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MÉDICOS NO MUNDO (págs. 22 a 26)
O atendimento no acampamento de refugiados em Dagahaley (Quênia)


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Álcool e direção: dupla perigosa


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Primeiros médicos no Brasil


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Edição 67 - Abril/Maio/Junho de 2014

MÉDICOS NO MUNDO (págs. 22 a 26)

O atendimento no acampamento de refugiados em Dagahaley (Quênia)


Uma brasileira em Dagahaley

“Trouxe mais ensinamentos e experiências do que deixei lá”, diz a psiquiatra Paula Orsi, que integrou a equipe da Médicos Sem Fronteiras no acampamento de refugiados somalis de Dagahaley, no Quênia

 


A médica e o psiquiatra que a precedeu conseguiram libertar das correntes 20 pacientes psicóticos


Paula Orsi em atendimento a pacientes, no acampamento


Racionamento de água é apenas um dos problemas
 

“É como tirar uma venda dos olhos, a gente deixa de ser um casulo. Não tem como ir e voltar a mesma pessoa, sempre volta melhor”. Assim, a médica psiquiatra Paula Orsi define sua experiência em missões da organização Médicos sem Fronteiras (MSF), no acampamento de refugiados de Dagahaley, perto da cidade de Dadaad, no Quênia, próxima à fronteira com a Somália. Também esteve no Congo, pela Cruz Vermelha.

Desde a adolescência, ela sonhava em trabalhar em missões humanitárias. Depois de fazer Medicina na Universidade de Santo Amaro (Unisa) e Residência em Psiquiatria e Psiquiatria Infantil na Unifesp, inscreveu-se na MSF. Para sua surpresa, foi convocada para trabalhar em duas semanas. Topou na hora, mas pediu dois meses para se desvencilhar dos compromissos.

Primeiramente, foi para a sede central da organização, em Genebra, na Suíça, e depois para Nairóbi, capital do Quênia, sede da coordenação médica da MSF naquele país. “Fiz todo o calendário de vacinas e profilaxia de malária. São muito cuidadosos. Deram também briefings sobre a cultura local. Assinei um contrato por seis meses”. A fluência em idiomas depende do local da missão. No caso da missão no Quênia, foi exigido o inglês.

De Nairóbi a Dadaad, onde fica Dagahaley, a viagem é feita em pequenos aviões. Na primeira vez, Paula permaneceu no acampamento por seis meses. Voltou ao Brasil, onde ficou por um mês, após viajar como turista pela África durante 30 dias, e retornou ao Quênia em 2011, no mesmo acampamento, de janeiro a abril.

Refugiados
Além de Dagahaley, o complexo de Dadaad abrange outros dois acampamentos, o de Hagadera e o de Ifo, instituídos há cerca de 20 anos, quando estourou a guerra civil na Somália. Nesses, o serviço médico é feito por outras organizações humanitárias. Ao todo, os três acampamentos reú­nem cerca de 500 mil refugiados, que, além do conflito armado, também fugiram da fome e da seca. Aos graves problemas no território somali, soma-se o percurso da viagem até lá, na maioria das vezes a pé. A odisseia, com privações e violências de todo tipo, inclui 80 km de deserto.

Em meio a temperaturas médias de 40o, as partes mais antigas dos acampamentos parecem cidades de porte médio, mas com precariedades gigantescas. Não há saneamento básico. As latrinas são esvaziadas, em média, a cada seis meses. A água, embora tratada e encanada até determinados pontos, é racionada permanentemente. Cada refugiado tem direito a poucos litros por semana para beber, cozinhar, tomar banho, lavar roupas e louças. Os habitantes mais antigos moram em barracos de barro com telhado de palha ou zinco, mas os novos ficam nos arredores do campo, em barracas improvisadas. Há situações surreais, principalmente entre os que estão nas tendas. “Durante os meses em que estive lá, três crianças foram comidas por hienas. À noite, a gente ouvia o barulho desses animais”, revela a médica.

