CAPA
PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Luiz Alberto Bacheschi*
ENTREVISTA (pág. 4)
Jairo Bouer
AMBIENTE (pág. 9)
As comunidades quilombolas remanescentes no Estado de São Paulo
CRÔNICA (pág. 12)
Pasquale Cipro Neto*
CONJUNTURA (pág. 14)
Conselheiros analisam tratamento de saúde oferecido a estrangeiros
SINTONIA (pág. 19)
Renato Azevedo Júnior*
DEBATE (pág. 22)
Pesquisadores discutem estágio atual das pesquisas com células-tronco
GIRAMUNDO (pág. 28/29)
Curiosidades da ciência e tecnologia, da história e da atualidade
PONTO COM (pág. 30)
Acompanhe as novidades que agitam o mundo digital
EM FOCO (pág. 32)
Charges e desenhos sobre o ensino e a prática médica
CULTURA (pág. 34)
Marcelo Secaf *, presidente do conselho da Associação Pinacoteca
TURISMO (pág. 38)
Parque Estadual do Jalapão, em Tocantins
HOBBY (pág. 44)
Caratê: melhor concentração e controle das emoções
LIVRO DE CABECEIRA (pág. 47)
Obra da psicóloga e psicoterapeuta francesa Marie de Hennezel
POESIA( pág. 48)
Soneto de Machado de Assis
GALERIA DE FOTOS
DEBATE (pág. 22)
Pesquisadores discutem estágio atual das pesquisas com células-tronco
Quando a medicina disporá de terapia celular?
A professora Lygia da Veiga Pereira e o pró-reitor de pesquisas da Universidade de São Paulo (USP) Marco Antonio Zago trabalham na linha de ponta de experimentos científicos com células-tronco no Brasil. Ambos desenvolvem e orientam pesquisas há mais de uma década e têm expectativas e posições divergentes em relação ao futuro das experiências na área. Neste debate, coordenado pelo também professor e conselheiro do Cremesp Reinaldo Ayer de Oliveira, eles discutem sobre a situação atual das pesquisas, no Brasil e no mundo, e as perspectivas em torno de sua aplicabilidade na medicina. Acompanhe, a seguir, um resumo desse encontro e confira os currículos dos participantes ao final desta matéria.
Da esq. p/a dir., Marco Antonio Zago, Lygia da Veiga e Reinaldo Ayer
Reinaldo Ayer: Como podemos entender as diferenças que existem entre as células-tronco embrionárias e adultas?
Marco Antonio Zago: São dois mundos, não apenas do ponto de vista conceitual, mas porque as questões éticas são diferentes, embora a imprensa as trate como se fossem uma única coisa. As grandes promessas estão nas células-tronco embrionárias e nas IPS (Induced Pluripotent Stem Cells, sigla em inglês para células-tronco pluripotentes induzidas), que são células adultas revertidas à capacidade de embrionárias. Porém, o pouco que temos de concreto foi obtido do trabalho com células adultas.
Lygia da Veiga Pereira: Um bom exemplo são as células-tronco da medula óssea que há décadas são capazes de se transformar e regenerar qualquer célula do sangue. Houve um boom nas pesquisas para explorar a possibilidade de que, talvez, na medula óssea, tivéssemos células adultas capazes de dar origem não só ao sangue, mas a outros tecidos. Depois, descobriu-se que essas células estão distribuídas pelo organismo no tecido adiposo, no sangue do cordão umbilical etc. Mas não sabemos se são capazes de se transformar em todos os tecidos. Por outro lado, temos segurança sobre o seu não malefício. Há décadas se faz transplante de medula óssea e elas não originam tumores. Outro universo é o das células-tronco de embriões aproveitados de técnicas de fertilização. Essas, por definição, são capazes de se transformar em qualquer tecido. Elas ainda não são usadas para renegerar um fígado ou pâncreas porque são conhecidas a menos tempo. Temos de aprender a domá-las em laboratório. Se as colocarmos em estado nativo num indivíduo, podem se diferenciar em vários tipos de células e formar um tumor. Elas apresentam efeito terapêutico importante em modelos animais, mas precisamos estudar melhor o seu comportamento.
