CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
João Ladislau Rosa - Presidente do Cremesp
ENTREVISTA (págs. 4 a 9)
Vandana Shiva e Jeffrey Smith
CRÔNICA (págs. 10 a 11)
Tufik Bauab*
SINTONIA (págs. 12 a 15)
Bactérias resistentes
DEBATE (págs. 16 a 22)
Financiamento do SUS
CARTAS & NOTAS (pág. 23)
Aplicativo para mobiles
CONJUNTURA (págs. 24 a 27)
Ideias para o Sistema Único de Saúde
MÉDICOS NO MUNDO (págs. 28 a 31)
Fernando Nobre
GIRAMUNDO (págs. 32 a 33)
Curiosidades & Novidades
PONTO.COM (págs. 34 a 35)
Informações do mundo digital
HISTÓRIA DA MEDICINA (págs. 36 a 38)
Médico, poeta e criador da abreugrafia
CULTURA (págs. 39 a 43)
Obras ilustram Metrô de SP
TURISMO (págs. 44 a 47)
Alter do Chão
FOTOPOESIA (pág. 48)
Gilberto Mendonça Teles
GALERIA DE FOTOS
ENTREVISTA (págs. 4 a 9)
Vandana Shiva e Jeffrey Smith
“Os médicos deveriam se interessar pelos transgênicos”
Por Concília Ortona*
A questão sobre a liberação de alimentos geneticamente modificados interessa aos médicos? Os pesquisadores entrevistados pela Ser Médico garantem que sim. A física e ativista ambiental indiana, Vandana Shiva, ganhadora do Right Livelihood Award – versão alternativa do Prêmio Nobel da Paz –, explicou que os profissionais da Saúde deveriam inserir-se nas discussões, motivados “pelos impactos reais dos transgênicos na saúde coletiva e individual”, além das dificuldades de acesso aos pacientes trazidas pelas patentes de medicamentos.
Por seu lado, o jornalista e escritor norte-americano Jeffrey Smith, defensor dos consumidores contra alimentos submetidos à biotecnologia, opina que a remissão de sintomas gastrointestinais e de distúrbios do sistema imunológico justifica a atenção dos médicos. “Uma vez admitidos os problemas com os Organismos Geneticamente Modificados (OGM), eles recomendam aos pacientes evitarem alimentos transgênicos.”
Ambos os entrevistados são respeitados autores e críticos contundentes da indústria da transgenia – atividade aplicada em agricultura “para viabilizar o cultivo das espécies vegetais mais adaptadas às necessidades humanas, como resistência à seca e incidência de pragas, entre outras”, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Vandana Shiva e Jeffrey Smith não escondem o que pensam a respeito de grandes empresas envolvidas no setor.
Vandana Shiva
Ser Médico – É dever ético dos médicos participar do debate sobre alimentos geneticamente modificados?
Vandana Shiva – Sim, por causa de impactos reais à saúde coletiva e individual, conforme mostram estudos promovidos na Argentina, França e Rússia, entre outros países. Também é preciso considerar que as patentes de medicamentos negam às pessoas o acesso à Medicina, bem como o fato de que a mesma indústria que controla alimentos geneticamente modificados também atua no setor farmacêutico e no de agroquímicos (destinados ao uso nos setores de produção, armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas) e o impacto deles sobre a saúde.
SM – No caso específico do uso da biotecnologia na produção de medicamentos, não é possível argumentar que os fins justificam os meios?
Shiva – Em geral, meios e fins são inseparáveis. Como ecologista, conclamo o Princípio da Precaução em relação à liberação deliberada de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) ao meio ambiente. O Princípio de Precaução significa, entre outras coisas, a associação respeitosa e funcional entre o homem e a natureza. Ou seja, que haja garantia contra os riscos potenciais ainda não identificados pelo estado atual do conhecimento. Ainda como princípio ético, precaução implica responsabilidade em relação às futuras gerações e ao meio ambiente.
SM – No Brasil, no início da década de 2000, houve muita controvérsia e debate ético em torno dos OGMs, após a União Europeia autorizar a importação de tais produtos. Mas, depois, foram absorvidos pelas culturas, isto é, viver com eles tornou-se “normal”. É um risco?
