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CAPA

EDITORIAL (SM pág.1)
A implantação plena do SUS no país depende, apenas, de vontade política


ENTREVISTA (SM pág. 4)
Um encontro com o autor de Caminhos para o desenvolvimento sustentável


CRÔNICA (SM pág. 8)
Se você duvida da resistência "sobrenatural" dos vírus e bactérias, leia ...


CONJUNTURA (SM pág. 10)
Robôs cirúrgicos: a esperança de sucesso em procedimentos de alta complexidade


SAÚDE NO MUNDO (SM pág. 13)
Os pontos positivos do sistema público de saúde canadense


MÉDICO EM FOCO (SM pág. 16)
O verdadeiro espírito da Medicina cativa moradores simples do litoral sul de São Paulo


AMBIENTE (SM pág. 20)
Guia Verde de Eletrônicos do Greenpeace: empresas e a reciclagem


DEBATE (SM pág. 22)
Como atua o sistema de cooperativas de trabalho médico no Estado


GIRAMUNDO (SM pág. 28)
Destaque para a exposição Cérebro - O mundo dentro da sua cabeça, realizada em outubro


HISTÓRIA (SM pág. 30)
Surge uma nova - e importante - área de atuação médica: a Medicina de Viagem


GOURMET (SM pág. 34)
Aprenda a preparar uma receita dos deuses: ostra à milanesa


CULTURA (SM pág. 37)
Cientistas voltam os olhos para o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí


TURISMO (SM pág. 42)
Acompanhe o passo-a-passo de uma viagem deslumbrante à Síria! Roteiro do médico Rodrigo Magrini


CARTAS (SM pág. 47)
Iniciativa da revista em papel reciclado recebe aprovação dos leitores


FOTOPOESIA (SM pág. 48)
Dante Milano, poeta modernista carioca


GALERIA DE FOTOS


Edição 49 - Outubro/Novembro/Dezembro de 2009

DEBATE (SM pág. 22)

Como atua o sistema de cooperativas de trabalho médico no Estado

“Cooperativas” de trabalho médico, uma fraude?

Medidas para eliminar a precarização da mão-de-obra na saúde, observada no modelo que terceiriza trabalhadores pela forçosa constituição de pessoa jurídica e de cooperativas, entre outros, estão sendo analisadas pelo Cremesp, em parceria com outros órgãos e instituições. O trabalho é desdobramento de um levantamento feito pelo Departamento de Fiscalização do Conselho, em 2007, que identificou 81 cooperativas de trabalho médico no Estado de São Paulo – excluídas as do sistema Unimed – das quais somente 16 tinham devido registro no Conselho. A maioria funcionava de forma irregular ao facilitar a violação aos direitos trabalhistas de cerca de 10 mil médicos junto a tomadores de serviços. Esse número representa 10% dos profissionais que atuam no Estado. O Cremesp enviou o estudo a órgãos e entidades da área.

Em 2008, o Cremesp passou a integrar o Grupo de Estudos sobre Terceirização Irregular no Estado de São Paulo – composto também pelo Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Faculdade de Direito da USP, Conselho Regional de Enfermagem do Estado de São Paulo (Coren-SP), Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo (Sindsaúde-SP), Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp), Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo (Sindhosp) e Sindicato das Santas Casas de Misericórdia e Hospitais Filantrópicos do Estado de São Paulo (Sindhosfil) –, que pretende atuar para estabelecer relação de trabalho adequada. Em agosto, o grupo realizou um fórum sobre o assunto. Nele, discutiu que as falsas cooperativas funcionam como agências de emprego, não preenchem critérios que caracterizam uma verdadeira e não oferecem benefícios ou direitos a seus “cooperados”. O Cremesp vem procurando ampliar a discussão com os médicos e a sociedade.

Especialmente para
Ser Médico, o primeiro-secretário do Cremesp, João Ladislau Rosa, coordenou um debate sobre o tema, com a participação de Nelson Manrich, professor doutor, titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e Renato Bignami, mestre em Direito do Trabalho e auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego. Os três integram o grupo de estudo sobre a terceirização. Acompanhe a seguir um resumo do encontro.


Da esq. p/a dir. Nelson Manrich, João Ladislau e Renato Bignami 

Ladislau: A parceria entre instituições reguladoras e fiscalizadoras para enfrentar o problema das falsas cooperativas vem resultando em ações dentro do próprio Cremesp. Como o registro de qualquer empresa da área médica é obrigatório no Conselho, estamos discutindo critérios que coíbam tal prática já no ato da inscrição. Diante dessa perspectiva, é fundamental aprofundar a discussão com a sociedade e, por isso, convidamos os senhores para este debate. Como essas autoproclamadas cooperativas se enquadram legalmente no mercado de trabalho? Se elas não são cooperativas, o que são na realidade?