A quase totalidade dos refugiados é muçulmana. “É uma situação extremamente complexa. Para respeitar as idiossincrasias locais, a ONU aloja os refugiados por clãs. As mulheres não podem usar roupas de alcinhas, nem saias curtas. Eu comprava tecido e mandava fazer uns vestidões”, relata Paula.


A médica brasileira ocupou o quarto de cortina verde (à esq.)


Paula e outro colega pintaram a unidade de atendimento infantil


MSF
A MSF conta com cerca de 100 pessoas em seu acampamento, quase todos da área da saúde: médicos, nutricionistas, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, entre outros. Também contrata cerca de 400 refugiados, como vigias, pedreiros, agentes comunitários de saúde, cozinheiros etc. “Dentre todo o pessoal, apenas 11 eram estrangeiros, os demais eram quenianos e somalis. A filosofia da organização é, sempre que possível, capacitar os nativos. Todos ganham um salário que, para o padrão africano, é razoável. Porém, para os estrangeiros é bem menos do que se ganha nos respectivos países. A maioria está lá por humanitarismo mesmo”, assegura.

“A convivência de 100 pessoas, 24 horas por dia, nem sempre é fácil. Mas é muito rico conhecer gente que é do mundo, que não tem fronteiras”, comenta a psiquiatra. O acampamento da organização é protegido por um muro de cimento, devido a problemas já ocorridos. Os profissionais estrangeiros moram em quartos individuais de 3m2, de alvenaria, enquanto os nativos dividem os quartos maiores entre três pessoas. A água é encanada e tem chuveiros. Há várias outras ONGs que trabalham nos acampamentos de Dadaab. “Passei a acreditar muito nelas ao verificar que fazem mesmo um trabalho sério e importante”, garante.

Equipe
Durante o tempo em que lá esteve, Paula coordenou a equipe de saúde mental de Dagahaley, composta por dois enfermeiros psiquiátricos e quatro agentes comunitários, que também eram tradutores. “Os enfermeiros atuavam como se fossem residentes. São muito independentes e têm bastante conhecimento de saúde mental. Meu papel era orientar e aprimorar a indicação do uso dos medicamentos e os diagnósticos, bem como dar aulas teóricas para a equipe”. Os agentes comunitários de saúde mental também ajudam a identificar pacientes portadores de distúrbios mentais, visitam as casas e verificam se os pacientes estão tomando os remédios. A médica também contava com a colaboração dos 40 agentes comunitários de saúde geral.

A rotina era bem tensa, admite. Acorda-se por volta das 6h30, quando é servido “um bolinho e chá com canela”, conta. “Como a equipe era bastante reduzida, nos revezávamos entre os quatro postos de saúde do campo. Um jipe nos levava e nos buscava”. O almoço, das 13 às 14 horas, era feito no acampamento da MSF. À tarde, a psiquiatra e sua equipe voltavam aos postos ou faziam visitas domiciliares. “À noite, ficávamos no acampamento da organização, onde a internet funciona por satélite”. Paula falava com sua família no Brasil, pelo Skype, todos os dias. “Às vezes, alguém projetava filmes em uma parede, fazíamos alguma festa ou íamos ao ´Bar do Etíope`. Em todos os acampamentos é proibido o consumo de bebida alcoólica. Cerveja, só no mercado negro”, informa. Já escorpiões não faltam. “Não são venenosos, mas provocam muita dor”. O cólera é sempre uma ameaça, mas enquanto a médica esteve lá, não houve nenhuma epidemia.

As folgas semanais são aos domingos e, a cada dois meses, os estrangeiros têm uma semana de pequenas férias. “Na primeira delas, fui para a África do Sul, na segunda, para a paradisíaca ilha de Zanzibar, e depois, para o Egito”, conta a psiquiatra.





