CAPA
PONTO DE PARTIDA (SM pág.1)
Editorial de Henrique Carlos Gonçalves aborda conflito de interesses da propaganda na Medicina
ENTREVISTA (SM pág. 4)
Fernando Reinach, premiado pesquisador, fala sobre biodiversidade em entrevista à SM
CRÔNICA (SM pág. 8)
Ignácio de Loyola Brandão descreve - com humor - a visita do médico para uma consulta doméstica...
SINTONIA (SM pág. 10)
A história da evolução do planeta está nas "mãos" dos micro-organismos, segundo o médico infectologista Stefan Ujvari
SOCIAL (SM pág. 15)
O esporte abre as portas para a cidadania e a dignidade de várias crianças e adolescentes carentes da Fundação Casa
CONJUNTURA (SM pág. 18)
Crianças obesas apresentam maiores riscos do excesso de peso também na vida adulta
DEBATE (SM pág. 21)
Paulo Seixas (SES) e Renato Antunes (Ameresp) discutem o papel da Residência Médica no país
SAÚDE (SM pág. 28)
O setor de saúde francês, público e privado, no atendimento da população e no exercício da Medicina
HISTÓRIA (SM pág. 31)
Embora tenha deixado de ser ditadura há quase três décadas, o Brasil não deve esquecer os horrores da época
CULTURA (SM pág. 36)
Doenças e sofrimento moldaram o conjunto da obra do pintor norueguês Edward Munch
HOBBY (SM pág. 40)
As telas do cirurgião Rubens Coelho Machado mostram todo seu talento e paixão também na arte do pincel
TURISMO (SM pág. 43)
Convidamos você a dar uma volta fantástica ao passado, viajando conosco ao sudeste asiático
CARTAS (SM pág. 47)
Acompanhe os comentários dos leitores sobre a edição anterior da Ser Médico
POESIA
Texto de Luís Vaz de Camões encerra esta edição da SM com emoção e realismo
GALERIA DE FOTOS
TURISMO (SM pág. 43)
Convidamos você a dar uma volta fantástica ao passado, viajando conosco ao sudeste asiático
Laos, voltando séculos no tempo
Neste pequeno país asiático, centenários templos budistas dividem cenários bucólicos com edificações coloniais francesas em meio a picos de limestone e arrozais
Ponte sobre o rio Nam Song, em Vang Vieng
Texto e fotos: Rodrigo Magrini*
Encravado no Sudeste Asiático, sem saída para o mar, cercado pela China, Tailândia, Vietnã e Camboja, Laos faz qualquer visitante voltar no tempo. Nesse pequeno país montanhoso e essencialmente agrário, florestas tropicais e campos de arrozais dividem o cenário bucólico com centenários templos budistas e edificações da época em que era colônia, parte da antiga Indochina Francesa – junto com Vietnã e Camboja. Laos é uma colcha de retalhos; mais de 60 etnias diferentes compõem os seus 5,1 milhões de habitantes que, pelo isolamento, preservou costumes e hábitos seculares.
Templo budista do antigo complexo do Palácio Real
A capital, Vientiane, fica na fronteira com a Tailândia. Lá cheguei depois de 36 horas de viagem de avião – saindo de São Paulo, com escalas em Nova York e Tóquio antes de aterrissar em Bangcoc, capital tailandesa, para pegar um trem noturno. Como sempre na Ásia, ao desembarcar, dezenas de motoristas de tuk-tuk – moto adaptada com minicarroceria para o transporte de pessoas – se aglomeram para oferecer a “corrida de táxi” até o hotel.
Vientiane, a maior cidade do Laos, com 200 mil habitantes, guarda encantos de província. Ao entardecer, as pessoas passeiam às margens do rio Mekong enquanto bebem uma beerlao, tradicional cerveja local. Bicicletas guiadas por mulheres vestidas em seda e segurando sombrinhas cruzam trabalhadores com tradicionais chapéus cônicos de palha. O horário do rush resume-se à correria de crianças na saída dos colégios, todas impecavelmente vestidas de branco e gravata azul. Acordei todos os dias às cinco da manhã para ver a montagem dos grandes mercados populares – uma festa de cores e cheiros em que centenas de pessoas de todas as partes do país vendem e compram frutas exóticas, verduras nunca vistas por mim, peixes do rio Mekong, variados tipos de carnes, roupas, brinquedos, artesanato, seda, tapeçaria etc.