Shiva – Situações em que os OGMs são impulsionados pelas grandes corporações nunca são normais. Correspondem a ocorrências anormais. O debate sobre os transgênicos refere-se a poder e controle. É econômico. Corresponde a uma discussão científica situada entre um paradigma reducionista não fundamentado e fora de moda, e outro ecológico emergente. É uma disputa entre a democracia e a ditadura. Quando os OGMs foram aprovados no Brasil, fui convidada para debater o tema no Rio Grande do Sul. À época, havia um forte movimento de agricultores contra as sementes geneticamente modificadas, mas agora, ao que parece, os campos estão cobertos de soja transgênica. Isso é parte da mudança trazida pela globalização e pela tomada do poder por parte das multinacionais, contrárias a qualquer acordo ambiental.
SM – A senhora costuma falar sobre “ditadura da alimentação”. Como as grandes corporações chegaram ao domínio do setor e o que objetivam?
Shiva – Querem controle e lucros, por meio da venda de sementes patenteadas e produtos químicos. Patentes sobre sementes são ilegítimas, pois colocar um gene tóxico em uma célula vegetal não corresponde a “criar” ou a “inventar” uma planta. Além disso, patentes são concedidas a invenções, não a formas de vida. A fala da Monsanto (multinacional norte-americana de agricultura e biotecnologia) referente aos benefícios da “tecnologia” tenta esconder seus verdadeiros objetivos, nos quais a engenharia genética é apenas um meio para controlar sementes e alimentos, através do sistema de patentes e direitos de propriedade intelectual. Por exemplo, no Brasil, agricultores processaram a Monsanto por considerarem injusta a cobrança de royalties. Taxas como essas custam bilhões anuais aos trabalhadores da terra norte-americanos. Na Índia, são cobrados U$ 200 milhões, levando os agricultores a uma dívida impagável e ao suicídio. Desde 1995, em meu país, ocorreram 300 mil mortes assim. Agora, a Monsanto comprou a maior empresa voltada ao clima, a Climate Corporation (que transforma informações climáticas em recomendações para os agricultores, voltadas, por exemplo, a alterar uma programação de irrigação); e a maior corporação de solo, a Solum Inc. A meta é controlar todos os aspectos do sistema de produção de alimentos. Quando uma empresa controla a semente, controla a vida, especialmente, a vida dos agricultores. As empresas vão longe demais. Para se ter uma ideia, havia a intenção de privatizar o abastecimento de água. O ativismo indiano interrompeu um projeto desse tipo, que o Banco Mundial pretendia empurrar para Nova Déli. Nossa ONG, a Research Foundation for Science, Technology and Ecology, apoiou ainda movimentos que fecharam três fábricas da Coca-Cola, por roubar água.
SM – Por que não concorda com a visão de que modificações genéticas podem tornar plantas mais resistentes e, como consequência, reduzir a fome?
Shiva – Culturas de sementes Bacillus thuringiensis (ou Bt, vulgarmente utilizada como um pesticida biológico) deveriam controlar as pragas, mas não conseguiram fazê-lo. Acabaram criando superpragas, que obrigam os agricultores a pulverizarem mais produtos químicos. Nos EUA, culturas tolerantes a herbicidas têm levado ao surgimento de super ervas daninhas; metade da superfície agrícola no país é coberta por elas. Para solucionar o problema, agora a intenção é pulverizar o tal do “agente laranja”, herbicida e desfolhante usado na Guerra do Vietnã, para impedir que inimigos se escondessem atrás dos arbustos. O “agente laranja” foi responsável pela contaminação de alimentos e água, causando danos como câncer, incapacidade mental e deformidades por três gerações.
SM – Seu país tem mais de 1,2 bilhão de habitantes; a China, 1,3 bilhão. Os EUA, mais de 300 milhões, e o Brasil, mais de 200 milhões. Não é utópico crer na possibilidade de alimentar a todos, priorizando a agricultura familiar?
Shiva – A agricultura industrial fornece somente 30% dos alimentos, enquanto usa 70% da terra. A agricultura familiar produz 70% dos alimentos, só que cobre apenas 30% da terra. Utopia seria supor que uma ineficiente e desperdiçadora agricultura industrial conseguiria alimentar o mundo. Irá destruir o planeta antes de alimentar metade da humanidade.
SM – A senhora sempre “dá nome aos bois”, atacando poderosas empresas como Nestlé, Monsanto e Walmart. Sofreu represálias ou ameaças por suas posições políticas?
