “tenho uma amputação, mas tenho um poder especial, como um super-herói”. Em termos psicológicos, isso tem uma importância muito grande.
Impressora 3D e prótese mioelétrica, que está em
desenvolvimento na Unifesp
SM – A criança do projeto-piloto continua a usar a prótese?
Maria Elizete – Temos um menino de 7 anos, com amputação transradial, que está usando a prótese há mais ou menos três meses. Ele a usa para andar de bicicleta, que já tinha, mas não conseguia usá-la. E pode fazer algumas outras coisas que não fazia antes, como brincar de bola e pegar objetos com as duas mãos. Temos mais duas crianças, cujas próteses estão em processo de produção: um garoto de 4 anos que perdeu parte do braço devido a um procedimento médico quando ele tinha 30 dias de vida; e outro garoto de 9 anos, de Taubaté, que perdeu as duas mãos como sequela de uma meningite.
SM - E como é o processo de reabilitação?
Maria Elizete – A prótese só funciona se tiver um bom programa de reabilitação. Para isso, trabalhamos em parceria com o Centro de Reabilitação Lucy Montoro, em São José dos Campos, que faz a prescrição e a triagem da criança. É lá também que a criança faz exercícios de fisioterapia para fortalecer o corpo, antes de receber a peça, pois vai usar uma articulação com a qual não está acostumada. Depois, já com a prótese, ela receberá um treinamento durante algumas semanas. Só quando estiver tudo certo, e se a prótese não estiver machucando, a criança a leva para casa. Se ela tiver problema de adaptação com alguma parte da mão, por exemplo, um dedinho, fazemos um novo dedo e adaptamos a peça considerando essa parte.
SM – Quanto tempo demora a produção de uma peça?
Maria Elizete – A impressão 3D é muito rápida, quando comparada à produção convencional de prótese. Ao todo, demora cerca de 20 horas. Então, com uma máquina é possível fazer uma por dia. E essa nova tecnologia ajuda também no programa de reabilitação. Por exemplo, se o terapeuta diz que a criança não consegue pegar uma xícara com a prótese, retornamos a peça para o laboratório e fazemos um dedo maior, de um dia para outro.
SM – Quantas crianças o programa pretende atender?
Maria Elizete – Pretendíamos atender, inicialmente, 100 crianças em um ano, mas tivemos atrasos de verbas. A primeira atendida foi considerada como o paciente zero. Ela participou de um piloto para definirmos algumas questões importantes. A partir de agora, vamos começar a atender várias outras. Mas temos algumas limitações. O Lucy Montoro só atende na região do Vale do Paraíba. Estamos fazendo um convênio com a prefeitura de São José dos Campos, para atender mais crianças da cidade. Mães de várias partes do Brasil têm nos escrito querendo que seus filhos participem do programa. Contudo, nessa etapa inicial, nossa prioridade é fornecer a prótese fazendo o treinamento e o acompanhamento da criança. Caso contrário, depois de alguns dias, ela não usa mais. E isso não é interessante nem para ela, nem para nós. Depois que tivermos mais definições, pretendemos capacitar mais núcleos para fazer o mesmo em todo o País. Já estive em cerca de seis outras universidades federais, em outros Estados, fazendo workshops com profissionais interessados. Estamos divulgando a receita com o bolo ainda no forno. Essas pessoas estão na expectativa para ver como se dará nosso programa para replicá-lo.
SM – Como o projeto é financiado?
Maria Elizete – Já fizemos algumas campanhas na internet, pedindo colaboração porque pegamos um cenário de crise e não conseguíamos recursos institucionais para o desenvolvimento do projeto. Participamos de vários editais, mas foram cortados, congelados ou a verba não saiu. Concluímos que, ou o parávamos, ou tentaríamos conseguir colaborações para levá-lo adiante. Com as campanhas, tivemos doações de impressoras e materiais. Agora temos uma rede de colaboradores de todo o Brasil que auxiliam com a doação de material e serviços quando precisamos.
SM – Há outros projetos com impressão 3D?
Maria Elizete – Sim, temos vários. Um deles é a utilização da impressão 3D na substituição do gesso no tratamento da displasia de quadril infantil. A criança que nasce assim tem de passar um período com um tipo de suspensório, com as pernas abertas em posição de 90o. Se esse tratamento não funcionar, ela tem de ser engessada do joelho até o peito, também em uma posição de 90o. E a mãe tem muita dificuldade para limpá-la porque não pode molhar o gesso. Isso faz com que o bebê fique semanas, e até meses, sem poder ser limpo adequadamente, o que acarreta uma série de consequências em sua pele. Além disso, para ser engessado, ele é anestesiado. Por isso, queremos fazer um sistema de órtese em 3D que não possa ser aberto pela mãe, mas que o médico possa fazê-lo e fechá-lo novamente, permitindo que a criança seja examinada e tome banho, por exemplo. Teria uma série de vantagens. É um projeto iniciado como mestrado, que está na segunda fase, até que consigamos fazer o teste com bebês. Estamos pesquisando também uma técnica para o desenvolvimento de uma prótese de orelha, de baixo custo. Primeiramente, é feito um molde por impressão 3D, baseado na reconstrução de imagens médicas como CT, no qual é colocado o silicone. Uma aluna do mestrado fez uma orelha, e vamos começar a fazer os testes para verificar como ela pode ser fixada. Temos também projetos de próteses internas, como a produção de costela com titânio. Já existem impressoras 3D que imprimem com esse material. Outra pesquisa é com tubos usados na região da traqueia em algumas cirurgias, principalmente de bebês e idosos.