Telhado em cascata, característico da arquitetura laociana
A amabilidade dos nativos e o modo como sorriem para os turistas que circulam pelas ruas pode causar estranheza aos não avisados. Apesar de ser um dos últimos redutos comunistas do planeta, a importante base budista da cultura – que representa mais de 90% da população desde o século 7 – preservou a particular capacidade comunicativa de seu povo. Três dias foram suficientes para apreciar as belezas arquitetônicas e as cenas do cotidiano dos vientianeses, que parecem tiradas de um filme antigo da Indochina.
Picos de limestone ao fundo das palafitas de Van Vieng
Patrimônio da Humanidade
Meu principal objetivo era chegar à lendária cidade de Luang Prabang, considerada Patrimônio Cultural da Humanidade, a 140 quilômetros da capital, percorridos por via aérea, devido às condições das estradas. Antiga capital real do país e com 16 mil habitantes, Luang Prabang concentra 40 templos budistas (wats), sendo uma nova meca do turismo na Ásia. Os visitantes logo absorvem o ritmo desta pequena cidade situada entre os rios Mekong e Khan e o modo simples e contemplativo de viver de centenas de monges budistas que a habitam.
Diariamente os habitantes de Luang Prabang ajoelham-se nas calçadas com um cesto de alimento...
Subir 328 degraus até atingir o topo do Monte Phousi, na região central da cidade, é a melhor forma de iniciar o passeio. Numa panorâmica desse lugar que pouco mudou na história, é possível avistar, nas três ruas principais, casas de madeira, inúmeros templos e o antigo palácio real – transformado em museu, desde que a Família Real foi deposta, em 1975, pelo Partido Comunista.
... para prover de sustento os monges budistas
Fiquei hospedado em um bangalô de madeira à beira do rio Mekong, decorado com tapeçaria de seda – uma tradição milenar de motivos intrincados com representações de costumes dos variados grupos étnicos, cada um com seu padrão de desenhos. Acordei novamente cedo. Diariamente, os laocianos saem às ruas por volta das seis da manhã e ajoelham-se sobre uma esteira de palha com uma vasilha de comida para aguardar uma espetacular procissão. Como mágica, de várias esquinas começam a surgir filas de monges budistas que seguem em direção à rua principal – cada fila representa um templo e os mais velhos ficam na frente. Todos carregam um recipiente no qual os locais depositam o sustento dos monges daquele dia. Mais de 300 monges repetem há séculos esse ritual, 365 dias por ano. Nada é dito, não há troca de olhares. Em cadência ritmada, os monges passam na frente dos habitantes que, sem olhar, depositam em cestos arroz e outros alimentos. Ao sol nascente que ilumina os casarões coloniais franceses, as calçadas transformam-se em cenário de um belo espetáculo humano de doação e respeito. Tão espetacular quanto a procissão é o comportamento dos turistas que, à distância, observam discretamente sem interferir no silencioso ritual.
Visitar os templos budistas, navegar de barco pelos rio Mekong ou Khan e conhecer o mercado noturno de artesanato são passeios obrigatórios. No mercado, a pechincha é o mote. O calor extremamente úmido na cidade obriga os turistas a reservar o início da manhã para os passeios pelos rios, sob o risco de “assar”, se não o fizerem. Por essa razão, o resto do dia é mais adequado para conhecer a rica arquitetura dos templos e conversar com os monges, que sempre acolhem os turistas com amabilidade.
Quando entrei apressado no Xiengh Thong, templo construído em 1560, que tem um jardim de palmeiras rodeado de capelas – uma delas abriga um raro Buda de bronze reclinado –, um monge me parou para dizer: go slow, you are in Lao (vá devagar, você está no Laos). Acabei ficando horas no local conversando com dois jovens monges. Indiferentes ao fato de viver em um dos mais antigos e belos templos da cidade, o local tinha maior significado por ser uma escola e moradia para eles. Ser interno em um wat faz parte da vida dos meninos. Mas ser noviço não é uma imposição. Alguns entram lá com sete anos para seguir a vocação budista dentro do wat. Porém, muitos vão para estudar antes de tentar uma carreira profissional numa universidade ou se casar. Há na cidade dois templos que abrigam monjas, mas que não vi em nenhum momento em passeio pelas ruas. Aqui vale uma dica: nunca aperte a mão de um monge e, no caso das turistas mulheres, jamais toquem um monge. São tabus nas tradições budistas do Laos.
