CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág.1)
Editorial de Renato Azevedo Júnior - Presidente do Cremesp
ENTREVISTA (pág. 4)
Soren Holm - editor do Journal of Medical Ethics
SINTONIA (pág. 9)
Médicos e indústria farmacêutica
CRÔNICA (pág. 12)
Millôr Fernandes
DEBATE (pág. 14)
Aids: em discussão o tratamento profilático
MÉDICOS NO MUNDO (pág. 20)
As muitas guerras do dr. Filártiga
EM FOCO (pág. 24)
AVAAZ: protestos em um clique
HISTÓRIA DA MEDICINA (pág. 27)
Médico, torneiro mecânico e inventor
GIRAMUNDO (págs. 30/31)
Curiosidades da ciência e tecnologia, da história e de fatos atuais
PONTO COM (págs. 32/33)
Informações do mundo digital
SUSTENTABILIDADE (pág. 34)
Sacolas plásticas: uma história sem heróis nem vilões
LIVRO DE CABECEIRA (pág. 37)
Indicação da conselheira Ieda T. Verreschi*
CULTURA (pág. 38)
Pedro Almodóvar
MAIS CULTURA (pág. 41 )
A revolução romântica
HOBBY (pág. 42)
Sem efeito colateral
CARTAS & NOTAS (pág. 33)
SUS: Cremesp recolhe assinaturas
GOURMET (pág. 45)
Sabor de vida em família
FOTOPOESIA( pág. 48)
João Cabral de Melo Neto
GALERIA DE FOTOS
HISTÓRIA DA MEDICINA (pág. 27)
Médico, torneiro mecânico e inventor
Kentaro Takaoka revolucionou a anestesiologia no final da década de 50, criando um pequeno aparelho que permitia a ventilação mecânica durante a cirurgia
Os ventiladores mecânicos são equipamentos obrigatórios em todas as salas de cirurgia e unidades de terapia intensiva. São corriqueiros hoje em dia, mas há algumas décadas a situação era bem diferente. Essa conquista foi iniciada por volta de 1950, quando a anestesia inalatória sob respiração espontânea ou assistida ainda era considerada quase uma novidade. O impulso definitivo para a utilização da respiração controlada mecânica no país deveu-se à tenacidade e habilidade do então jovem médico Kentaro Takaoka. Ele queria ser engenheiro, mas formou-se em Medicina pela USP – turma de 1944 – seguindo a tradição japonesa de o filho mais velho herdar a profissão do pai. Ainda durante a faculdade, formou-se também torneiro mecânico, e concebeu um pequeno aparelho que revolucionou a anestesiologia e, portanto, as cirurgias no Brasil. A invenção permitiu, naquela época, a realização da ventilação controlada em sistema aberto com oxigênio.
Tudo começou com as palestras do anestesista sueco Olle Friberg, que veio ao país, em 1950, apresentar as novas técnicas da especialidade para cirurgia do tórax, com ênfase na respiração controlada, tanto manual como mecânica.
O médico Cabral de Almeida foi o primeiro a introduzir essa técnica no Hospital Beneficência Portuguesa, no Rio de Janeiro, que, até então, registrava índices de mortalidade por causa respiratória de 70% em cirurgias pulmonares, em consequência do pneumotórax aberto e da hipoxemia. Com a nova técnica, tais índices caíram para 3.3%. Contudo, os equipamentos, todos importados, eram raros e pesados. No Hospital das Clínicas da FMUSP, em São Paulo, por exemplo, existia um único aparelho de respiração, que utilizava dois cilindros de oxigênio, uma máscara e um respirador. Grande, defeituoso e, às vezes, com os cilindros vazios ou com carga insuficiente, trazia insegurança e angústia aos anestesiologistas, que eram obrigados a transportá-lo nas costas do 4º ao 10º andar do hospital, quando chamados para um parto a fórceps ou cesáreo. “Se fosse solicitado ao mesmo tempo em áreas distantes diferentes, virava um problema”, confessou certa vez Kentaro Takaoka.
A falta de equipamentos adequados, que dificultava a prática de sua profissão, levou-o a obter subsídios do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) da USP para desenvolver um aparelho de dimensões reduzidas, capaz de executar a ventilação artificial controlada. Formado pelo Senai, em 1948, como fresador – enquanto cursava a faculdade –, ele montou, em 1951, uma oficina no 9º andar do HC, conhecida como “o divertimento do Takaoka”, onde injetou também recursos próprios para comprar equipamentos. Ali ele fazia as pesquisas nas poucas horas de folga, perseguindo e conseguindo atingir o objetivo de inventar um instrumento eficiente, barato e elaborado com peças pequenas e simples.
Um ano depois, em 1952, apresentou o primeiro protótipo do respirador na reunião anual da Sociedade Brasileira de Anestesiologia, realizada em São Paulo. Ele foi testado, por quatro anos, em pequenos animais, até que pudesse ser utilizado em humanos, em 1955. Misto dos dois outros equipamentos existentes à época, a minúscula máquina foi reconhecida mundialmente como importante contribuição para o progresso da anestesiologia e, após dois anos, começou a ser fabricada em maior escala, levando o médico a fundar a indústria que, até hoje, leva seu nome. Além do respirador, ele desenvolveu diversos outros aparelhos hospitalares. Em 2005, o presidente Luis Inácio Lula da Silva entregou-lhe o troféu Finep Inventor Inovador. Na ocasião, Takaoka ressaltou o fato de ambos serem torneiros mecânicos.
