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O cientista Luís Hildebrando Pereira da Silva é o convidado especial desta edição


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POLÍTICA DE SAÚDE
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Edição 23 - Abril/Maio/Junho de 2003

SINTONIA

Cássio Ruas de Moraes

Alta Tecnologia na Medicina

A tecnologia também veio nos desafiar a julgar o que é relevante, quais dos achados correspondem ao problema real do paciente e quais são apenas variações anatômicas ou manifestações sem importância clínica.

Cássio Ruas de Moraes*

O computador, inegavelmente, tornou as coisas mais rápidas e fáceis. Habitualmente, à medida que se escreve, vão aparecendo palavras assinaladas na tela, sublinhadas de vermelho por conta própria do computador ou do programa contido nele. Trata-se de ajuda não solicitada e, às vezes, desnecessária, mas que é oferecida e incluída no preço pelos fabricantes. Esse “auxílio”, no entanto, pode abranger muito mais. Podemos ter frases prontas, períodos inteiros, cartas de todo tipo, textos completos. Agora, seria ele capaz de colocar no texto o sentimento, estudos, amor à língua, a experiência acumulada durante a vida? Tudo isso pode vir pronto num programa da empresa do sr. Bill Gates?

É óbvio que o computador está para servir seu usuário e não o contrário. As palavras sublinhadas de vermelho que vão surgindo são como pequenos desafios a quem o comanda. Parecem querer lembrar a todo instante que a tecnologia pode dar pronto aquilo que se deseja, sem necessidade de esforço criativo.

Algo semelhante vem acontecendo na Medicina de hoje, cujo resultado almejado seria o diagnóstico, o tratamento e o alívio para o que quer que atormente o paciente. Cabe a nós, médicos, utilizarmos todos os recursos e instrumentos necessários para esse fim, incluindo o trabalho de equipe, as interconsultas e tudo o mais a que estamos acostumados na prática diária.

Há muitas considerações, entre elas a so-cioeconômica: a atividade médica está inserida num contexto social e tudo tem seu custo. Independente do meio pelo qual a assistência médica é ministrada, seja por hospitais públicos, particulares, conveniados ou não, consultórios ou ambulatórios, coberta ou não por seguros públicos ou privados, no final, quem sempre paga a conta é a sociedade. Não há procedimento médico gratuito, nem mesmo nos hospitais públicos. Isso quer dizer que, além de tudo, teremos que ser árbitros em muitas situações e usar permanentemente o nosso julgamento.

Essa é a prática da Medicina moderna, bem fundamentada por Sir William Osler. Foi Osler que aplicou à Medicina o aforismo de William de Occam, filósofo do século XIV, assim enunciado: Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatum. Significa que as coisas não devem ser fragmentadas ou subdivididas, a não ser quando necessário. Daí deriva o princípio básico da clínica médica que preconiza sempre tentar reunir os sintomas e os achados clínicos apresentados pelo paciente dentro de um único diagnóstico. Para isso temos de usar todo o nosso conhecimento, raciocínio e intuição.

Nas últimas décadas, assistiu-se ao desenvolvimento acelerado de técnicas abrangendo todos os aspectos da atividade médica. A tal ponto que acarretou o exagero de se pensar que tais técnicas poderiam resolver por si todos os problemas, dando como ultrapassado o tipo de raciocínio clínico a que nos habituamos desde Osler. A alta tecnologia veio oferecer à Medicina a mesma coisa que o computador oferece a seu usuário, ou seja, o produto pronto e acabado sem esforço, desde que se utilizem as frases feitas e os textos que constam de seus programas.

Por outro lado, o desenvolvimento dessa multiplicidade de técnicas veio trazer imperiosamente a necessidade da escolha que só pode ser feita por nós médicos, seja dos meios mais eficientes, seja dos procedimentos mais seguros e dos mais efetivos, inclusive em relação ao custo para a sociedade. Veio nos desafiar também a julgar o que é relevante, quais dos achados correspondem ao problema real do paciente e quais são apenas variações anatômicas ou manifestações sem importância clínica. Houve um aumento da incidência de descobertas insuspeitadas do tipo “atirou no que viu, acertou no que não viu”. Ao mesmo tempo, as superespecializações e o declínio da visão global estão dividindo o paciente em unidades estanques, cada especialista vendo apenas sua área. A tendência parece ser a fragmentação da atenção médica. Quem faria a necessária integração?

Não é garantia de boa Medicina apenas a existência de caríssimos aparelhos, se não levarmos em conta a competência de quem neles trabalha. Na realidade, esse é o fator mais importante. Se nos encontramos trabalhando num local de parcos recursos diagnósticos, mesmo assim devem ser utilizados em tudo que puderem oferecer, o que implica competência da equipe médica. Não é raro ver a Medicina de melhor qualidade praticada em locais simples e com recursos limitados do que em grandes estabelecimentos superequipados com uma visão mercantilista da profissão. Pode-se não contar com equipamento de ponta no local onde se trabalha, mas sempre é possível fazer o melhor pelos pacientes usando os métodos de que se dispõe. A indicação de qual exame vai ser utilizado para cada caso deve levar em conta não apenas a disponibilidade local de equipamentos, mas, principalmente, a proficiência dos médicos que os utilizam.

Essa discussão toda nasce porque, em nossa cultura, tal fato vem sendo rapidamente esquecido. Cada vez se ouve mais “este aparelho é o mais moderno” Cada vez se vê mais propaganda do tipo “diagnósticos muito mais precisos com aparelhos de última geração”. Observa-se também a proliferação de empresas “especializadas em diag-nósticos médicos”, geralmente omitindo os nomes dos médicos ou a inscrição no Conselho Regional de Medicina. Há realmente um esforço mercadológico para enal-tecer a tecnologia em detrimento do elemento humano. Essa ênfase pode ser entendida como um imperativo exclusivamente comercial. Podemos nos deslumbrar com a capacidade cada vez mais extraordinária dos novos instrumentos, mas sem perder a perspectiva de qual é o fim único da nossa atividade, que é o bem estar físico e psicológico de nossos pacientes. Esse objetivo, a tecnologia jamais conseguirá sozinha. O fator decisivo nunca deixará de ser o homem que está por trás dela.

Somente ao médico ou à equipe de médicos cabe discernir o que é melhor para o paciente, como evitar a iatrogenia (hoje um seríssimo problema), como utilizar os melhores recursos e os realmente necessários, não esquecendo as limitações de ordem econômica. Acredito que a responsabilidade ética do médico cresceu, ao invés de diminuir, com o desenvolvimento de instrumental sofisticado. Cada vez mais somos obrigados a julgamentos e decisões levando em consideração os inúmeros fatores apontados aqui e que estão longe de esgotar o assunto. Para uma Medicina humanizada, trabalhando a favor do paciente, qualidades humanas intrínsecas continuam essenciais a despeito do nosso deslumbramento tecnológico.

* Cássio Ruas de Moraes é radiologista, membro da Comissão de Ética do Hospital São Lucas, de Ribeirão Preto.

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