Zago: São necessárias estratégias diferentes para desenvolver tratamentos, por um ou outro tipo de célula-tronco. No caso das adultas, primeiro temos de identificá-las em cada um dos tecidos humanos. Um estudo promissor é o de células-tronco de uma pequena região do olho chamada limbo, que pode reconstituir uma córnea lesada. Mas se o nicho de células for destruído, não se consegue recompor o olho. Quando células-tronco do olho contralateral são retiradas, cultivadas, ampliadas em laboratório e, depois, transplantadas, é possível recuperar a córnea lesada e a visão perdida. Nesse caso, uma célula-tronco adulta foi utilizada para recuperar o tecido a que normalmente dá origem. O desafio é obter células em quantidades suficientes para o tratamento, o que é complicado na maioria dos tecidos. Na medula, para obtê-las, basta fazer punção; na córnea não é tão fácil, mas podemos extraí-las de uma pequena região. Mas não se consegue obter células-tronco do coração para tratar doenças cardíacas. Na literatura há grande quantidade de trabalhos que exploraram ou exploram a via de coleta de célula da medula óssea para tratar outros tecidos; este é um sonho que não vai se realizar na maioria dos casos.
Ayer: No que os senhores trabalham no momento em seus laboratórios?
Zago: Nosso laboratório, em Ribeirão Preto, explora exatamente a capacidade de diferenciação das células da medula óssea. Por exemplo, uma célula primitiva pode dar origem a eritrócitos ou leucócitos, mas o que liga e o que se desliga dentro da célula para que ela siga um ou outro caminho de diferenciação? Além disso, na medula óssea há também a chamada célula-tronco mesenquimal, capaz de dar origem às células de gordura, de osso, de cartilagens etc. Inicialmente ajudamos a mapear essas células que são amplamente difusas no organismo – existem não apenas na medula óssea, mas no tecido adiposo, nas paredes de artérias e veias, em tecidos embrionários.
Lygia: Trabalhamos exclusivamente com células-tronco embrionárias. Fazemos isso com células de camundongo para poder modificá-las geneticamente e, a partir delas, gerar um animal com alguma alteração genética. Criamos modelos animais para síndrome de Marfan. Quando surgiram as células-tronco embrionárias humanas, já tínhamos experiências com as de camundongo. Essa pesquisa tem o objetivo aplicado de dar autonomia ao Brasil nos experimentos com células-tronco embrionárias. Se criarmos nossas próprias linhagens, não dependeremos mais da importação das células, que têm limitações de patentes e usos comerciais. Estamos estabelecendo essas linhagens a partir dos embriões doados à pesquisa. Também estou muito interessada em entender alguns eventos que acontecem com o cromossomo X durante o início do desenvolvimento embrionário em humanos. Não se pode estudar isso in vivo, porque acontece dentro do útero, mas é possível em células embrionárias cultivadas em laboratório. Ainda investimos em farmacologia e há uma terceira pesquisa, também aplicada, de utilização de células embrionárias como modelo in vitro para estudos sobre a eficácia e toxicidade de diferentes drogas.
Zago: Quantas linhagens de células-tronco foram obtidas até o momento no Brasil?
Lygia: Apenas duas.
Zago: Para essa atividade, a professora Lygia dependia da aprovação da Lei de Biossegurança. Essa é uma questão controvertida e há um grande debate na sociedade. No seu auge, há uns três anos, as pessoas acreditavam que, uma vez aprovada a lei, no dia seguinte surgiriam resultados. Um enorme engano! Na época, fizeram levantamento de quantos embriões disponíveis haviam no Brasil e contaram centenas, mas eles teriam utilização limitada. Serão muito raras as linhagens de células-tronco embrionárias desenvolvidas no Brasil. Muito pouco desses embriões de fato serão utilizados. A tecnologia envolvida é complicada. Os estudos serão restritos, especialmente agora que surgiu uma metodologia permitindo que uma célula adulta se transforme novamente em embrionária diferenciada – as IPS.
Ayer: Esse tipo de pesquisa já é realizada no Brasil?
Zago: Pelo menos três laboratórios brasileiros, sendo dois da USP – um de São Paulo e um de Ribeirão Preto – já têm linhagens obtidas de células adultas, que excluem a necessidade do uso de embrião.
Ayer: Quais são as fontes de financiamento dessas pesquisas?
Zago: A USP contribui com muitos recursos, com pessoal técnico, pesquisadores e estrutura física, especialmente equipamentos. Temos também fomento do Ministério da Ciência e Tecnologia, por meio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp); e do Ministério da Saúde.
Ayer: Basicamente trata-se de financiamento público, não há apoio do setor privado?
Lygia: Todos que conheço são financiados por instituições públicas. No Brasil, não temos a prática de financiamento privado em pesquisa.