Bignami: A Constituição contempla o correto cooperativismo e diz que ele deve ser fomentado como alternativa de renda, porque o trabalho é essencial. Em geral, as pessoas dependem dele para o sustento e buscam, como for possível, ser absorvidas pelo mercado. Há grande pressão do setor empregador para escapar da tradicional forma de contrato pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). A CLT foi criada em 1943, basicamente para o modelo de trabalho industrial, razão pela qual talvez não seja a mais adequada às relações contratuais da área médica. Há o médico como empregado, não dá para ignorar essa figura. Mas há o entendimento geral – que não é o meu – de que a CLT engessa as relações de trabalho. Então, buscaram outra regulação civil. As cooperativas proliferaram muito a partir de 1994, com a introdução do parágrafo único no artigo 442 da CLT. Esse parágrafo tem a seguinte redação: “Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela”. A ideia de que todo tipo de cooperativa de mão-de-obra não geraria vínculo empregatício provocou um desvirtuamento exagerado. Por outro lado, a lei de cooperativas, da década de 70, não pensou numa sociedade de trabalho. Ela foi feita para cooperativas de crédito. Como falta regulamentação sobre os requisitos, há espaço de fuga de figuras contratuais de trabalho.
 
Manrich: Se elas não são cooperativas, são intermediadoras de mão-de-obra. E toda intermediação de mão-de-obra é ilegal, exceto do trabalho temporário. O desafio é encontrar um modelo adequado à área de saúde, que está submersa em relações trabalhistas inadequadas. Não avançaremos se ficarmos sob o compasso “é empregado ou autônomo?”. Médico e advogado são essencialmente profissionais liberais, difícil imaginá-los como empregados típicos. O médico goza de prestígio dentro da sociedade, está ali para fazer o bem social. A relação médico-paciente pede vínculos. Acho tranquila a possibilidade de encontrar as três figuras: o verdadeiro autônomo, o médico que constitui uma sociedade que presta serviço e aqueles que se reúnem para criar uma cooperativa. O problema é o cooperativismo, em uma das três modalidades, como estratégia para burlar a legislação trabalhista. A cooperativa nasceu para outra realidade, o erro começa por aí. Quando se descobriu a possibilidade de criar uma cooperativa sem vínculo, abrimos uma porteira que desandou. E até as verdadeiras cooperativas passaram a ser malvistas.

Ladislau: Considerando que sua principal relação é com o paciente, o médico sempre é autônomo. Até a década de 50, poucos tinham acesso a médicos no Brasil. O direito à saúde é recente e, com ele, sugiram novas formas desta relação. O serviço público contratava médico com vínculo trabalhista bem estabelecido. Surgiram as cooperativas nos moldes das Unimeds, que funcionam adequadamente, há democracia, eleições, assembleias etc. Os planos de saúde surgiram como facilitadores deste acesso, mantendo, ainda, certa autonomia. Paralelamente, ocorreu uma proliferação da iniciativa privada na área de saúde. Como o lucro é seu principal objetivo, para alcançá-lo, é preciso baratear custos. Baratear o trabalho médico foi um dos mecanismos. Porém, o médico não é um profissional barato, a sociedade gasta muito em sua formação. O médico, que antes era contratado pela CLT, passou a ser obrigado a participar de uma “cooperativa”, ou se transformar em pessoa jurídica ou montar microempresas e sociedades com participação societária de 1%. Essas novas situações, que se ampliaram muito, têm regras a serem seguidas? Elas estão burlando a lei?

Manrich: Em relação à cooperativa, o que interessa ao Direito do Trabalho é se há, de fato, participação do médico como sócio, se há assembleia como instrumento de exercício democrático ou se ela é utilizada para intermediar mão-de-obra e fugir de encargos. Estamos constatando que grande parte é fraudulenta. Se alguém trabalha com subordinação deve ser registrado como empregado e, para isso, há encargos que serão adicionados ao valor da consulta que o consumidor pagará. Eliminando encargos, reduzo custo e consigo competir com outro. Numa sociedade de cinco médicos que precisa aumentar mão-de-obra, chama mais dois e os coloca com 1% de cota. Eles são sócios? São empregados, têm hora para chegar e sair, não participam dos lucros da sociedade. É uma fraude. O Ministério do Trabalho tem instrumentos e poder para fiscalizar e desconstituir empresa que descumpre a legislação. Também é competência do auditor da Receita Federal fiscalizar; e, do Ministério da Fazenda, desconstituir pessoa jurídica que se apresenta como cooperativa e buscar, por trás dela, a contribuição devida que lhe foi burlada.