Apesar da intensa atividade profissional, ele ainda encontrou tempo para participar ativamente do movimento pelo reconhecimento de sua especialidade. Fundou, em 1955, juntamente com alguns colegas, a Clínica de Anestesia de São Paulo, como forma de torná-la independente das demais áreas da Medicina. Em 1962, foi presidente do então Departamento de Anestesiologia da Associação Paulista de Medicina, que, em 1969, se tornaria a Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo. Em 1966, ocupou a presidência da Sociedade Brasileira de Anestesiologia.
O gosto pelo aprendizado fez dele um amante da tecnologia. Um de seus passatempos preferidos, nos últimos anos de vida, era a leitura de revistas sobre computação. Foi também radioamador e gostava de pescar. Morreu em julho de 2010, em São Paulo. Casado com Ruth Takaoka, deixou seis filhos, dos quais dois são médicos; e 12 netos. Médico que queria ser engenheiro, ele conseguiu – e muito bem – juntar as duas carreiras.
Conectando os pontos
Por Flávio Takaoka*
Perdi meu pai há quase dois anos. Neste período, filmes e fotos da vida dele como pai emergiram na minha mente de forma aleatória. Lembro-me de um final de tarde de 1972, quando eu iniciava o curso de Medicina na USP. O dr. Carlos Magalhães, anestesista, sócio e amigo de meu pai, foi a nossa casa. Logo percebi que algo estava errado pelo semblante deles, e principalmente o de minha mãe. Discutiram a insatisfação de meu pai em continuar no grupo de anestesia que eles haviam fundado em 1955. Como filho, concluí que eles não estavam sendo justos com meu pai. Na realidade, estava cada vez mais difícil conciliar as duas carreiras, de médico e de engenheiro.
Alguns anos mais tarde, já perto de me formar, entendi que os semblantes de meu pai e o de minha mãe, naquele dia, representavam desejos bem distintos. Minha mãe, em algumas ocasiões, deixou evidente a inconformidade de não mais estar casada com um médico. Naquela época, a nossa profissão talvez representasse um status social superior ao que representa nos dias de hoje. Além disso, dizia ela, “não custava você ter esperado mais alguns anos para largar a medicina e ajudar seu filho no início de carreira”.
O significado da expressão no rosto de meu pai ficou claro em outra ocasião, em 1974, quando ele me disse: “Vico (meu apelido), este ano eu faço 55 anos – a idade média do brasileiro. Portanto, daqui para a frente, o que eu fizer é lucro, e vou fazer o que eu gosto”. Dedicou-se à empresa de equipamentos de anestesia até falecer com 91 anos. Quisera eu ter esta capacidade e coragem.
Confesso que, naquela época, não sabia que ele tinha participado tão ativamente no estabelecimento da anestesia como especialidade. Sabia que ele estava sempre trabalhando e, frequentemente, acordava de madrugada para atender um obstetra importante que gostava de fazer partos às 5 horas da manhã.
Reconheço também que necessitei de mais alguns anos para conectar os pontos. Afinal, qual seria a importância de um certificado de torneiro mecânico obtido durante o curso de Medicina? Olhando para trás é fácil entender. Esta é outra lição que aprendi de meu pai e tento incorporar à minha vida pessoal e profissional: talvez melhor do que fazer bem determinada tarefa seja fazer todas as tarefas necessárias para terminar um projeto. Isto exige disciplina, conhecimento profundo de todas as fases e, principalmente, concluir todas elas, mesmo que o resultado seja imperfeito.
Reconhecer uma necessidade enquanto você atende um paciente na sala de cirurgia, transformá-la em um projeto, é tarefa relativamente fácil. No entanto, torná-la um produto, com inúmeros componentes mecânicos, compacto, que claramente atendia às necessidades identificadas pelo usuário na sala de cirurgia, “são outros 500”. Ser produzido em escala comercial e ser viável economicamente “são outros 600”.Alguns dias antes de falecer, ainda totalmente lúcido, o quadro de pneumonia intersticial se agravara, evoluindo para insuficiência respiratória. Mantinha-se com uma máscara facial e oxigênio. Percebeu que a saturação de oxigênio estava caindo, apesar do fluxo crescente. Então me perguntou: “qual é o fluxo de oxigênio?” Com certo olhar de orgulho calculou, de cabeça, que a fração inspirada de oxigênio estava próxima de 60%. Sei que ele quis dizer que o pulmão não estava bom, mas sua cabeça estava 100% boa. Demonstrar lucidez deixava-o feliz.
*Doutor pela Faculdade de Medicina da USP e anestesista do Programa de Transplantes de Órgãos do Hospital Israelita Albert Einstein.
MAIS INFORMAÇÕES
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