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João Ladislau Rosa - Presidente do Cremesp


ENTREVISTA (págs. 4 a 9)
Vandana Shiva e Jeffrey Smith


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Tufik Bauab*


SINTONIA (págs. 12 a 15)
Bactérias resistentes


DEBATE (págs. 16 a 22)
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CARTAS & NOTAS (pág. 23)
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Ideias para o Sistema Único de Saúde


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Edição 69 - Outubro// de 2014

ENTREVISTA (págs. 4 a 9)

Vandana Shiva e Jeffrey Smith

“Os médicos deveriam se interessar pelos transgênicos”

 Por Concília Ortona*

 

A questão sobre a liberação de alimentos geneticamente modificados interessa aos médicos? Os pesquisadores entrevistados pela Ser Médico garantem que sim. A física e ativista ambiental indiana, Vandana Shiva, ganhadora do Right Livelihood Award – versão alternativa do Prêmio Nobel da Paz –, explicou que os profissionais da Saúde deveriam inserir-se nas discussões, motivados “pelos impactos reais dos transgênicos na saúde coletiva e individual”, além das dificuldades de acesso aos pacientes trazidas pelas patentes de medicamentos.

Por seu lado, o jornalista e escritor norte-americano Jeffrey Smith, defensor dos consumidores contra alimentos submetidos à biotecnologia, opina que a remissão de sintomas gastrointestinais e de distúrbios do sistema imunológico justifica a atenção dos médicos. “Uma vez admitidos os problemas com os Organismos Geneticamente Modificados (OGM), eles recomendam aos pacientes evitarem alimentos transgênicos.”

Ambos os entrevistados são respeitados autores e críticos contundentes da indústria da transgenia – atividade aplicada em agricultura “para viabilizar o cultivo das espécies vegetais mais adaptadas às necessidades humanas, como resistência à seca e incidência de pragas, entre outras”, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Vandana Shiva e Jeffrey Smith não escondem o que pensam a respeito de grandes empresas envolvidas no setor.

 


Vandana Shiva

   Ser Médico É dever ético dos médicos participar do debate sobre alimentos geneticamente modificados?
   Vandana Shiva – Sim, por causa de impactos reais à saúde coletiva e individual, conforme mostram estudos promovidos na Argentina, França e Rússia, entre outros países. Também é preciso considerar que as patentes de medicamentos negam às pessoas o acesso à Medicina, bem como o fato de que a mesma indústria que controla alimentos geneticamente modificados também atua no setor farmacêutico e no de agroquímicos (destinados ao uso nos setores de produção, armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas) e o impacto deles sobre a saúde.

 

SM – No caso específico do uso da biotecnologia na produção de medicamentos, não é possível argumentar que os fins justificam os meios?
Shiva – Em geral, meios e fins são inseparáveis. Como ecologista, conclamo o Princípio da Precaução em relação à liberação deliberada de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) ao meio ambiente.  O Princípio de Precaução significa, entre outras coisas, a associação respeitosa e funcional entre o homem e a natureza. Ou seja, que haja garantia contra os riscos potenciais ainda não identificados pelo estado atual do conhecimento. Ainda como princípio ético, precaução implica responsabilidade em relação às futuras gerações e ao meio ambiente.

 

SMNo Brasil, no início da década de 2000, houve muita controvérsia e debate ético em torno dos OGMs, após a União Europeia autorizar a importação de tais produtos. Mas, depois, foram absorvidos pelas culturas, isto é, viver com eles tornou-se “normal”. É um risco?
Shiva – Situações em que os OGMs são impulsionados pelas grandes corporações nunca são normais. Correspondem a ocorrências anormais. O debate sobre os transgênicos refere-se a poder e controle. É econômico. Corresponde a uma discussão científica situada entre um paradigma reducionista não fundamentado e fora de moda, e outro ecológico emergente. É uma disputa entre a democracia e a ditadura. Quando os OGMs foram aprovados no Brasil, fui convidada para debater o tema no Rio Grande do Sul.  À época, havia um forte movimento de agricultores contra as sementes geneticamente modificadas, mas agora, ao que parece, os campos estão cobertos de soja transgênica. Isso é parte da mudança trazida pela globalização e pela tomada do poder por parte das multinacionais, contrárias a qualquer acordo ambiental.