Bignami: O grande problema é a imposição de relações de trabalho. O médico ser obrigado a entrar em determinada relação contratual já é indício de fraude. Quando sua situação piora, comparada à se tivesse vínculo, é outro indício. Não é segredo que os médicos recém-formados têm de abrir pessoa jurídica para entrar em determinada estrutura. São todos clássicos sinais de fraude e precarização do trabalho. Há um princípio substanciado no Código Civil que diz que a lei especial derroga a lei geral. E, no caso, a lei especial é a trabalhista. Então, se pode aplicar a lei geral, que é a civil, se houver os pressupostos de aplicabilidade da lei especial. O vínculo sob a subordinação jurídica é uma coisa. Outra é a subordinação técnica. Essa o médico não tem. Se ele entra em uma estrutura, perde autonomia jurídica, mas mantém a técnica. Jamais outro médico vai dizer que ele está errado em determinada medicação, embora esteja inserido em estrutura que determina o horário que entra e sai etc. Existindo esse vínculo, não há outra hipótese que aplicar a lei especial. São vários os indícios de fraude. Falta real autonomia a esse “cooperado”.

Manrich: Considerando as grandes transformações nas relações de trabalho, é preciso acompanhá-las e não insistir em um modelo ultrapassado. Por uma lei de 2007, a Espanha tornou-se pioneira na criação do autônomo dependente que arrecada, por uma única fonte, 75% da sua remuneração. Ele tem contrato de trabalho, férias, repouso semanal, benefícios previdenciários, seguro desemprego etc. Ao lado da figura do autônomo e do subordinado, poderia ser criada a do autônomo dependente no Brasil.

Bignami: Quem contrata precisa da flexibilidade de quem está prestando serviço, e a CLT, por ser extremamente detalhista, pode realmente engessar um pouco a relação. Há maior flexibilidade na contratação civil. Se tivéssemos um sistema de negociação coletiva forte e com legitimidade, eles poderiam ser supridos, porque a legislação trabalhista é uma tábua de mimos. E, a partir dela, se negociaria por acordos coletivos.

Manrich: Há duas questões envolvendo o médico como trabalhador e uma delas é a previdência social deficitária que precisa arrecadar, dentro da lógica do sistema de solidariedade, no qual as gerações que estão chegando sustentam as que estão indo. Hoje, com a maior longevidade, o Estado deve combater falsas cooperativas que fraudam o sistema. É preciso criar oportunidade de trazer à formalidade milhões de pessoas, que vão pagar algo para o INSS e também algum imposto. O trabalhador que não se iluda. Ele pode preferir ser autônomo, mas amanhã, quando a velhice bater, não terá fonte de renda pelos anos trabalhados, porque não entrou pela porta da previdência – que é uma forma de inclusão social. Outra questão é a dignidade de quem trabalha. No caso do médico, como ser humano, se ele é empregado tem direito a condições de trabalho. Isso vale para todos os empregados. Ele deve ter uma capa quando trabalha na chuva, não pode fazer determinadas tarefas sem óculos etc. Mas se é ambulante, tem de ficar na rua, de sol a sol, sem banheiro e sem descanso? Qual é a diferença entre os dois trabalhadores? Por que um tem registro em carteira e o outro não? Qual é a diferença entre o médico com registro em carteira e o membro de uma cooperativa? No fundo, nenhuma. Não há como transformar um médico autônomo em empregado ou vice-versa. Se ele trabalha em uma UTI, como dizer que é autônomo?


Cabeça de Camponês (1928-29) - Cortesia de www.cazemir-malevich.org

Bignami: O tudo para uns e nada para outros é o grande dilema de nossa sociedade, fortemente polarizada entre quem é insider ou outsider. O camelô e outras figuras atípicas, como as das cooperativas de mão-de-obra fraudulentas são outsiders. A saúde acabou entrando no jogo porque, tradicionalmente, era autônoma ou garantida pelo setor público. Tudo que absorvemos dos Estados Unidos acaba um pouco distorcido, um tanto Macunaíma. A americanização precarizou nossa saúde. A estrutura privada existente emprega médicos para fazer frente à necessidade de redução de custos e abarcar maior número de clientes da classe média. Temos serviço médico excelente para quem tem dinheiro, a classe média tenta abocanhar o que sobra disso na área privada, e a população de baixa renda utiliza a rede pública sucateada. Falamos em serviço médico, mas há uma rede de profissionais de saúde envolvidos que, por cadeia, sofre os mesmos efeitos: enfermeiras e auxiliares, técnicos etc. Parece um vírus que contamina a todos. Quando há redução de custos, ele se dissemina de forma hierarquizada, de cima para baixo, e avança para todos os lados. E a precarização é forte entre recém-formados.