No sentido horário: família de paciente acampada em frente ao hospital; posto de saúde; enfermaria masculina e outro dos quatro postos de saúde


Saúde mental
Os hospitais da MSF em Dagahaley não têm leitos para saúde mental. Os pacientes são tratados em casa. Pesquisa feita pela equipe de Paula, apenas entre os pacientes, ou seja, não correspondeu ao universo total dos refugiados, mostrou que 33% eram psicóticos. Muitos deles, disse ela, são acorrentados pelas famílias. “Nem dá para recriminá-las, pois geralmente não têm como segurar os surtos dos pacientes; é a forma que encontram para protegê-los”. Paula e o psiquiatra que trabalhou antes dela, dando início ao projeto de saúde mental, conseguiram libertar 20 pacientes, por meio da medicação e orientação das famílias.

O alto índice de psicose pode, dentre outras causas, ser decorrência, também, do hábito cultural de muitos povos africanos de mascar uma planta chamada Khat, que dá origem às anfetaminas. “Eles mascam a erva, verde, para enganar a fome e ter mais energia. E muitos surtam mesmo. A planta é vendida livremente em veículos que passam ofertando os maços. É uma cultura muito forte, e é difícil modificá-la. Fazíamos palestras tentando alertar sobre os seus perigos”, relata a psiquiatra. “É muito complicado. As condições de vida na África já são terríveis e os refugiados não têm identidade, não podem sair do acampamento, para não competirem com a economia do Quênia, não podem plantar... A maioria é composta por pastores nômades e tem de ficar confinada àquela área”, lamenta.

“Há muita somatização. Por exemplo, depressão que provoca dor nas costas e outros sintomas; e muitos casos de bipolaridade e autismo, tanto em crianças quanto em adultos”, afirma a psiquiatra. Muitas vezes, atendia pacientes neurológicos, principalmente, paralisia cerebral e epilepsia. Há também muito estresse pós-traumático e distúrbios relacionados a estupros. Apesar de tudo, destaca, “eles são muito resilientes, a religião é muito forte. Só vi uma tentativa de suicídio. Em termos de saúde geral, há muitas outras deficiências, principalmente desnutrição entre as crianças e mesmo adultos”, ressalta.

“A gente se sente muito necessária. Acorda e enxerga muitas situações tristes, mas há também compensações, como ver uma criança ganhar peso, um paciente que fica estável...”. A volta ao Brasil foi difícil. “Demorei muito para me readaptar, nada era tão satisfatório quanto o trabalho na missão. A gente aprende a relativizar tudo e muda seu jeito de ver o mundo. Trouxe mais ensinamentos e experiências do que deixei lá”, assegura Paula.

Em 2013, pensou em sair novamente para alguma missão, mas não conseguiu se organizar. Atualmente, tem vários vínculos de trabalho, como o gerenciamento do Centro de Atenção Psicossocial 2 Infantil Vila Maria, na Vila Guilherme, e o Programa de Assistência e Pesquisa às Vítimas de Violência (Prove), da Unifesp. E continua colaborando com a MSF, por meio do escritório da organização em São Paulo.

Aos colegas, Paula diz: “todo médico deveria passar por uma experiência assim. Aliás, não só os médicos. Mas, especialmente para nós, é uma experiência extremamente rica”.

 



Congo



Em 2012, por meio da Cruz Vermelha, Paula deu um curso de terapia interpessoal para mulheres vítimas de abuso sexual, juntamente com uma amiga, também psiquiatra da Unifesp, em Bukavu, província de Kivus, no Congo, perto da fronteira com Ruanda. Ficaram lá durante duas semanas.

“Deu mais medo do que em Dadaad. A situação no Congo é extremamente violenta. Grupos armados andam pelas ruas, existem lá muitos soldados da ONU. É uma guerra civil, mas no fundo se sabe que é uma luta pelo domínio das minas de diamantes e o metal coltão, usado para fazer os tablets”. E, para piorar, relata a psiquiatra, os estupros, que faziam parte da luta étnica, viraram arma de guerra. “Há até placas pelas ruas, dizendo: todos juntos contra o estupro. É um caos”.

 


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