Vilas laocianas
Vendedor ambulante com o típico chapéu cônico
Navegar no rio Mekong é uma experiência ímpar. Barcos pequenos podem ser alugados pelos turistas nos vilarejos para deslizar por horas rio abaixo, parando em aldeias. Algumas são especializadas em tecelagem de seda, outras em produção de papel artesanal. Algumas vilas são muito pobres, com casas construídas sobre carcaças de bombas de três metros despejadas durante a Guerra do Vietnã – uma versão pós-guerra de nossas palafitas. O povo laociano é simpático e curioso. Em muitos vilarejos do interior nem a língua oficial do país é falada, mas um sorriso e um aceno de mão são marcas laocianas.
A caminho das cavernas Pak Ou, cruzei com vários barcos de pescadores, crianças nadando, homens e mulheres tomando banho cobertos por tecidos de seda, que sempre acenavam e sorriam e, no caso das crianças, faziam coreografias antes do mergulho. As duas cavernas Pak Ou são interligadas na parte superior, criando um portal imenso que se abre para o rio. Por seis séculos, peregrinos depositaram nesse local mais de quatro mil imagens de Buda – de pedra ou madeira – como manifestação de agradecimento e devoção.
Continuei a viagem, em um micro-ônibus lotado de turistas estrangeiros, rumo a Vang Vieng, que fica entre Luang Prabang e Vientiane. Uma longa e inóspita aventura por estradinhas em meio a desfiladeiros.
Mercado popular de Vientiane
A cidade fica no vale do rio Nam Song, cercada por picos de pedra calcária (as famosas limestones) e inúmeras cavernas. Lá é possível passar dias fazendo escaladas ou descendo a correnteza do rio deitado em bóia, passeio de duas horas que começa numa fazenda de amoras (onde tomei o melhor suco dessa fruta e comprei chá de folhas da planta). O rio corre por penhascos de onde os moradores se atiram de trampolins feitos de bambus com altura de oito a dez metros. Uma diversão que culminou com um corte em meu joelho esquerdo, curado no melhor estilo água e sabão!
Culinária
Capim limão recheado com frango
País com forte influência da colonização francesa (1893-1945), a culinária laociana é uma festa. No café da manhã, croissants au chocolat, baguettes, geleias e sucos. No almoço, a interessante mescla da culinária regional com a francesa é um deleite visual e palatar nas entradas e pratos principais. Diferente do vizinho Camboja, onde insetos fazem parte do plate du jour, no Laos a culinária bonita e intrigante pode ser saboreada despreocupadamente, sem medo de comer gato por lebre. Tamarindo, mamão, capim limão, frango, patês diversos servidos com uma alga seca de cor escura do rio Mekong, salpicada de gergelim (que substitui fatias de pães), são alguns pratos comuns encontrados nos disputados restaurantes das cidades. Aos mais curiosos, há opções como lagartos e corujas. Lá aprendi que a gastronomia de um povo é um conjunto de circunstâncias sociais, econômicas e culturais. Afinal, o que diriam os laocianos diante da nossa feijoada servida em cumbuca de barro borbulhante com pedaços de orelha e rabo de porco?
Em matéria de arroz, o Laos é imbatível. São mais de três mil variedades cultivadas e um banco genético de cerca de 13 mil sementes mantidas por entidades internacionais. Cerca de 80% da área agrária do país é utilizada no cultivo do arroz. O cereal existe para todos os gostos e ocasiões, com destaque para o de cor púrpura, que é cozido com açúcar e servido como sobremesa. Existem diversos tipos de arroz, negro, vermelho, amarelo e toda a sorte de brancos, variando em tamanho e espessura. Os dois principais pratos do país são o laap uma mistura apimentada de carne e peixe marinados, acompanhada de vegetais e arroz; e o tam mak hounk, uma salada de papaia.
Enfim, este é o resumo de uma viagem que, na verdade, foi apenas o final de um processo prazeroso, fruto de meses de estudo em livros e mapas.
Brincadeiras de meninos no rio Mekong
*Rodrigo Magrini é dermatologista em Bragança Paulista.