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EDITORIAL
Ponto de Partida


ENTREVISTA
O cientista Luís Hildebrando Pereira da Silva é o convidado especial desta edição


CRÔNICA
Pasquale Cipro Neto


POLÍTICA DE SAÚDE
Fátima Dinis Rigato


SINTONIA
Cássio Ruas de Moraes


DEBATE
Informações Médicas à Disposição de Todos


EM FOCO
Cultivando Hipócrates


HISTÓRIA DA MEDICINA
Moacyr Scliar


LIVRO DE CABECEIRA
Trindade, o conflito da Irlanda em romance


CULTURA
Noel Rosa


TURISMO
Conheça Bonito, no extremo sul do Pantanal


CARTAS & NOTAS
Elogios, Agradecimentos e Bibliografia


POESIA
Mário Quintana


GALERIA DE FOTOS


Edição 23 - Abril/Maio/Junho de 2003

HISTÓRIA DA MEDICINA

Moacyr Scliar

O médico dos índios

Moacyr Scliar*

Era um grande evento: a abertura do Congresso Brasileiro de Tuberculose, no Rio de Janeiro. Centenas de profissionais de todas as partes do Brasil estavam ali presentes. Usaria da palavra o professor Hélio Fraga, lendária figura da tisiologia no país. No momento em que Hélio ia falar, adentrou o recinto um homem atarracado, vasta cabeleira branca e grandes bigodes, o paletó displicentemente jogado sobre o ombro. Ao passar diante da mesa coordenadora dos trabalhos, comandou:

– Curto e grosso, Hélio, porque está muito calor.

Quem conheceu o sanitarista Noel Nutels sabe que esse tipo de atitude nele era normal e previsível. Noel era assim, absolutamente espontâneo – e absolutamente fascinante. Qualidades que o marcaram como pessoa e que marcaram também sua trajetória na saúde pública brasileira, na qual o seu trabalho é muito bem lembrado: o Laboratório da Fundação Oswaldo Cruz leva seu nome.

Curiosamente, Noel não era brasileiro nato. Nascido em Ananiev, Ucrânia (1913), Noel deixou a terra natal ainda criança: a família, de origem judia, fugia das violentas perseguições anti-semitas ocorridas na guerra civil desencadeada após a revolução de 1917. Os Nutels foram morar em Recife, onde dona Bertha, mãe de Noel, tinha uma pensão que se tornou famosa pelos artistas e intelectuais que ali se hospedavam. Rubem Braga foi um desses hóspedes e protagonista de um notável episódio: certa vez apareceu na pensão um rato. Os hóspedes dispuseram-se a caçá-lo, mas quem o conseguiu foi Braga, que liquidou o bicho com um grosso tubo de papelão, que conti-nha o seu diploma da Faculdade de Direito. “Eu sabia que isso ainda serviria para alguma coisa”, disse Braga.

Noel também era artista: fazia música e cantava com uma banda local – nos intervalos do curso de Medicina. Formado em 1938, foi morar no Rio de Janeiro e, como médico, integrou a primeira expedição à região do Roncador-Xingu (1944-1948). Ali teve contato com as populações indígenas, uma relação que mudaria sua vida.

A região do Xingu era então praticamente inacessível, a não ser para os aviões da Força Aérea Brasileira. Era um vasto território e muito precaria-mente administrado. Disso se aproveitavam aqueles que queriam se apossar das terras dos índios e que não hesitavam em recorrer a qualquer meio para conseguir seus objetivos. O que, aliás, era histórico, e não só no Brasil – na América toda. Os indígenas tinham escassa resistência às doenças dos brancos: a varíola, por exemplo, dizimara os astecas que resistiam a Cortés. Sabendo disso, os invasores deixavam nas trilhas roupas de vario-losos. Os índios ingenuamente ves-tiam-nas, contraíam a doença e morriam aos milhares. Conseqüência: regiões inteiras das Américas virtualmente se despovoaram em menos de três quartos de século. Segundo estimativas, a população indígena de Honduras caiu de 1,2 milhões para 18 mil; a do Peru, de 1 milhão para 600 mil; a do México, de 22 milhões para 1 milhão, tudo isso antes do final do século 16.