Ayer: Esse financiamento é importante quando se está numa espécie de corrida?
Zago: Em relação às células-tronco, estamos na mesma corrida que o restante da ciência brasileira. Não há excesso nem falta de financiamento. O que temos de recurso está mais ou menos distribuído a toda a ciência brasileira e na mesma linha de competição de outros temas, da cardiologia, da nefrologia etc. Mas nossa produção é relativamente pequena comparada ao resto do mundo.
Lygia: Isso porque a nossa comunidade científica é pequena.
Zago: Nossa área se enquadra nos cerca de 2% da produção mundial. É o mesmo percentual em que toda a ciência brasileira se enquadra e corresponde ao PIB do Brasil – que é mais ou menos 2% do mundial.
Ayer: Se não temos um número maior de laboratórios, precisamos construí-los para poder competir? A ciência brasileira precisaria de um estímulo a mais e um financiamento suplementar, que seria o privado?
Zago: Neste momento, ele é adequado ao tamanho de nossa comunidade. Alguns países fazem opção especial por um projeto, investindo grandes recursos, como fez o Brasil na área de energias renováveis, particularmente o bioetanol. O Brasil direcionou muitos recursos para isso, o setor privado foi beneficiado e também está fazendo investimentos na área, de tal maneira que mudou o quadro mundial. Hoje, 40% da energia gasta no Brasil vem de fontes renováveis, enquanto representam apenas 13% no resto do mundo. Nunca houve no país a opção preferencial por pesquisas com células-tronco, como foi o caso da Inglaterra e da Califórnia, nos Estados Unidos. Isso provavelmente levará à concentração de competências e geração de resultados muito mais rápidos naquelas regiões do que no resto do mundo.
Ayer: No Brasil, é uma pesquisa que está mais ou menos no nível das instituições mundiais?
Lygia: Em relação às células-tronco embrionárias temos grandes desníveis, porque pudemos começar a trabalhar apenas em 2005, quando foi aprovada a Lei de Biossegurança. Temos uma comunidade científica pequena e pouquíssimos grupos sabem lidar com isso. Um dos objetivos do meu laboratório, junto com o do professor Stevens Rehen, da UFRJ, é capacitar mais pesquisadores.
Zago: Em determinado momento, houve grande aposta mundial em células-tronco adultas de medula óssea para tratar variadas doenças. Após uma década e muitos recursos investidos, o balanço foi pouco entusiasmante. Está claro que a terapia celular não será resolvida por elas. Para reparo de variadas doenças devemos seguir o modelo clássico de busca da célula no próprio tecido – seja pela diferenciação das células-tronco embrionárias, pelas IPS ou por um método que consiga retirar a célula-tronco adulta específica de um determinado tecido e multiplicá-la. Não adianta insistir com células da medula óssea, que servem, sim, para tratar doenças da medula óssea, como leucemias e anemia aplástica. Pode trazer resultados limitados para uma ou outra doença, mas ninguém mais acredita na perspectiva que se tinha antes.
Ayer: Na passagem da pesquisa básica para a clínica, ainda é preciso muita prudência?
Zago: Sem dúvida. Mas isso também depende da criatividade dos pesquisadores. Por exemplo, o professor Julio Voltarelli, da USP de Ribeirão Preto, desenvolveu um método importante para tratar diabetes grave do tipo 1, em que combina o uso de células-tronco da medula óssea. Muitos têm a impressão que ele usa células da medula para tratar a doença no pâncreas. Mas não é isso. Ele faz um tratamento imunossupressor, que propicia a melhora de uma parcela dos indivíduos quanto ao diabetes, mas esses pacientes morreriam em virtude da aplasia de medula. O autotransplante da medula obtida antes da imunossupressão permite que se recuperem.
Lygia: Boa parte das pesquisas são empíricas ou superficiais, do tipo “retira a célula-tronco, centrifuga, injeta e vê no que dá”, como se o fato de não fazer mal as justificasse. A partir de 2008, o edital sobre pesquisas com células-tronco do CNPq passou a exigir a explicitação dos mecanismos do estudo.