SM – Qual é a dinâmica de trabalho em todos esses projetos?
Maria Elizete – O segredo é a interdisciplinaridade. O pessoal da Saúde pode saber o que precisa ser melhorado, mas não domina a técnica. O engenheiro sabe fazer no computador a prótese mais linda do mundo, só que ele não tem noção do que o paciente está precisando. Temos novos cursos, como o de engenharia biomédica – que começa com bacharelado em ciência e tecnologia –, mas formam poucas pessoas, por enquanto. Em nosso grupo, temos alunos desse curso, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, matemáticos e profissionais da computação. Estamos iniciando uma colaboração com um grupo de médicos, cirurgiões de mão, fora da região do Vale do Paraíba. Estudamos, também, as possibilidades de iniciar, no próximo ano, um curso de especialização de tecnologias 3D para a área assistiva, que possa capacitar tanto pessoas do setor da Saúde como de Exatas.
SM – Em que estágio está a impressão 3D no mundo e quais as perspectivas?
Maria Elizete – A impressão 3D começou a ter atuação e aplicação na área médica há cerca de cinco anos. E é incrível, a cada dia surge uma coisa nova. Acredita-se que seja possível, no futuro, por exemplo, a impressão de órgãos. No lugar de se usar um material totalmente sintético poderia ser usada uma mistura que envolve células. Mas fabricar órgãos vai exigir muito mais estudos. Pesquisas já estão sendo feitas. Um cientista, na Inglaterra, está desenvolvendo uma impressora 3D para fabricar pele para casos de queimados. A ideia é que o paciente deite em uma cama – que já faz parte da impressora – e um dispositivo vai fazendo a pele em cima dele, em tempo real, usando células. Está em fase de pesquisa, mas é considerada viável.
SM – Como você vê a popularização das impressoras 3D? Já se diz que as pessoas terão esses equipamentos em casa...
Maria Elizete – A tecnologia de impressão 3D não é recente, tem aproximadamente 30 anos, mas era protegida por patente. Por isso, uma impressora custava cerca de R$ 1 milhão. Com a quebra da patente, ela começou a ser produzida por outras empresas. No Brasil, surgiram, nos últimos anos, várias empresas que vêm desenvolvendo impressoras a baixo custo, como as que estamos usando para fazer as próteses. Já temos impressora 3D que custam entre R$ 2 mil e R$ 5 mil, o que já é acessível. Os médicos poderão tê-la no consultório, nos centros cirúrgicos etc. As possibilidades são imensas.
Mais informações:
Site: www.biomecanicaeforense.com
Facebook: www.facebook.com/Mao3D
E-mail: mao3d.unifesp@gmail.com
3D traz avanços na reconstrução de
deformidades craniofaciais
A impressão 3D está sendo usada, também, no tratamento de deformidades craniofaciais causadas por malformações, sequelas de trauma, doenças e/ou seus tratamentos. A nova tecnologia permite o desenvolvimento de próteses customizadas, ou seja, sob medida para a falha óssea do paciente. O material utilizado – liga metálica de titânio – proporciona, devido às suas características, vantagens como biocompatibilidade, resistências mecânica e à corrosão, e baixa densidade, o que reduz o peso do produto final.
O projeto é uma parceria entre o Instituto Biofabris, vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por meio da equipe do médico Paulo Kharmandayan, da Cirurgia Plástica da Faculdade de Ciências Médicas, e a do engenheiro André Luiz Jardini Munhoz, da Faculdade de Engenharia Química, também da Unicamp.
O método convencional para a reconstrução de falhas congênitas ou adquiridas no crânio utiliza placas de resina acrílica auto-polimerizáveis – por exemplo, o PMMA (Polimetilmetacrilato) – esculpidas a mão na hora da cirurgia. Porém, esse material pode determinar várias reações adversas, como queda de pressão sanguínea, tromboflebite, hematoma, hemorragia, infecção e extrusão.
Já os implantes metálicos produzidos por impressão 3D, além da biocompatibilidade, apresentam menor risco de infecção. Favorecem também uma redução do custo cirúrgico, com diminuição de 30% do tempo de cirurgia e anestesia, além do retorno mais rápido do paciente às suas atividades, proporcionando melhor qualidade de vida.
Segundo o cirurgião Kharmandayan, o projeto é pioneiro na América Latina. “Desenvolvemos o desenho em 3D virtual do crânio do paciente, a partir de tomografia ou ressonância magnética; a réplica do crânio, em plástico (poliamida), que chamamos de biomodelo, feito por impressão 3D; e a prótese, em titânio. Utilizamos o titânio em pó, que é sinterizado (fundido) por laser na impressora 3D específica para metal.”
É um grande avanço. “A prótese se encaixa perfeitamente na deformidade do crânio, como uma tampa de panela de pressão, com uma precisão de um décimo de milímetro, o que não conseguíamos com o método convencional”, garante o médico. Segundo ele, até o momento já foram atendidos oito pacientes, desde o início do projeto, há cerca de quatro anos.
Mais informações: www.biofabris.com.br