Shiva – Sim, enfrentei e continuo enfrentando vários ataques, e tenho tentado responder a alguns deles. Sei lidar com isso, usando como arma a contínua busca da verdade, guiada pela minha consciência.
Jeffrey Smith
Ser Médico – A biotecnologia é vista por cientistas e médicos como esperança para obterem-se remédios. A insulina, por exemplo, é um transgênico. O senhor é contra a biotecnologia como um todo ou só a relativa a alimentos geneticamente modificados?
Jeffrey Smith – A biotecnologia embute ferramentas úteis, podendo ser usada com vantagens em Medicina, mas não se deve esquecer que ainda encontra-se em um estágio inicial. Seus potenciais efeitos colaterais merecem ser respeitados. A terapia genética humana, por exemplo, provocou acidentalmente leucemia em vários indivíduos, e a engenharia genética do suplemento alimentar L-triptofano foi, quase com certeza, responsável por uma epidemia mortal nos Estados Unidos, no final dos anos 80. (N. da R.: A síndrome de eosinofilia-mialgia causou a morte de 37 pessoas e a invalidez de outras 1.500; à época, o Food and Drugs Administration, FDA, responsável pela liberação de novas drogas e alimentos, dos EUA, ligou os casos ao L-triptofano.) Embora algum dia possa se tornar possível manipular o DNA de maneira previsível em engenharia genética de alimentos, é cedo demais para correr tal risco. Infelizmente, a longa duração das patentes; a necessidade de retorno do investimento; e a “miopia de pensamento” de alguns, levam à liberação irresponsável de transgênicos alimentares de alto risco e seus prováveis efeitos colaterais.
SM – Há alguns anos, o senhor defendeu a exclusão total de OGMs da produção de alimentos. É falsa a impressão de que o mundo teria mais fome sem transgênicos?
Smith – A noção de que “precisamos de engenharia genética para alimentar a crescente população mundial” partiu de uma empresa de relações públicas, tentando angariar apoio público à prática. Quando avaliado cientificamente, no entanto, o argumento não se sustenta. Patrocinado pela ONU e pelo Banco Mundial, o relatório Avaliação Internacional do Conhecimento Agrícola, Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento (Iaastd, sigla em inglês), que contou com a colaboração de mais de 400 cientistas, concluiu que a atual geração de OGMs nada tem a oferecer contra a fome, para a erradicação da pobreza, ou à produção de agricultura sustentável. Outro relatório da União de Cientistas Preocupados (sigla em inglês UCS – organização sem fins lucrativos, dedicada a sugerir soluções práticas e sustentáveis para a saúde mundial) demonstrou que OGMs, na verdade, não aumentam a produção, teoria confirmada por relatório do Departamento de Agricultura dos EUA, e outras revisões independentes. Em contraste, métodos orgânicos e sustentáveis têm apresentado aumento de produção da ordem de 8.200%, em países em desenvolvimento. Mesmo nos desenvolvidos, como os EUA, os OGMs não superam os métodos orgânicos.
SM – Se os OGMs são os “inimigos”, como lutar com inimigos tão invisíveis, incentivados por corporações tão poderosas?
Smith – Para interromper a produção de OGMs, tiremos como lição o ocorrido na Europa. Em 1999, foi perpetrada ordem de mordaça (medida de força para impedir alguém de comentar ou prestar declarações) contra um proeminente cientista, Árpád Pusztai, da Universidade de Aberdeen, na Escócia, que identificou como “perigoso” o processo de engenharia genética, por causar danos significativos a ratos alimentados com OGMs supostamente inofensivos. Ao revelar suas preocupações, Pusztai foi demitido, depois de 35 anos de trabalho, do Rowett Research Institute, onde desenvolveu a pesquisa. Foi ainda silenciado por ameaças de ações judiciais, e alvo de uma campanha para destruir sua reputação. No mesmo ano, quando o Parlamento britânico suspendeu a ordem de silêncio, uma tempestade de artigos contra os OGMs foi publicada. Em um mês, saíram mais de 700, só no Reino Unido. O educado público inglês passou a se sentir com “o pé atrás” em relação aos OGMs. A reação da indústria de alimentos foi rápida e decisiva. Meses depois, uma empresa após a outra declarou a intenção de “remover ingredientes transgênicos de seus produtos europeus”. Uma rejeição do consumidor a esse nível manteve ingredientes diretos de OGMs fora da Europa – apesar da opinião favorável de governos e, mesmo, da União Europeia. Nos Estados Unidos, a conscientização sobre os perigos de alimentos geneticamente modificados se espalha rapidamente. Em 2012, 51% dos americanos revelaram preocupação em relação aos perigos para a saúde desses produtos e 39% disseram que já estavam reduzindo ou eliminando OGM de sua dieta. Espera-se que essa “revolução” ocorra não pela aprovação de novas leis ou políticas governamentais, e, sim, com base na demanda do consumidor.