Zago: Temos de fazer a distinção entre terapia celular e experimentos científicos com células-tronco. Muitas pesquisas não são finalmente úteis ou não levam a resultados positivos, mas são feitas em contexto científico e submetidas à apreciação de comissões de ética. Essa é a maneira como a ciência caminha. Chegar a resultados negativos não é depreciativo. Mas, ao lado disso, surgem os charlatões, que se aproveitam de um determinado assunto que ganha as manchetes e começam a oferecer tratamentos sem nenhum fundamento. Talvez seja preciso reafirmar claramente que, com exceção dos transplantes de medula óssea, não há tratamento com células-tronco para reparar tecido, que seja amplamente reconhecido pela comunidade científica.
Ayer: Quando poderemos ter pesquisas clínicas com células-tronco embrionárias ou com as IPS?
Lygia: Ainda estamos longe disso. O trabalho com elas é recente e reúne poucos grupos de pesquisadores. Precisamos desenvolver nossos protocolos de multiplicação dessas células em grandes quantidades – que é um foco de pesquisa na UFRJ – para entrar na fase de diferenciação e especialização celular e, então, realizar os testes. Para se ter uma ideia, a empresa dos Estados Unidos que conseguiu a primeira aprovação para tratar lesão de medula com derivados de células embrionárias, injetou em dois mil animais, entre ratos e camundongos, antes de conseguir aprovação para fazê-la em seres humanos. Ainda nem começamos isso no Brasil.
Zago: Temos um caminho longo e cheio de estrangulamentos técnicos. As culturas de células-tronco embrionárias, ou de IPS, não servem ao ser humano per se, porque não vão curar e podem gerar tumores. O primeiro passo para utilizá-las é fazer com que se diferenciem segundo a linhagem do tecido que queremos tratar. Para doença do coração, deve-se diferenciá-las em cardiomiócitos. No caso de uma IPS, que se originou de uma célula adulta e se transformou em embrionária símile, o pesquisador terá de percorrer o caminho inverso – ou seja, fazê-la se diferenciar novamente em outro tecido adulto. Uma vez diferenciada em tecido, por exemplo, cardíaco, ela precisa se multiplicar. Depois é preciso “limpar”, descartando as células que não se diferenciaram. Para tratar uma lesão cardíaca de infarto serão necessárias cerca de dois bilhões de células. Para cada um dos mais de 180 tecidos humanos existentes, será necessário desenvolver os protocolos que forneçam a célula apropriada. Eu não creio que isso aconteça em menos de cinco ou dez anos, antes de estarmos prontos para os testes clínicos em humanos. O primeiro teste em humanos com células embrionárias já está sendo feito para célula neurológica, mas não usa exatamente a diferenciação. Outro teste em humanos será iniciado na Inglaterra para tratar doenças de retina – neste caso, sim, usa uma IPS diferenciada.
Ayer: Quais seriam os estímulos para aumentar o número de pessoas que trabalham com células-tronco? De que área viriam essas pessoas? Porque a Lygia é graduada em Física e, o Zago, em Medicina.
Lygia: Quanto mais heterogêneo, mais rico será o grupo. É difícil uma pessoa ter formação que contemple todas as áreas que envolvem a terapia com células-tronco. Sou física, mas abandonei a área há tempos. Desde 1989, só estudo biologia molecular e celular, além de genética. A UFRJ reuniu biólogos e engenheiros químicos, que conseguiram adaptar essas células a biorreatores. É possível entrar nessa área por vários caminhos, da Engenharia, da Biologia, da Medicina. É importante ter equipes multidisciplinares para atacar o problema por vários ângulos.
Ayer: Quais são os grandes conflitos éticos que ocorrem nas pesquisas com células-tronco?
Lygia: Em relação às células embrionárias, há a questão do embrião humano e seus direitos – que mobiliza o mundo inteiro e cada país resolve de acordo com sua legislação, cultura e história. No Brasil, passamos seis anos discutindo para, em 2008, o Supremo Tribunal Federal consolidar a Lei de Biossegurança, de 2005. A lei diz que o embrião não é uma forma de vida inviolável, se foi desenvolvido para fins reprodutivos, se está congelado há mais de três anos ou e se, para os pais biológicos, ele é inviável. Essa questão é ponto de debate, mas se resolveu dessa forma no Brasil. Outra questão ética, mais sutil, é o oportunismo de certos indivíduos com a expectativa que as pessoas têm em relação aos tratamentos. A mídia, às vezes, dá a entender que já há uma realidade terapêutica. Em alguns países há deslizes éticos até porque não existe uma regulamentação e legislação a respeito. O papel do cientista é muito importante na hora de comunicar. Temos de repetir de forma clara sobre as limitações porque as pessoas querem acreditar em um milagre.