Ladislau: Mas não é exclusiva do recém-formado. Um exército de médicos e outros profissionais sobrevive dessa maneira e grande número deles pula de emprego em emprego. Há médicos que só dão plantão e não se vinculam a nada. O intensivista que dá plantão na UTI tem um trabalho sofisticado, que é facilitado por ele permanecer 12 horas e fazer o acompanhamento vertical do paciente. Porém, o plantonista de pronto-socorro atende meia dúzia de pessoas gripadas, faz três curativos, duas suturas e vai embora, sem criar vínculos com pacientes. A falsa cooperativa é um dos instrumentos responsáveis por essa situação e, algumas, têm contratos em várias cidades da Grande São Paulo. O médico que se filia a elas, um dia dá plantão numa cidade, depois em outra. Diante disso, pretendemos criar critérios mais rigorosos para que as instituições se inscrevam no Conselho, não só para proteger o médico da situação precária, mas também a sociedade. Queria ouvir dos senhores, o que podemos fazer para melhorar essa situação?

Manrich: Se há cooperativa fraudulenta, então, deveriam existir critérios prévios para o seu registro no Conselho, que fossem além do simples aspecto formal – se a cooperativa apresentou os livros, prestou contas etc. Mas a sociedade é a maior interessada em que a questão se resolva. Não interessa à família, com um filho doente, o médico despreparado, cansado e sem condições de trabalho. Para melhorar isso, temos de provocar um debate que interesse à sociedade. O Cremesp tem papel fundamental para, por exemplo, abrir discussão, com a Câmara dos Deputados ou com o Senado, sobre uma legislação mais adequada.

Bignami: Onde não há regulação, vigora a plena liberdade e a lei do mais forte. Sempre que o Estado edita regulação é para procurar equilibrar forças, para que a sociedade avance de forma mais igualitária. O Cremesp precisa promover o debate, com os próprios médicos e com a sociedade, de forma subsidiária, sobre o melhor modelo, porque ainda não sabemos qual é. E, também, provocar o Poder Legislativo a editar regulação específica que abarque todos os problemas sofridos pela área médica. O que o Cremesp verifica atualmente é só a formalidade das empresas, levando em consideração apenas a lei das cooperativas, por falta de outra mais específica. E, formalmente, essas cooperativas estão em ordem. Porém, o objetivo da cooperativa é prestar serviço ao próprio associado e não para o tomador. Esse é o ponto principal.

Manrich: Outro caminho é a parceria que já desenvolve com outros órgãos para levantar elementos à revisão dos critérios hoje estabelecidos, de tal maneira que pudesse eliminar, na origem, cooperativas fraudulentas. Seria uma forma de exigir aperfeiçoamentos das cooperativas, como faz o próprio Ministério do Trabalho, investindo para que elas se desenvolvam dentro de um ideal correto. Como a verdadeira cooperativa poderia se aperfeiçoar, se falta aparelhamento e subsídio para isso? Por exemplo, ao fazer os contratos com os hospitais, onde acontecerão as assembleias? Como fazer esse controle e oferecer aos cooperados algo superior ao que receberiam se fossem empregados?

Bignami: Temos o modelo espanhol, do autônomo dependente; o italiano, da parasubordinação, e, ainda, podemos criar um brasileiro, que não seja nada disso. Eu tinha esperança na negociação coletiva, mas está difícil na atual conjuntura. Parece que atualmente os sindicatos passam por uma crise de identidade. Até porque, bem ou mal, o trabalhador não briga mais pelo poder, pois chegou a ele. Também não briga mais por reposição salarial, porque a inflação está controlada. Os dois grandes motes que fizeram o sindicalismo avançar nos anos 60, 70 e 80 acabaram! Pelo que o sindicalista briga hoje? Mas nos países europeus, a negociação coletiva representa um grande impulso de melhoria de vida do trabalhador e de preenchimento de espaços que a regulação estatal não contempla.

Ladislau: Agradeço a participação dos senhores e a brilhante colaboração no campo das ideias para o debate de um tema que é dos mais importantes para o momento pelo qual passa a classe médica brasileira.



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