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Edição 21 - Outubro/Novembro/Dezembro de 2002

HISTÓRIA DA MEDICINA

Egito Antigo

Egito Antigo

João Amílcar Salgado*

O atendimento clínico socializado, a vigilância sanitária, a puericultura, a cirurgia, a farmacoterapia, o hospital e o ensino universitário encontrados hoje podem ser identificados, em espantosa contemporaneidade, na medicina egípcia.

A história da medicina no Egito faraônico passa a sofrer hoje completa revisão, que advém não da descoberta de novos registros, mas da correção dos vieses eurocêntricos e até racistas verificados nos primeiros estudos arqueológicos e históricos. A primeira retificação é geográfica, pois tudo indica que o Golfo Pérsico e não o Mar Vermelho é o limite entre a África e o Oriente.

Os primeiros homens a saírem da África para os demais continentes provavelmente migraram em fluxo descontínuo, de modo a permitir a diferenciação das raças. Ao mesmo tempo, a raça negra, como tal, manteve fluxo relativamente contínuo para além do Golfo Pérsico, antes da origem da civilização egípcia. De fato, o deslocamento oriental de populações negras se deu, desde tempos imemoriais, ao longo da faixa litorânea que bordeja o Oceano Índico até a Austrália ou até mesmo a América. Isso significa que a chegada da cultura egípcia até o Cáucaso, por terra ou pelo Mar Mediterrâneo, foi apenas mais uma, e não a única, entre as contribuições africanas à evolução tecno-cultural da humanidade.

A domesticação de plantas e animais, em vários locais do mundo, levou à divinização do sol, que então substitui a divindade panteísta dos catadores-caçadores. No Egito, o sol, fecundante das cheias do Nilo, é Amon-Ra, deus também da medicina. A Grécia, onde aquela domes-ti-ca-ção não teve o mesmo significado, copiou Amon-Ra como Hélios, por sua vez copiado pelos romanos como Apolo. Em virtude da especialização requerida pela maior complexidade social, um semideus, Inotepe, filho ou descendente de Amon-Ra, se torna o deus específico da medicina. Inotepe é copiado na Grécia como Asclépio e em Roma como Esculápio. O ensino médico, ao processar-se sigilosamente de pai para filho, implica a vinculação genealógica de qualquer médico ao semideus e ao próprio deus. Ela decorre da simbolização em que o deus encarnado Imotepe é germinado pelo pai divino Amon-Ra, fecundador de sementes. Em outros termos, Imotepe ressurge da mortalidade subterrânea para a imortalidade individual – triunfo que é recorrente em todas as religiões e almejado pela medicina de todos os tempos.

Um médico histórico eminente passa a ser identificado como a encarnação desse deus da medicina. No caso egípcio, Imotepe, médico do rei Zoser (2980 aC), era tão notável que foi pioneiro quer no uso da escrita, quer na arquitetura de pirâmides. De fato, um dos estímulos à escrita foi o registro da crescente farmacopéia, fruto da expansão civilizatória. Culturas ágrafas dominam farmacopéias importantes, mas a escrita permite, sobretudo, a fusão delas. Já a arquitetura traduz o papel da medicina como ponte entre a religião e o desenvolvimento de todas as ciências, inclusive a matemática e a astronomia, na qual Amon-Ra é o astro fundamental, regente de ciclos climáticos e de pragas agrícolas e humanas. O papiro Ebers, de 1550 (descoberto em Luxor, em 1873), e os ou-tros papiros médicos constituem, portanto, apenas o episódio final de longa história daquela medicina conservada oralmente, com auxílio de rima, música, lendas e tabus.

Sociologicamente, a cultura faraônica é profundamente médica, no sentido de que persegue o sonho médico da imorta-lidade corpórea, não só de faraós, mas de pessoas comuns e até de animais – daí seu politeísmo médico. A mumificação compõe tal medicina e implica conheci-mentos da anatomia à farmacolo-gia e à cosmética, referente ao homem e aos demais animais (com a respectiva veterinária), especialmente da bacteriologia virtual implícita na vitória contra a putrefação e no domínio da fermentação. Coerentes com isso e diferentes de outros, são os primeiros a considerar vitais a respiração e o batimento cardíaco.

A proximidade do deserto, da savana e da selva trouxe peculiaridades. A valorização da água e os procedimentos mumificantes geram a teoria médica da limpeza externa e interna do corpo. O banho do próprio médico devia repetir-se duas vezes de dia e duas de noite, além da roupa branca e da cabeça raspada a cada três dias, origem da ligação entre barbeiros e cirurgiões. O vento arenoso do deserto induz à prática da circuncisão (desde 5000 aC), como profilaxia de gangrena peniana - hábito que de cirúrgico passa a litúrgico. A bio-diversidade da savana e da selva permite correla-cionar doença com peçonha e vermes, originando desde produtos anti-sépticos, que se transformam em culinários, até o consumo de subprodutos animais, como o mel, o leite e o sangue.

O atendimento clínico socializado, a vigilância sanitária, a puericultura, a cirurgia (os bisturis de pedra e de bronze precedem o de ferro, este presente em 1600 aC), a farmacoterapia, o hospital e o ensino universitário e médico encontrados hoje podem ser identificados, em espantosa contemporaneidade, na medicina egípcia. Essa verificação está patente no R modificado, ideograma do olho de Hórus, que subsiste na folha atual de receituário.

Tanta conquista não mais pode ser atribuída a uma espécie de milagre antropológico ocorrido às margens do Nilo. Por exemplo, seja a metalurgia, seja a mumificação ou grande parte da medicina surgiram da cultura núbia. Os ritos lustrais são predominantemente líbios (os líbios primitivos eram também negros, tanto como os egípcios e os nú-bios). Para evidenciar a difusão de traços culturais, exemplifiquemos com a superação do infanticídio economicamente necessário. Todas as subculturas da África o superaram, quando a economia tribal se desenvolveu a ponto de comportar a sobre-vida de crianças defeituosas (e também de idosos e de adultos incapacitados). No Brasil é conhecido o rito do Omulu-Obaluaê, originário do lado Atlântico da África. Omulu é o orixá da medicina e Obaluaê é Omulu jovem. Sendo criança defeituosa (aleijada, variolosa ou leprosa), Obaluaê deve-ria ser lançado ao lago. Sobreviveu quando o orixá fe-minino Nana o resgatou do infanticídio. Assim, não é nada surpreendente que Abraão, que era negro e escravizava uma africana, resgate seu filho Isaque de morte semelhante, no poético episódio bíblico que relatou aos membros de sua tribo.

* Salgado é professor titular de Clínica Médica e pesquisador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais da UFMG.

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