 

SM – A senhora costuma falar sobre “ditadura da alimentação”. Como as grandes corporações chegaram ao domínio do setor e o que objetivam?
Shiva – Querem controle e lucros, por meio da venda de sementes patenteadas e produtos químicos. Patentes sobre sementes são ilegítimas, pois colocar um gene tóxico em uma célula vegetal não corresponde a “criar” ou a “inventar” uma planta. Além disso, patentes são concedidas a invenções, não a formas de vida. A fala da Monsanto (multinacional norte-americana de agricultura e biotecnologia) referente aos benefícios da “tecnologia” tenta esconder seus verdadeiros objetivos, nos quais a engenharia genética é apenas um meio para controlar sementes e alimentos, através do sistema de patentes e direitos de propriedade intelectual. Por exemplo, no Brasil, agricultores processaram a Monsanto por considerarem injusta a cobrança de royalties. Taxas como essas custam bilhões anuais aos trabalhadores da terra norte-americanos. Na Índia, são cobrados U$ 200 milhões, levando os agricultores a uma dívida impagável e ao suicídio. Desde 1995, em meu país, ocorreram 300 mil mortes assim. Agora, a Monsanto comprou a maior empresa voltada ao clima, a Climate Corporation (que transforma informações climáticas em recomendações para os agricultores, voltadas, por exemplo, a alterar uma programação de irrigação); e a maior corporação de solo, a Solum Inc. A meta é controlar todos os aspectos do sistema de produção de alimentos. Quando uma empresa controla a semente, controla a vida, especialmente, a vida dos agricultores. As empresas vão longe demais. Para se ter uma ideia, havia a intenção de privatizar o abastecimento de água. O ativismo indiano interrompeu um projeto desse tipo, que o Banco Mundial pretendia empurrar para Nova Déli.  Nossa ONG, a Research Foundation for Science, Technology and Ecology, apoiou ainda movimentos que fecharam três fábricas da Coca-Cola, por roubar água.

 

SM – Por que não concorda com a visão de que modificações genéticas podem tornar plantas mais resistentes e, como consequência, reduzir a fome?
Shiva – Culturas de sementes Bacillus thuringiensis (ou Bt, vulgarmente utilizada como um pesticida biológico) deveriam controlar as pragas, mas não conseguiram fazê-lo. Acabaram criando superpragas, que obrigam os agricultores a pulverizarem mais produtos químicos. Nos EUA, culturas tolerantes a herbicidas têm levado ao surgimento de super ervas daninhas; metade da superfície agrícola no país é coberta por elas. Para solucionar o problema, agora a intenção é pulverizar o tal do “agente laranja”, herbicida e desfolhante usado na Guerra do Vietnã, para impedir que inimigos se escondessem atrás dos arbustos. O “agente laranja” foi responsável pela contaminação de alimentos e água, causando danos como câncer, incapacidade mental e deformidades por três gerações.

 

SM – Seu país tem mais de 1,2 bilhão de habitantes; a China, 1,3 bilhão. Os EUA, mais de 300 milhões, e o Brasil, mais de 200 milhões. Não é utópico crer na possibilidade de alimentar a todos, priorizando a agricultura familiar?
Shiva – A agricultura industrial fornece somente 30% dos alimentos, enquanto usa 70% da terra. A agricultura familiar produz 70% dos alimentos, só que cobre apenas 30% da terra. Utopia seria supor que uma ineficiente e desperdiçadora agricultura industrial conseguiria alimentar o mundo. Irá destruir o planeta antes de alimentar metade da humanidade.

 

SM – A senhora sempre “dá nome aos bois”, atacando poderosas empresas como Nestlé, Monsanto e Walmart. Sofreu represálias ou ameaças por suas posições políticas?
Shiva – Sim, enfrentei e continuo enfrentando vários ataques, e tenho tentado responder a alguns deles. Sei lidar com isso, usando como arma a contínua busca da verdade, guiada pela minha consciência.