SM – Os defensores dos OGMs tinham conhecimento de seus potenciais prejuízos?
Smith – Documentos tornados públicos a partir de ação judicial revelam que cientistas da FDA advertiram repetidamente seus superiores de que OGMs poderiam trazer sérios problemas à saúde, exigindo testes de longo prazo. Com isso, a justificativa política de que “a agência (FDA) não tinha conhecimento de qualquer informação”, relativa a efeitos maléficos do OGM, foi derrubada, traduzindo-se em uma mentira completa. Mas foi a Casa Branca que ordenou a agência a promover tal biotecnologia, recrutando Michael Taylor, ex-advogado da empresa Monsanto, para chefiar a formação de políticas sobre OGMs. As normas estão vigentes desde 1992, e permitem aos fabricantes de transgênicos determinar – por conta própria – se seus alimentos são “seguros”. Em outras palavras, empresas gigantes dos transgênicos, como a Monsanto, podem colocar no mercado seus produtos, sem promover estudos de segurança, e, mesmo, sem a aprovação da FDA. Lembrem-se: trata-se da mesma corporação que defendeu a “segurança” do seu agente laranja; do DDT, pesticida banido em vários países, por prejudicar a saúde e interferir no equilíbrio ambiental; e do PCB, agrotóxico incluído entre os dez poluentes orgânicos com maior potencial de toxicidade no mundo. A propósito, depois de supervisionar a política de OGMs no FDA, o sr. Taylor tornou-se vice-presidente da Monsanto e seu principal lobista. No verão de 2009, passou pela porta giratória novamente, sendo nomeado pela administração Obama como uma espécie de czar da área de alimentos do FDA.
SM – Certa vez o senhor mencionou pesquisa da Academia Americana de Medicina Ambiental que, com base no Princípio da Precaução, recomenda aos médicos a prescreverem dieta livre de alimentos transgênicos. É tarefa de toda a categoria?
Smith – Não há nenhum governo ou universidade patrocinando avaliações epidemiológicas dos impactos dos OGMs na saúde coletiva dos norte-americanos. Porém, em geral, médicos não necessitam de um monte de estudos para adotar medidas de proteção aos seus pacientes. Uma vez admitidos os problemas com OGMs, recomendam evitar-se tais alimentos, e percebem rápida recuperação. De longe, os sintomas mais frequentes abrandados pela retirada de OGMs da alimentação envolvem o trato gastrointestinal, e incluem intestino irritável, obstipação inflamatória intestinal e refluxo gástrico; também se amenizam a falta de energia e de concentração, e distúrbios do sistema imunológico, como alergias, erupções de pele e asma, além de outros, como enxaqueca. Muitos pais relatam melhora no comportamento dos filhos, incluindo redução de déficit de atenção e de sintomas autistas e violentos. Estamos recolhendo relatos de indivíduos e de profissionais que têm notado mudanças desde a remoção de OGMs das dietas, pelo e-mail: healthy@responsibletechnology.org
SM – Por fim, a discussão envolvendo OGMs é essencialmente bioética?
Smith – Observamos discussões bioéticas em relação à confiabilidade questionável de pesquisas patrocinadas por empresas; ao patenteamento da vida e à enorme perda de biodiversidade; ao uso excessivo de herbicidas e outros produtos químicos, capazes de envenenar nossos corpos e, ainda, nossa terra, sem chances de recuperação; à ganância corporativa, e à influência das empresas no governo. Sob um ponto de vista mais amplo, olhamos para dois futuros: coletivamente, há aspirações do uso da biotecnologia para patentear 100% das sementes, isto é, um plano para substituir a natureza por organismos projetados e desenhados para obter um maior lucro e controle. O outro futuro possível inclui proteger e preservar a natureza. Essa é a minha escolha e no que estou trabalhando.
* Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública (USP)