CAPA
EDITORIAL
Ponto de Partida
ENTREVISTA
O cientista Luís Hildebrando Pereira da Silva é o convidado especial desta edição
CRÔNICA
Pasquale Cipro Neto
POLÍTICA DE SAÚDE
Fátima Dinis Rigato
SINTONIA
Cássio Ruas de Moraes
DEBATE
Informações Médicas à Disposição de Todos
EM FOCO
Cultivando Hipócrates
HISTÓRIA DA MEDICINA
Moacyr Scliar
LIVRO DE CABECEIRA
Trindade, o conflito da Irlanda em romance
CULTURA
Noel Rosa
TURISMO
Conheça Bonito, no extremo sul do Pantanal
CARTAS & NOTAS
Elogios, Agradecimentos e Bibliografia
POESIA
Mário Quintana
GALERIA DE FOTOS
CRÔNICA
Pasquale Cipro Neto
“Ouviram do Ipiranga...”Pasquale Cipro Neto*
Há algum tempo, o médico e ex-jogador de futebol Sócrates disse que a maior emoção que a carreira esportiva lhe proporcionou ocorreu na Copa do Mundo de 1982, mais precisamente durante a execução do Hino Nacional antes da primeira partida do Brasil naquela disputa. “A idéia de representar toda a nação brasileira me deixou emocionado”, disse a Marília Gabriela o memorável doutor Sócrates, que capitaneava a Seleção e disputava seu primeiro Mundial.
A maioria dos “boleiros” brasileiros tem água de batata na cabeça; Sócrates, no entanto, é lúcido, inteligente, corajoso, culto. E tem percepção política aguda, acutíssima. Que isso tem que ver com o episódio do Hino? A nefanda ditadura militar fez que tivéssemos (os que, de uma forma ou de outra, lutamos contra ela) uma relação complicada com o Hino. Era inevitável que ele nos soasse como propaganda nazifascista, já que os vendilhões da pátria nos enfiavam goela abaixo o “Ouviram do Ipiranga...” para “legitimar” todas as barbaridades que perpetravam contra a Nação.
Irônica e paradoxalmente, usávamos o Hino como escudo, já que acreditávamos numa lenda da época, segundo a qual ninguém podia ser preso ou apanhar da polícia se estivesse cantando o Hino Nacional. Cantávamo-lo. E apanhávamos. E éramos presos.
Um dos dias mais lúgubres de minha vida foi o do juramento à bandeira. Em pleno gramado do estádio do Pacaembu, onde desfilaram sua arte Pelé, Roberto Dias, Ademir da Guia e o próprio Sócrates, entre outros deuses da bola, um militar de alta patente proferia as besteiras típicas do alucinado discurso da época, enquanto recos distribuíam cacetadas nos juradores que praticávamos o crime de bocejar, pelo que ouvíamos e porque estávamos lá havia muitas horas. O Hino, é claro, engalanou a “festa”.
Quando ouvi a declaração de Sócrates, vieram-me à mente vários desses tristes episódios. É claro que não cometi o despautério doentio de ficar decepcionado com o “Doutor” ou de julgá-lo alienado, o que muitos xiitas devem ter feito. O hino, afinal, é uma das carteiras de identidade de um povo, é um de seus símbolos. Conquanto não morra de amores por símbolos, muito menos pela tosca e torta visão de patriotismo que ainda grassa no Brasil (prefiro o que diz Vinicius em seu antológico poema “Pátria Minha”), entendo o que sentiu Sócrates. Entendo porque também me emociono quando, em certas ocasiões (sobretudo as de cunho social e político), o povo se põe a cantar o Hino. Parece-me um grito pela busca de uma pátria que, na verdade, não temos ou não é nossa (“Por que te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho pátria...”, diz o texto de Vinicius). Para a maior parte dos brasileiros, a pátria (palavra que vem do latim e é da mesma família de “pai”) não é nem pai, como quer a origem da palavra, nem mãe, como diz o Hino (“Dos filhos deste solo és mãe gentil...”).
Posto isso, vamos trocar duas palavras sobre a estrutura da letra de nosso Hino. De início, é preciso deixar claro que não há acento grave no “as” de “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas...”. Por dois motivos: porque não há mesmo (assim está na lei que torna oficial a letra do Hino) e porque com ele o agente de “ouviram” seria indeterminado, interpretação que perde força quando se analisa o contexto. Posta na ordem direta, a primeira oração da letra oficial do Hino se transforma em “As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heróico”. Sim, foram elas, margens, que ouviram o brado do povo. Temos aí a figura da prosopopéia, pela qual se atribuem características humanas a seres inanimados.
A letra do Hino Nacional é repleta de inversões. Desmontar as orações e reconstruí-las é fundamental para a compreensão do texto. “Brasil, de amor eterno seja símbolo o lábaro que ostentas estrelado”, por exemplo, transforma-se em “Brasil, (que) o lábaro que ostentas estrelado seja símbolo de amor eterno”. Para entender de vez, basta saber que “lábaro” significa “bandeira”, “estandarte”. E, por falar em “lábaro”, é bom tomar cuidado com o vocabulário, para não achar, por exemplo, que “garrida” tenha relação com “garra”. A garra, guardemo-la para concretizar este trecho do Hino, em que, por sinal, também existe inversão: “Dos filhos deste solo és mãe gentil” (“És mãe gentil dos filhos deste solo”). A pátria ainda não é mãe gentil de significativa parcela dos filhos de seu solo.
* Pasquale Cipro Neto é professor de português, colunista dos jornais “Folha de São Paulo”, “O Globo”, “Diário do Grande ABC”, entre outros, idealizador e apresentador do Programa “Nossa Língua Portuguesa” da TV Cultura e autor de várias obras ligadas à língua portuguesa.