 


 

Jeffrey Smith

   Ser Médico – A biotecnologia é vista por cientistas e médicos como esperança para obterem-se remédios. A insulina, por exemplo, é um transgênico. O senhor é contra a biotecnologia como um todo ou só a relativa a alimentos geneticamente modificados?
   Jeffrey Smith – A biotecnologia embute ferramentas úteis, podendo ser usada com vantagens em Medicina, mas não se deve esquecer que ainda encontra-se em um estágio inicial. Seus potenciais efeitos colaterais merecem ser respeitados. A terapia genética humana, por exemplo, provocou acidentalmente leucemia em vários indivíduos, e a engenharia genética do suplemento alimentar L-triptofano foi, quase com certeza, responsável por uma epidemia mortal nos Estados Unidos, no final dos anos 80. (N. da R.: A síndrome de eosinofilia-mialgia causou a morte de 37 pessoas e a invalidez de outras 1.500; à época, o Food and Drugs Administration, FDA, responsável pela liberação de novas drogas e alimentos, dos EUA, ligou os casos ao L-triptofano.) Embora algum dia possa se tornar possível manipular o DNA de maneira previsível em engenharia genética de alimentos, é cedo demais para correr tal risco. Infelizmente, a longa duração das patentes; a necessidade de retorno do investimento; e a “miopia de pensamento” de alguns, levam à liberação irresponsável de transgênicos alimentares de alto risco e seus prováveis efeitos colaterais.

 

SM – Há alguns anos, o senhor defendeu a exclusão total de OGMs da produção de alimentos. É falsa a impressão de que o mundo teria mais fome sem transgênicos?
Smith – A noção de que “precisamos de engenharia genética para alimentar a crescente população mundial” partiu de uma empresa de relações públicas, tentando angariar apoio público à prática. Quando avaliado cientificamente, no entanto, o argumento não se sustenta. Patrocinado pela ONU e pelo Banco Mundial, o relatório Avaliação Internacional do Conhecimento Agrícola, Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento (Iaastd, sigla em inglês), que contou com a colaboração de mais de 400 cientistas, concluiu que a atual geração de OGMs nada tem a oferecer contra a fome, para a erradicação da pobreza, ou à produção de agricultura sustentável. Outro relatório da União de Cientistas Preocupados (sigla em inglês UCS – organização sem fins lucrativos, dedicada a sugerir soluções práticas e sustentáveis para a saúde mundial) demonstrou que OGMs, na verdade, não aumentam a produção, teoria confirmada por relatório do Departamento de Agricultura dos EUA, e outras revisões independentes. Em contraste, métodos orgânicos e sustentáveis têm apresentado aumento de produção da ordem de 8.200%, em países em desenvolvimento. Mesmo nos desenvolvidos, como os EUA, os OGMs não superam os métodos orgânicos.

 

SM – Se os OGMs são os “inimigos”, como lutar com inimigos tão invisíveis, incentivados por corporações tão poderosas?
Smith – Para interromper a produção de OGMs, tiremos como lição o ocorrido na Europa. Em 1999, foi perpetrada ordem de mordaça (medida de força para impedir alguém de comentar ou prestar declarações) contra um proe­minente cientista, Árpád Pusztai, da Universidade de Aberdeen, na Escócia, que identificou como “perigoso” o processo de engenharia genética, por causar danos significativos a ratos alimentados com OGMs supostamente inofensivos. Ao revelar suas preocupações, Pusztai foi demitido, depois de 35 anos de trabalho, do Rowett Research Institute, onde desenvolveu a pesquisa. Foi ainda silenciado por ameaças de ações judiciais, e alvo de uma campanha para destruir sua reputação. No mesmo ano, quando o Parlamento britânico suspendeu a ordem de silêncio, uma tempestade de artigos contra os OGMs foi publicada. Em um mês, saíram mais de 700, só no Reino Unido. O educado público inglês passou a se sentir com “o pé atrás” em relação aos OGMs. A reação da indústria de alimentos foi rápida e decisiva. Meses depois, uma empresa após a outra declarou a intenção de “remover ingredientes transgênicos de seus produtos europeus”. Uma rejeição do consumidor a esse nível manteve ingredientes diretos de OGMs fora da Europa – apesar da opinião favorável de governos e, mesmo, da União Europeia. Nos Estados Unidos, a conscientização sobre os perigos de alimentos geneticamente modificados se espalha rapidamente. Em 2012, 51% dos americanos revelaram preocupação em relação aos perigos para a saúde desses produtos e 39% disseram que já estavam reduzindo ou eliminando OGM de sua dieta. Espera-se que essa “revolução” ocorra não pela aprovação de novas leis ou políticas governamentais, e, sim, com base na demanda do consumidor.