A sobrevivência do indígena brasileiro dependia, pois, de cuidados à sua saúde. Mas a verdade é que poucos médicos se dispunham a trabalhar em condições tão precárias. Nutels aceitou o desafio, tornando-se médico do antigo Serviço de Proteção ao Índio e do Serviço Nacional de Tuberculose, SNT, este último um organismo modelo em termos de saúde pública. O SNT fez um trabalho pioneiro, padronizando e planejando, de forma simples e racional, o diagnóstico e o tratamento da tuberculose. Mas a logística do atendimento, na região do Xingu, continuava sendo um problema. Por iniciativa de Noel, foi criado, em 1956, o SUSA, Serviço de Unidades Aéreas do SNT, sempre com o suporte da FAB. Aliás, os militares tinham grande admiração pelo trabalho de Noel e continuaram colaborando com ele mesmo depois do movimento de 1964, para o qual Noel, por causa de um passado esquerdista, era considerado suspeito.

Mas a sua dedicação era reconhecida pelo público em geral. O SUSA era a vida de Noel, e também de sua mulher que, entomóloga, acompanhava-o no trabalho de campo. Faltava verba? Ele tirava dinheiro do próprio bolso. Quando um indiozinho adoeceu gravemente, Noel o levou para o Rio de Janeiro, providenciou tratamento especializado e manteve-o em sua própria casa até que o menino ficasse curado. A quem lhe perguntava, dizia que, por causa de seu passado de menino perseguido, identificava-se com o sofrimento dos índios. A isso somava-se também sua condição de médico de saúde pública – sanitarista, como se dizia então (o termo hoje está um tanto abandonado, porque saúde pública não se restringe ao “sanitarismo”).

Enfrentar a doença na comunidade é tão apaixonante como enfrentar a doença no paciente individual (Noel, aliás, por força das circunstâncias, fazia as duas coisas). É o desafio de pensar grande, de pensar no coletivo. Noel Nutels filiava-se, assim, a uma ilustre estirpe de médicos que, desde o começo do século 20, vinha projetando a saúde pública brasileira no contexto internacional. Não era um grande pesquisador, como Carlos Chagas, e também não tinha a visão ampla de um Oswaldo Cruz; mas, no trabalho do SUSA era exemplar e consagrou-o como “o médico dos índios”.

Pode-se pensar que Noel era um mártir, que exercia a sua profissão de sanitari-sta como um sacerdote da medicina, para usar aquela antiga expressão. Nada disso. Noel era um homem alegre, divertido, gaiato. Suas frases ficaram célebres, como célebre ficou uma entrevista que deu ao jornal O Pasquim, que então fazia uma satírica oposição ao governo. Um dos hábitos de Noel era colecionar essas frases e versinhos que mãos anônimas escrevem em banheiros; conhecia assim o que podemos chamar de uma “face oculta” de nossa gente. Tinha amigos em todos os cantos deste país. Mas sua morte foi prematura. Foi acometido de um câncer de bexiga que evoluiu rapidamente. “Eu queria pelo menos completar 60 anos”, dizia aos amigos, mas isso não aconteceu: faleceu em 1973, sete meses antes de se tornar sexagenário.

De sua popularidade deu testemunho um livro publicado algum tempo depois pela Editora Civilização Brasileira, e que continha depoimentos de Orígenes Lessa, Darcy Ribeiro, Orlando Villas-Boas e de muitos outros. Para esse livro, Carlos Drummond de Andrade fez um poema; nele celebra a existência de Noel, transcorrida sob “o signo de um amor compreensivo e ardente”. Uma frase que resume o espírito da saúde pública, da Medicina como um todo e da vida que pretende ter um sentido.

* Moacyr Scliar é médico, especialista em saúde pública e doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública. Escritor, é autor de várias obras sobre saúde e medicina, incluindo A Majestade do Xingu (Companhia das Letras) baseado na vida de Noel Nutels.

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