Zago: Os cientistas são entusiasmados com o que fazem e, muitas vezes, comunicam de maneira exuberante um resultado obtido, sem preocupação sobre como será lido pela sociedade, pois a imprensa dá destaque a fatos como sensacionais. Por isso, a Sociedade Internacional de Pesquisa em Células-tronco (International Society for Stem Cell Research) publicou um conjunto de regras éticas relacionadas às pesquisas. Uma diretriz importante diz que os resultados de pesquisas devem ser publicados por revista científica de amplo reconhecimento, antes de anunciados à imprensa leiga. Dessa forma, são lidos criticamente e aceitos pela comunidade científica, antes de divulgados à imprensa leiga, e não o inverso.
Ouvinte: A lei de biossegurança brasileira contempla as necessidades dos cientistas, quando comparada à legislação de outros países?
Zago: A lei se destinava a uma coisa e no último momento acabou servindo a outra. Era para a regulamentação de organismos geneticamente modificados, e a questão do embrião humano não tinha de estar ali, mas foi ali colocada.
Lygia: O texto inicial proibia o uso de embriões humanos com material biológico para pesquisa, o que deixou muitos cientistas apavorados. Então, comemoramos muito o texto final aprovado porque permitiu o início das pesquisas. Por má redação, a lei tem um detalhe que apenas permite o uso de embriões congelados até março de 2005. Na tentativa de fazer a lei valer retroativamente, para embriões congelados antes de sua entrada em vigor, seus redatores escreveram de forma clara que só podemos utilizar aqueles que foram congelados até essa data. Com isso, é finita a quantidade de embriões disponíveis às pesquisas. E, pior, os métodos de congelamento não eram os melhores até 2005.
Zago: Entendo que algumas pessoas tenham conflito com a legislação atual. Muitos criticam a posição da igreja católica, mas é legitimamente fundamentada numa convicção moral. Entretanto, de alguma forma, a sociedade deve tentar obter o melhor benefício da ciência. Acredito, no entanto, que este debate centrado no uso de embriões deve perder relevância. Em todo o período de pesquisa com célula-tronco embrionária, tivemos apenas duas linhagens desenvolvidas no Brasil. Com o surgimento das IPS, a célula-tronco obtida da destruição do embrião perde sua posição central nessa área. O foco da ciência mundial voltou-se para as IPS, sobre as quais não pesam conflitos.
Ayer: O desenvolvimento desse tipo de célula foi decorrência dos possíveis conflitos éticos ou resultado de pesquisa pura?
Zago: A pressão ética pode ter tido algum peso, mas, fundamentalmente, resulta de um questionamento científico importante. A célula, uma vez adulta e diferenciada, não se “desdiferencia” mais? Será possível desreprimir toda a informação de seu núcleo e, depois, voltar a reprimir? Foi isso que levou os pesquisadores japoneses a fazer esse experimento planejado, genial, elegante e bem-sucedido. Todos concordam que isso significou um desenvolvimento impressionante, e não seria surpresa que Shinya Yamanaka recebesse o Prêmio Nobel de Medicina. É claro que há dificuldades técnicas, mas elas estão se resolvendo.
Lygia: Em ciência, é muito difícil dizer que algo não vai acontecer. Sem dúvida, a possibilidade de reprogramar a célula foi uma quebra de paradigma importante. As IPS ainda devem resolver questões técnicas para serem aplicadas em seres humanos, enquanto que as embrionárias já o são. Pode ser que um dia não precisemos mais da embrionária e passemos a usar as reprogramadas. Porém, como se conhece a embrionária há mais tempo, as pessoas que trabalham com elas e já adiantaram suas pesquisas, devem continuar investindo nisso. Enquanto uma não superar as dificuldades técnicas, temos de continuar investindo na outra. Cada pesquisador trabalha naquilo que acredita. Temos de seguir em frente porque não sabemos qual célula-tronco vai curar o quê.
Lygia da Veiga Pereira, física, mestre em Ciências Biológicas e doutora em Ciências Biomédicas, professora associada e chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias da USP. Marco Antonio Zago, hematologista, pró-reitor de pesquisas e professor titular da USP, ex-presidente do Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e coordenador do Centro de Terapia Celular de Ribeirão Preto (Cepid). Reinaldo Ayer, cirurgião cardiovascular, professor doutor de Bioética do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da USP, conselheiro e coordenador da Câmara Técnica de Bioética do Cremesp.
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