 

SM – Os defensores dos OGMs tinham conhecimento de seus potenciais prejuízos?
Smith – Documentos tornados públicos a partir de ação judicial revelam que cientistas da FDA advertiram repetidamente seus superiores de que OGMs poderiam trazer sérios problemas à saúde, exigindo testes de longo prazo. Com isso, a justificativa política de que “a agência (FDA) não tinha conhecimento de qualquer informação”, relativa a efeitos maléficos do OGM, foi derrubada, traduzindo-se em uma mentira completa. Mas foi a Casa Branca que ordenou a agência a promover tal biotecnologia, recrutando Michael Taylor, ex-advogado da empresa Monsanto, para chefiar a formação de políticas sobre OGMs. As normas estão vigentes desde 1992, e permitem aos fabricantes de transgênicos determinar – por conta própria – se seus alimentos são “seguros”. Em outras palavras, empresas gigantes dos transgênicos, como a Monsanto, podem colocar no mercado seus produtos, sem promover estudos de segurança, e, mesmo, sem a aprovação da FDA. Lembrem-se: trata-se da mesma corporação que defendeu a “segurança” do seu agente laranja; do DDT, pesticida banido em vários países, por prejudicar a saúde e interferir no equilíbrio ambiental; e do PCB, agrotóxico incluído entre os dez poluentes orgânicos com maior potencial de toxicidade no mundo. A propósito, depois de supervisionar a política de OGMs no FDA, o sr. Taylor tornou-se vice-presidente da Monsanto e seu principal lobista. No verão de 2009, passou pela porta giratória novamente, sendo nomeado pela administração Obama como uma espécie de czar da área de alimentos do FDA.

 

SM – Certa vez o senhor mencionou pesquisa da Academia Americana de Medicina Ambiental que, com base no Princípio da Precaução, recomenda aos médicos a prescreverem dieta livre de alimentos transgênicos. É tarefa de toda a categoria?
Smith – Não há nenhum governo ou universidade patrocinando avaliações epidemiológicas dos impactos dos OGMs na saúde coletiva dos norte-americanos. Porém, em geral, médicos não necessitam de um monte de estudos para adotar medidas de proteção aos seus pacientes. Uma vez admitidos os problemas com OGMs, recomendam evitar-se tais alimentos, e percebem rápida recuperação. De longe, os sintomas mais frequentes abrandados pela retirada de OGMs da alimentação envolvem o trato gastrointestinal, e incluem intestino irritável, obstipação inflamatória intestinal e refluxo gástrico; também se amenizam a falta de energia e de concentração, e distúrbios do sistema imunológico, como alergias, erupções de pele e asma, além de outros, como enxaqueca. Muitos pais relatam melhora no comportamento dos filhos, incluindo redução de déficit de atenção e de sintomas autistas e violentos. Estamos recolhendo relatos de indivíduos e de profissionais que têm notado mudanças desde a remoção de OGMs das dietas, pelo e-mail: healthy@responsibletechnology.org

 

SM – Por fim, a discussão envolvendo OGMs é essencialmente bioética?
Smith – Observamos discussões bioéticas em relação à confiabilidade questionável de pesquisas patrocinadas por empresas; ao patentea­mento da vida e à enorme perda de biodiversidade; ao uso excessivo de herbicidas e outros produtos químicos, capazes de envenenar nossos corpos e, ainda, nossa terra, sem chances de recuperação; à ganância corporativa, e à influência das empresas no governo. Sob um ponto de vista mais amplo, olhamos para dois futuros: coletivamente, há aspirações do uso da biotecnologia para patentear 100% das sementes, isto é, um plano para substituir a natureza por organismos projetados e desenhados para obter um maior lucro e controle. O outro futuro possível inclui proteger e preservar a natureza. Essa é a minha escolha e no que estou trabalhando.

 

* Jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública (USP)


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